Nascido do encontro de Elza Soares com uma geração de músicos de São Paulo, acostumados ao corte-da-canção, devaneio-das-palavras e à distensão dos gêneros musicais, sobretudo pela ressignificação dopatrimônio musical brasileiro, o samba, sob a corrosão que suas sonoridades impõem, na voz-tormenta de Elza, parece caótico e belo.
Pois bem, são partes desse encontro Romulo Fróes e Alice Coutinho, da já citada canção-título; Kiko Dinucci, do corpo libertário que é ser/estar no grito-canto da faixa Pra fuder; Rodrigo Campos, da prosa-canção na conversa ligeira de falares e gírias com Elza em Firmeza; Celso Sim, da Benedita identidade de quem tem “uma dupla caceta”, de quem é “da zona”, e “morre”, “mata”, “é craque”; Douglas Germano, da canção Maria da Vila Matilde, que na voz de Elza soa como um trovão contra a violência doméstica, quando avisa: “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Nela, vozes emulam cães, sambas, guitarras, violências que dançam. Por fim, posto sob a condução de Kastrup, fazem parte do álbum Marcelo Cabral, Felipe Roseno, Cuca Ferreira, Cacá Machado e um poema de Oswald de Andrade musicado por José Miguel Wisnik, na abertura do disco, não menos improvável, apenas n’A voz, n’A voz de Elza, como “navio humano, quente, negreiro do mangue/ navio humano, quente, guerreiro do mangue”, no que a traduz.
SANGUE NOS OLHOS
Neste ano, outras vozes tornaram a música muito mais que a reprodução de padrões. Em seus álbuns, a expressão sangue nos olhos pôde ser traduzida, ou reinscrita, no todo que compreendem suas obras, desenvolvidas no embaralhamento das canções, performances, narrativas, biografias, imagens e demais aparatos que fundem-se-confundem-se em suas próprias personas-criações: Ava Patrya Yndia Yracema, de Ava Rocha. Língua, de Alessandra Leão, e Selvática, de Karina Buhr são representações dessas vozes.
Suas obras abriram muitas frestas – ainda que o tempo presente dificulte essa impressão – sobre a voz da mulher, numa espécie de performance sobre a performance da canção. Esse duplo se apresenta na escolha das artistas por desnudar nas letras suas dicções, angústias, críticas, modos de linguagem.
Negro Leo tece suas críticas em 22 canções verborrágicas. Foto: Divugação
Enquanto o corpo de Ava se ilumina no escuro e na sobreposição de máscaras, literais ou não, Alessandra e Karina desnudam e incorporam em suas próprias personas o que as canções inferem, refletem, conquistam. De maneiras distintas, porém, através dessa conexão possível entre vozes, corpos e narrativas presentes em todo o aparato que envolve o lançamento de suas obras, ou seja, projeto gráfico, shows, performance, canções, debates, entrevistas etc., Ava, Alessandra – é preciso lembrar que Língua fecha uma trilogia, iniciada em 2014 – e Karina se impõem como artistas críticas de extrema importância para o tempo nebuloso e, ao mesmo tempo, instigante para quem lida com arte nesse começo de século 21.
MODOS DE SER/ESTAR
Outras vozes que conectam a música nos planos críticos sonoros, em que há esmero, experiência e relações muito próximas entre arte e vida, são os discos Ninõs heroes, de Negro Leo, e Fortaleza, da banda Cidadão Instigado. Como recortes, os álbuns aqui retratados tratam de fincar numa memória sonora, política e cultural, os seus modos distintos de ser/estar nesse “mercado de expectativas”, como canta Negro Leo, ou na diluição de uma cidade-Fortaleza-demais-
No entanto, há uma relação entre outras vozes contemporâneas a eles, mas, ao mesmo tempo, extemporâneas, porque parecem numa mesma medida territorializar e desterriorializar modos de construção estética. Mesmo nesses recortes heterogêneos que buscamos traçar, comparar, refletir sobre as produções musicais deste ano, artistas e obras como as lançadas por Rodrigo Campos, em Conversas com Toshiro, Zé Manoel, em Canção e silêncio, Passo Torto e Ná Ozzetti, em Thiago França, dentro do ambiente da canção brasileira permaneceram pairando num entrelugar estético. Rap, funk, música eletrônica, instrumental, noise e demais gêneros e desconstruções de gêneros certamente fizeram de 2015 um ano profícuo para a música brasileira. Será preciso uma infinidade de outros concisos recortes críticos para darmos conta da multiplicidade de vozes que compõem o universo da música contemporânea brasileira.
CARLOS GOMES, escritor, editor e curador da Outros Críticos, mestrando em Comunicação pela UFPE.