ESTREIA LUSA
O pianista português Júlio Resende tem fresca na memória a primeira vez que escutou a voz de Sílvia Pérez Cruz, era 2012. Navegando na internet, abriu um vídeo da espanhola cantando a canção Pare meu (que em catalão significa “meu pai”), música que integra o primeiro álbum solo da moça. “Escutei aquilo e percebi que ali havia algo muito intenso e bem- delineado”, diz o músico. Um ano depois, Resende assistiu a um concerto de Sílvia num festival de músicas do mundo que acontece em Portugal. Entregou-lhe um disco e, meses depois, fez o convite para que tocassem juntos em Lisboa, num projeto do português chamado Fado and Further. Foi um concerto no auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, um lugar conhecido por receber um público tão conhecedor de música, como exigente. Ainda assim, já na terceira música, a plateia passou a aplaudi-los de pé.
“Eu sabia que, se não houvesse algum problema de som ou se ninguém esquecesse a letra ou a melodia, aquilo ia funcionar bem”, diz Resende. Naquela noite, além de uma canção de Sílvia e do clássico mexicano Cucurrucucú Paloma, tocaram um fado. “Foi uma sugestão minha, eu queria mostrar às pessoas que o fado pode ser sentido em outro idioma, e pode até ser dito em outro idioma.” Depois dessa marcante estreia, a cantora já tem agendado dois concertos na capital lusa para os próximos meses.
Um dos elogios mais frequentes que se escuta em relação a Sílvia é o de ser capaz de transformar tudo o que interpreta em algo seu. Como se tivesse se apropriado de tudo o que escutou e estudou para construir o seu estilo. “Ela tem formação musical e é capaz de juntar o erudito e o popular com uma assustadora naturalidade”, define Troquel. Suas influências musicais são variadas. Vão do clássico às canções regionais, do fado ao samba, do som caribenho ao rock. Esse estilo único se explica não só pelo domínio da técnica musical, mas também pela história da sua vida.
A família tem raízes na Galícia e em Múrcia, dois universos totalmente diferentes da Espanha e que têm características musicais próprias. Os sons do Caribe, que tanto interessavam ao pai, estão no seu sangue, assim como a música portuguesa, país que Sílvia frequenta muito porque tem uma irmã que mora lá. “Sou do mar e isso forma parte da minha música, mas me sinto em sintonia com as cantoras galegas ou andaluzas, ou de Mallorca e Portugal. Minha maneira pura de cantar tem muito a ver com as cantigas populares, a minha poderia ser a voz das avós da Península”, explicou Silvia, recentemente, ao jornal El País.
Essa “menina velha”, como também era chamada na infância, é daqueles raros casos em que há unanimidade de crítica. Por onde passa, ganha elogios de músicos, especialistas e público. Refree, produtor de um disco, parceiro em outro e amigo de Sílvia, diz que ela é a “pessoa com mais talento musical” que viu na vida. Para Luis Troquel, é dona da voz mais “pessoal e intensa” que apareceu na música espanhola nas últimas décadas. Júlio Resende vai mais longe: “A Amália (Rodrigues) foi a maior voz da Península Ibérica, acho que não há dúvida quanto a isso. Ela possuía aquela força que entrava nas pessoas. E acho que a Sílvia também tem essa centelha. Se a sua carreira seguir o caminho que se imagina, tem todas as possibilidades de se tornar a cantora mais importante da história da Espanha”.
Algumas das cabeças mais lúcidas da Península Ibérica, como o filósofo e escritor espanhol Miguel de Unamuno e o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago, advogaram pela criação de uma pátria supranacional, que integraria Portugal e Espanha, uma união ibérica. Um espaço em que caberia a melancolia portuguesa, a força vital da Andaluzia, o brilho da Catalunha, o mistério da Galícia; enfim, um lugar como a voz de Sílvia Pérez Cruz.
RICARDO VIEL, jornalista, radicado em Portugal, colabora com diversas publicações brasileiras.