Então, como a dança se desenvolveu com uma bota que não fazia muito barulho, os malambistas realizavam os movimentos muito velozmente. Já que não podiam usar tanto o repique, tinham de trabalhar muito com pernas e poses. “Depois, a dança foi se propagando até o norte da Argentina, onde se desenvolveu o malambo norteño, com botas de salto, técnica do sapateio vibrante, mais ritmado. O corpo também entrou numa outra dimensão de teatralidade”, continua.
TRAJES
O desafio de Laborde é técnico. A dança retrata nas roupas o tradicionalismo tanto do malambo norteño quanto do sureño. No povoado, há o desafio do malambo individual e o de quarteto. “No estilo sul, o gaúcho usa chapéu coco ou galera, camisa branca, gravata borboleta, colete, paletó curto, um cribo – calça branca larga, com bordados e franjas na barra – sobre o qual se coloca um poncho com franjas (chiripá) preso à cintura, uma rastra (cinturão largo com adornos de metal ou prata) e botas de potro”, descreve Leila Guerriero. O chiripá, peça retangular colocada por cima da calça branca, uma espécie de fralda, era usada pelos índios guaranis antes de ser incorporada nessa cultura. O chiripá é a primeira roupa do malambo sureño. “No estilo norte, o gaúcho usa lenço no pescoço, camisa, paletó, bombachas – calça muito larga e plissada – e botas de couro de cano alto”, continua a descrição no livro.
Os gaúchos brasileiros têm a mesma vestimenta que os gaúchos argentinos e uruguaios. “Cultura, na realidade, não tem fronteira. Na região dos pampas, era uma mescla só. A bombacha, calça larga que nós usamos aqui no Rio Grande do Sul, chegou através da Guerra do Paraguai para os três países de uma vez só”, explica Norton. Reza a lenda que essa roupa começou a ser usada pelos gaúchos do norte da Argentina porque lá o terreno é mais acidentado, então, não tinham como usar apenas chiripá com cribo, porque enroscavam no mato.
TREINAMENTOS E PRIVAÇÕES
O campeonato de Laborde é a meca do malambo. Os malambistas têm de se submeter a um treinamento físico intenso e a inúmeras privações, como dormir cedo, não beber, não fumar, para ter chances de se sagrarem campeões. Muitos deles recusam contratos para shows no exterior, em cassinos e cruzeiros, apenas para competir na cidade cordobense.
Ganhar naquele lugar vale qualquer sacrifício. Esse espírito representa muito do amor à tradição e ao modo de vida do homem do campo argentino. “O verdadeiro prêmio de Laborde é tudo o que não se vê: o prestígio e a reverência, a consagração e o respeito, o destaque e a honra de ser um dos melhores entre os poucos capazes de dançar essa dança assassina. No pequeno círculo majestoso dos dançarinos folclóricos, um campeão de Laborde é um eterno semideus”, descreve a jornalista.
A “dança assassina” a que ela se refere faz menção ao desgaste físico dos movimentos, os cinco minutos de apresentação num virtuosismo atlético que poucos dão conta, como explica no livro Ariel Ávalos, campeão da edição de 2000 pela província de Santa Fé: “Precisamos da mesma capacidade de rendimento que a de um jogador de futebol de primeira divisão, só que nenhum jogador corre intensamente durante cinco minutos. Corre 100 metros e para. Manter esses cinco minutos é o que faz o malambista. E é uma barbaridade. Depois de um minuto e meio de malambo, o quadríceps começa a queimar, a respiração muda. E, quando muda a respiração, se não estamos preparados, temos de parar”.
Rodolfo Gonzalez Alcántara foi o grande vitorioso do Campeonato
de Laborde e tornou-se personagem principal do livro de Lela Guerreiro.
Foto: Divulgação
Existe um pacto entre os campeões de Laborde. Após a conquista, ninguém compete em mais nenhum campeonato. Uma ou duas vezes esse tabu foi quebrado, mas quem não respeita essa proibição cai em descrédito entre os concorrentes e o público. Como campeão, começa a dar aulas e é recompensado com o respeito e a admiração.
Pablo Sanches já preparou seis campeões e dois vice-campeões. Ele, além de preparador, é o patriarca de uma família de malambistas da cidade de Tucumán e descreve, no livro de Guerriero, o fascínio do malambo: “O poder da dança está no espírito, no coração. Tudo mais é técnica. O repique tem de ser perfeito, precisa-se saber levantar, cravar o peito do pé, ir subindo em energia, em atitude. Mas o malambo é uma expressão muito mais forte do que outras danças; então, além de saber a técnica, é preciso apalpar a madeira, senti-la, enterrar-se no palco. No dia em que se perde isso, perde-se tudo. É preciso sentir batida por batida. A mensagem precisa chegar com clareza às pessoas”. Segundo ele, a mensagem que se quer passar é: “Aqui estou, venho dessa terra”.
O personagem principal do livro de Leila Guerriero é Rodolfo Gonzalez Alcántara, campeão da edição de 2012. Seu virtuosismo impressiona, mesmo se só tivermos acesso à sua performance numa precária gravação de celular disponibilizada no YouTube. Leila, após assistir à apresentação do vice-campeonato de Rodolfo na edição de 2011, o descreve: “Ele era o campo, era a terra seca, era o horizonte tenso dos pampas, era o cheiro dos cavalos, era o som do céu de verão, era o zumbido da solidão, era a fúria, era a enfermidade e era a guerra, era o contrário da paz. Era a faca e era o talho. Era o canibal. Era uma condenação. Ao terminar, bateu na madeira com a força de um monstro e ficou ali, olhando através das camadas de ar folhado da noite, coberto de estrelas, puro fulgor. E, sorrindo de lado, como um príncipe, como um rufião ou como um diabo — tocou a aba do chapéu. E se foi”.
MALAMBO PROIBIDO
A dança surgiu na Argentina, mas existem muitos malambistas uruguaios e brasileiros, por causa desse processo histórico de divisão de terras entre estes três países. Na parte do Rio Grande do Sul, é uma dança que foi adotada para espetáculos. Não convive no meio tradicionalista, em forma de competições, pois nos concursos tradicionais de danças do Rio Grande do Sul é proibido dançar malambo. Não se pode misturar na chula elementos do malambo, por exemplo.
O gaúcho é uma mistura do índio com o português ou espanhol, dependendo da região. O gaúcho brasileiro também é chamado de bugre, pois tem a pele mais escura. Tomam o mesmo chimarrão e vestem a mesma roupa nos três países. Também fazem o mesmo churrasco, mudando apenas a forma do preparo. “Nós usamos o espeto, os argentinos e uruguaios usam a grelha. Eles chamam o churrasco de assado. O churrasco está intimamente ligado à doma do cavalo. Entre um malambo e outro, sempre há churrasco com chimarrão. O mesmo gaúcho que come a carne sobe ao palco para o sapateio”, compara Norton.
GUILHERME NOVELLI, jornalista.