FOTOS DANIELA NADER
01 de Dezembro de 2015
De origem africana, o cuscuz se popularizou em todo o Brasil
Foto Daniela Nader
No Brasil, é prato de café da manhã, almoço e jantar, assumindo composições diversas, a depender do gosto e da hora do dia: servido puro e seco ou com manteiga, ovos mexidos e queijo coalho assado, no desjejum; como uma farofa ou na versão africana, ao meio-dia; e mergulhado no leite, doce ou salgado, para abrir a refeição da noite. Em Paris, apareceu pela primeira vez no século 17 e, hoje, é o segundo prato predileto dos franceses. No Marrocos, vende-se em qualquer lugar, das barracas ao redor da Praça Jemaa El-Fna, coração da medina em Marrakech, aos restaurantes mais sofisticados, passando por acampamentos no deserto e pequenos restaurantes à margem de estradas. Ricos e pobres se deliciam, brancos e negros lambem os beiços, africanos e seus colonizadores repartem o apreço pela iguaria. É fato: não se pode nem se deve contestar a universalidade e a popularidade do cuscuz.
A palavra surge do árabe kuskus, o que significa, segundo o dicionário Houaiss, “alimento preparado com sêmola”. Há grafias como a espanhola alcuzcuz e a francesa couscous – essa datada de 1505. A comida é antiga e tem origem no norte da África, no território conhecido como o Magrebe. “O cuscuz é um dos pratos mais tradicionais dos berberes, os povos nativos dessa região do continente africano, que vai do Marrocos até o Egito, compreendendo Argélia, Tunísia e Líbia. É um preparo feito como farinha, principalmente a sêmola do trigo sarraceno, mas também farinha de arroz e de milheto, que é diferente do milho”, explica o antropólogo e pensador da comida e da alimentação Raul Lody.
Lody, um carioca de nascença, idealizador do Museu da Gastronomia Baiana e morador de Pernambuco, acrescenta que o cuscuz pode ser considerado “a base do sistema alimentar do Magrebe”, por vários fatores. “Primeiro, por se tratar de uma comida rápida e prática, feita com a mistura da água com a farinha de sêmola. Segundo, por não precisar ser conservado. Terceiro, por ter valor nutritivo. Ele pode ter os acréscimos como carne, em especial de carneiro, ou mesmo ervas terapêuticas, o que o faria um condutor de profilaxia contra doenças. Ainda tem o cuscuz de festa, com tâmaras e passas, as frutas nativas daquela região.”
A primeira transcendência geográfica do alimento ocorreu no século 10, a partir da expansão do Islã.“O Magrebe passou a ser ocupado por mercadores e religiosos que vieram do Oriente Médio e introduziram o Islamismo. A própria palavra magreb quer dizer ocidente, em árabe. Então, nessa expansão do Islã do Oriente para o Ocidente, a Península Ibérica foi civilizada pelos magrebinos, pelos mouros e muçulmanos”, situa Raul Lody. Foram oito séculos de presença muçulmana na Espanha e em Portugal, o suficiente para deixar indeléveis marcas arquitetônicas, como os azulejos, e perenes hábitos alimentares, como o consumo de folhas, olivas e, claro, do cuscuz.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, no século 16, trouxeram consigo a herança moura. Nesse balaio de referências, vieram também “vários fundamentos do Magrebe”, como lembra o antropólogo. Tais fundamentos foram adaptados às condições locais. Ante a ausência do trigo sarraceno, saiu a semolina e entrou a farinha de milho. Permaneceu a etapa inicial do modo de fazer – a hidratação da farinha – e, com o passar das décadas e o aumento exponencial no consumo, entrou em cena uma panela específica e própria para a cocção do cuscuz. É impossível, quase improvável até, encontrar uma casa, principalmente no Nordeste, sem cuscuzeira.
BOM DE PREÇO
Na residência da antropóloga e pesquisadora Júlia Morim, por exemplo, cuscuz é item obrigatório do cardápio diário. Inclusive, as diferentes formas de apreciação são um indicativo de como a criatividade brasileira foi incorporando outros elementos para fazer surgir, assim, novas receitas. “Meu cuscuz predileto é com leite, açúcar em cima e com ovo. Passei a vida ouvindo piadas por causa disso, mas foi assim que minha mãe me ensinou. Meus dois filhos adoram. Vicente, o mais novo, gosta de comer com requeijão e ovo. Maria, a mais velha, prefere comer a farofa de cuscuz, com verdurinhas. Aliás, quando eu estava grávida dela, há 10 anos, o meu maior desejo era de comer cuscuz. Hoje, se colocarem um cuscuz de coco na minha frente, sou capaz de comer inteiro, sem dividir com ninguém”, confessa.
Receita de cuzcuz com frutos do mar é servida em restaurante do Recife
Na casa da psicóloga aposentada Margarida Gonçalves, cuscuz é sagrado – tem dia sim, dia não – e múltiplo. O clássico “amarelinho” é o preferido do neto, que come com manteiga e gema de ovo. Quando o filho mais velho vem passar férias, pede o “clássico” com queijo coalho assado. Já ela prefere a versão adocicada. “Gosto muito do cuscuz ensopado com leite de coco, mas, para ficar bom, tem que ser o leite do coco mesmo, e não o engarrafado. Como a minha mãe adora também, virou um prato da família. Mas gosto de deixar mais de uma opção de cuscuz, porque sempre tem alguém que chega para jantar, às vezes minha filha, outras vezes minha irmã e meus sobrinhos. Então, também costumamos fazer o cuscuz branco, preparado com a goma de tapioca”, comenta. Na sua despensa, o mínimo, em estoque, são quatro sacos de flocão de milho.
Para adquirir quatro sacos de flocão, a depender do supermercado e com pouca variação entre as marcas, os gastos vão de R$ 4 a R$ 6 – um valor bastante acessível. Esse aspecto econômico sempre deve ser ressaltado, de acordo com o antropólogo Raul Lody, cujo livro mais recente, A virtude da gula - Pensando a cozinha brasileira (Editora Senac), tem um capítulo inteiro dedicado ao cuscuz. “Não é por acaso que o cuscuz passou a ser um prato muito popular. Além da tradição, da herança histórica, é bom lembrar que a farinha mais básica custa menos de R$ 1. Esse dado econômico e social é relevante. Trata-se de um prato fácil, nutritivo e, acima de tudo, barato”, sustenta.
RECEITA DE CHEF
Ou seja, é uma matéria-prima saborosa, funcional e de baixo preço. Natural, pois, que seja usada, assimilada e reinventada por chefs de cozinha. A pernambucana Kika Costa, por exemplo, é adepta inveterada do cuscuz “desde sempre”. “Com manteiga, com leite de coco, com ovo, queijo coalho e café, de qualquer jeito. Aliás, não tem jeito: sempre acho bom demais”, diverte-se. Com 20 anos de experiência em gastronomia, e uma década de trabalho em concepção e consultoria de menus, ela criou um cuscuz com frutos do mar. “É uma receita exclusiva de um restaurante local. Como a casa fica na praia e tem muitos pratos com crustáceos, pensei em trazer o sabor do mar para o gosto bom do cuscuz. Virou febre. De vez em quando, meus amigos pedem para eu fazer”, diz.
De tradição berbebe, o cuscuz marroquino foi adaptado aos gostos nacionais
Um outro caminho para os chefs são as propostas de inserção do que hoje se convencionou chamar de “cuscuz marroquino” – a genuína tradição berbere acoplada aos hábitos locais. A chef olindense Carol Medeiros elaborou uma versão em que o cuscuz é servido como acompanhamento, tanto para vegetarianos (servido, então, com uma salada de grão-de-bico) como para apreciadores de carne. “Uso o grão de sêmola, misturo com azeite, sal e pimenta e hidrato com água quente. Depois de hidratar, é só temperar com cebola roxa, tomate e vinagre de maçã”, detalha.
Nos sete anos em que se especializou, primeiro em São Paulo, depois na França, ela constatou como o cuscuz é diversificado e onipresente. “Na minha infância, eu sempre comia com açúcar e leite. Mais velha, já preferia o cuscuz salgado, com ovo. Quando cheguei em São Paulo, conheci a versão temperada, com palmito, camarão, ervilha e milho. Lá na França, o cuscuz de sêmola é encontrado em todo supermercado. É parte da dieta deles. Muitas vezes, nos restaurantes em que trabalhei, era servido como o almoço dos funcionários, inclusive com merguez, uma linguiça que os muçulmanos comem muito”, relata Carol Medeiros.
Talvez, em um mundo não tão cindido pela intolerância religiosa ou não tão regido pelo capitalismo excludente, o cuscuz pudesse ser o prato principal na ceia da (re)integração. De origens magrebinas, difundido pelos muçulmanos e adotado pelos ocidentais, o cuscuz existe no sertão nordestino, nas mesas dos restaurantes com estrelas no Guia Michelin e nas cabanas africanas. Amarelo, ocre ou branco, como o bolo de tapioca vendido aos berros de “olha o cuscuz” pelos ambulantes nas praias do Rio de Janeiro, é um verdadeiro alimento inclusivo e democrático.
LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.