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Crítica: Os protestos sonoros

O ano em que a música brasileira cantou os corpos, identidades, cidades, violência, política. Artistas inventaram o próprio espaço, tempo e vocabulário

TEXTO Carlos Gomes

01 de Dezembro de 2015

Em elogiado álbum, Elza Soares interpreta letras contundentes

Em elogiado álbum, Elza Soares interpreta letras contundentes

Foto Divulgação

Cinelândia, Rio de Janeiro, A mulher do fim do mundo. Em meio a uma multidão que protestava contra as pautas retrógradas do parlamento brasileiro, especificamente os projetos de lei que dificultam o atendimento às mulheres que sofreram estupro ou abuso sexual e na restrição ao uso da pílula do dia seguinte, os versos de uma canção que dá nome ao primeiro disco totalmente inédito de Elza Soares, destaca-se estampado num cartaz, diante da imensidão de corpos, lutas e mulheres que cantavam em coro ao fim do ato no Rio de Janeiro: “Mulher/ Do fim/ Do Mundo/ Eu sou/ Eu vou/ Até o fim/ Cantar”.

As vozes, quando em coro, têm uma potência e alcance bem específico. Sendo essa voz uma vibração sobre as violências postas cotidianamente sobre as mulheres, a rouquidão, ao mesmo tempo como súplica e promessa, do canto de Elza Soares ao final da canção Mulher do fim do mundo, ecoa como uma reverberação das vozes da Cinelândia. “Eu quero cantar/ Até o fim/ Me deixem cantar/ Até o fim/ Eu sou a mulher do fim do mundo”, suplica Elza. As que lá cantam, carregam nas cordas memória e história que a própria vida de Elza revela. Todo canto, toda a trajetória da cantora, das mulheres do fim do mundo da Cinelândia, estão contidos estética e politicamente nesses versos, incrivelmente concisos, da compositora Alice Coutinho, com música de Romulo Fróes. Se Alice carrega em tão poucas palavras essa história, Romulo põe na melodia o movimento necessário para que a voz de Elza crie uma narrativa verossímil com sua trajetória artística e pessoal, repleta de curvas, altos e baixos, quebras, belezas e tormentas. Tudo que cabe na vida está ali, naquele pedaço de canção.

O produtor e músico, responsável pela concepção e direção desse álbum, Guilherme Kastrup, sintetizou a emoção de ver esse disco/canção multiplicado pelo ato no Rio de Janeiro, ao compartilhar em seu perfil do Facebook a fotografia em que se estampa o cartaz com a frase “Mulheres do fim do mundo. “Em momentos como esse, a gente sente o poder das ideias e da arte chegando às pessoas, e contribuindo para o que realmente acreditamos! Salve todas as Mulheres do Fim do Mundo!!”.


Segundo disco de Ava Rocha discute a política do corpo. Foto: Divulgação

Nascido do encontro de Elza Soares com uma geração de músicos de São Paulo, acostumados ao corte-da-canção, devaneio-das-palavras e à distensão dos gêneros musicais, sobretudo pela ressignificação dopatrimônio musical brasileiro, o samba, sob a corrosão que suas sonoridades impõem, na voz-tormenta de Elza, parece caótico e belo.

Pois bem, são partes desse encontro Romulo Fróes e Alice Coutinho, da já citada canção-título; Kiko Dinucci, do corpo libertário que é ser/estar no grito-canto da faixa Pra fuder; Rodrigo Campos, da prosa-canção na conversa ligeira de falares e gírias com Elza em Firmeza; Celso Sim, da Benedita identidade de quem tem “uma dupla caceta”, de quem é “da zona”, e “morre”, “mata”, “é craque”; Douglas Germano, da canção Maria da Vila Matilde, que na voz de Elza soa como um trovão contra a violência doméstica, quando avisa: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Nela, vozes emulam cães, sambas, guitarras, violências que dançam. Por fim, posto sob a condução de Kastrup, fazem parte do álbum Marcelo Cabral, Felipe Roseno, Cuca Ferreira, Cacá Machado e um poema de Oswald de Andrade musicado por José Miguel Wisnik, na abertura do disco, não menos improvável, apenas n’A voz, n’A voz de Elza, como “navio humano, quente, negreiro do mangue/ navio humano, quente, guerreiro do mangue”, no que a traduz.

SANGUE NOS OLHOS
Neste ano, outras vozes tornaram a música muito mais que a reprodução de padrões. Em seus álbuns, a expressão sangue nos olhos pôde ser traduzida, ou reinscrita, no todo que compreendem suas obras, desenvolvidas no embaralhamento das canções, performances, narrativas, biografias, imagens e demais aparatos que fundem-se-confundem-se em suas próprias personas-criações: Ava Patrya Yndia Yracema, de Ava Rocha. Língua, de Alessandra Leão, e Selvática, de Karina Buhr são representações dessas vozes.

Suas obras abriram muitas frestas – ainda que o tempo presente dificulte essa impressão – sobre a voz da mulher, numa espécie de performance sobre a performance da canção. Esse duplo se apresenta na escolha das artistas por desnudar nas letras suas dicções, angústias, críticas, modos de linguagem.


Negro Leo tece suas críticas em 22 canções verborrágicas. Foto: Divugação

Enquanto o corpo de Ava se ilumina no escuro e na sobreposição de máscaras, literais ou não, Alessandra e Karina desnudam e incorporam em suas próprias personas o que as canções inferem, refletem, conquistam. De maneiras distintas, porém, através dessa conexão possível entre vozes, corpos e narrativas presentes em todo o aparato que envolve o lançamento de suas obras, ou seja, projeto gráfico, shows, performance, canções, debates, entrevistas etc., Ava, Alessandra – é preciso lembrar que Língua fecha uma trilogia, iniciada em 2014 – e Karina se impõem como artistas críticas de extrema importância para o tempo nebuloso e, ao mesmo tempo, instigante para quem lida com arte nesse começo de século 21.

MODOS DE SER/ESTAR
Outras vozes que conectam a música nos planos críticos sonoros, em que há esmero, experiência e relações muito próximas entre arte e vida, são os discos Ninõs heroes, de Negro Leo, e Fortaleza, da banda Cidadão Instigado. Como recortes, os álbuns aqui retratados tratam de fincar numa memória sonora, política e cultural, os seus modos distintos de ser/estar nesse “mercado de expectativas”, como canta Negro Leo, ou na diluição de uma cidade-Fortaleza-demais-capitais sob, mais uma vez, uma “nova ordem”. Essas canções, artistas e discos alargaram as possibilidades da música através de um discurso crítico rodeado da potência dos sons. Os sons como política.

No entanto, há uma relação entre outras vozes contemporâneas a eles, mas, ao mesmo tempo, extemporâneas, porque parecem numa mesma medida territorializar desterriorializar modos de construção estética. Mesmo nesses recortes heterogêneos que buscamos traçar, comparar, refletir sobre as produções musicais deste ano, artistas e obras como as lançadas por Rodrigo Campos, em Conversas com Toshiro, Zé Manoel, em Canção e silêncio, Passo Torto e Ná Ozzetti, em Thiago França, dentro do ambiente da canção brasileira permaneceram pairando num entrelugar estético. Rapfunk, música eletrônica, instrumental, noise e demais gêneros e desconstruções de gêneros certamente fizeram de 2015 um ano profícuo para a música brasileira. Será preciso uma infinidade de outros concisos recortes críticos para darmos conta da multiplicidade de vozes que compõem o universo da música contemporânea brasileira. 

CARLOS GOMES, escritor, editor e curador da Outros Críticos, mestrando em Comunicação pela UFPE.

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