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A voz da sonhada Ibéria

Influenciada pelo flamenco, a cantora espanhola Sílvia Pérez Cruz angaria boas críticas à sua interpretação vigorosa, e é apontada como a maior intérprete da península ibérica, na atualidade

TEXTO Ricardo Viel

01 de Dezembro de 2015

Sílvia Pérez Cruz

Sílvia Pérez Cruz

Foto Lurdes R. Basolí/Divulgação

Calella de Palafrugell é uma pequena praia da Catalunha a meio caminho entre Barcelona e Girona, uma antiga vila pesqueira de casinhas simples, todas pintadas de branco, que no verão se enche de turistas à procura de sol, da bela paisagem e das águas quentes e tranquilas do Mediterrâneo. Nos anos 1990, nesse paraíso da Costa Brava, surgiu a lenda de uma menina que fazia chorar quando cantava. Seu nome é Sílvia Pérez Cruz, mas era conhecida por aquelas bandas como Alfonsina, por causa do clássico latino-americano consagrado na voz de Mercedes Sosa (Alfonsina y el mar) que a pequena, acompanhada do pai, costumava interpretar nas tabernas de Calella. O progenitor, Castor Pérez, foi um destacado impulsor dashabaneras (ritmo nascido no Caribe, no século 19, e trazido para a Espanha pelos marinheiros), uma figura conhecida e respeitada no ambiente cultural catalão, e uma referência musical para a filha.

Quando começou a cantar com o pai, Sílvia tinha 12 anos, mas desde os quatro estudava música clássica. Ainda na infância, aprendeu a tocar piano e saxofone. Fez parte de um coral e de alguns projetos artísticos (a mãe é professora de arte e cantora), até que, aos 18 anos, rumou a Barcelona para continuar os estudos. Foi por essa altura que o jornalista e escritor Luís Troquel a conheceu num concurso de teatro amador. “Eu fazia parte do júri. Era uma tarde de domingo, acho que no começo do ano de 2002, não tenho certeza. O que tenho certeza é do impacto revelador que me gerou aquela voz. Porque foi literalmente assim: uma voz inesperada no escuro.”

É que Sílvia vinha caminhando do fundo do teatro, por trás do público, que a ouvia sem vê-la. “Não preciso dizer que ainda faltava um longo caminho para ela ser a enorme cantora que é hoje, mas já tinha sua marca, tão ancestral como atual.” No final da apresentação, Troquel pediu para conhecer a garota. “Encontrei uma menina com óculos, muito tímida, visivelmente desconcertada diante do meu entusiasmo.” Ainda demoraria mais de uma década para que aquela moça dos cabelos longos e encaracolados, dona de uma voz inesquecível, se tornasse conhecida, mas Troquel sabia que era uma questão de tempo para que isso acontecesse.

O caminho foi demorado, mas bem-trilhado. Em Barcelona, Sílvia estudou canto e começou a namorar com o jazz. Também teve contato com vários outros ritmos, como o flamenco, a bossa nova e o folk. Participou de mais de uma dezena de coletivos e gravou com vários deles. Os mais conhecidos, o grupo de flamenco As Migas e o trio de jazz do contrabaixista Javier Colina – com quem gravou um disco de boleros. “Fui formando o meu discurso musical, respeitando a base de sempre, mas com os recursos que adquiri de cada estilo. Não domino nenhum profundamente, mas domino essas linguagens. Se quisesse ter sido cantora de flamenco, não teria futuro, mas encontrei o meu lugar porque cantava flamenco à minha maneira”, explicou a cantora, numa entrevista recente.

Antes mesmo de fazer um disco próprio, Sílvia Pérez Cruz enchia teatros e salas de espetáculo na Catalunha. Nas apresentações, alternava canções mais conhecidas com algumas suas, e assim viu crescer o número de admiradores do seu trabalho – e também a cobrança para que gravasse essas músicas.

Em 2012, lança o esperado álbum solo 11 de novembre (data de aniversário do pai, que faleceu em 2010 e a quem o disco é dedicado), no qual, além de cantar, toca vários instrumentos. Sílvia também fez os arranjos das canções (todas, composições próprias) e coproduziu o disco. Em 2014, acompanhada do violão do produtor catalão Refree (Raul Fernández Miró), a cantora lançou o álbum Granada, uma viagem musical que começa na Alemanha de Schumann, passa pela França de Edith Piaf, percorre a América Latina de Violeta Parra, Novos Baianos (numa preciosa versão deAcabou chorare) e Simón Díaz (autor de Tonada de luna llena), faz referência a David Bowie (The man who sold de world) e chega à Península Ibérica, com músicas populares de distintas épocas – e cantadas em vários idiomas.

Durante mais de uma década, Sílvia Pérez Cruz foi o que Luís Troquel define como “a musa da alta cultura” espanhola. Era conhecida e venerada na Catalunha, mas demorou muito tempo para que começasse a ser falada nas outras partes do país. “Ela nunca teve pressa para fazer sucesso. Durante anos, alternou projetos; houve um tempo em que ela cantava praticamente todos os dias, mas cada dia um repertório completamente diferente, com músicos diferentes. Na Catalunha, já faz muito tempo que, sem publicidade, a não ser o boca a boca, ela lota salas.” Para o crítico musical, o que Sílvia vem fazendo é uma carreira sólida, passo a passo. “Ela tinha, na Espanha, um público que esperava por esses discos, e esse público agora cresce de concerto para concerto.”


Frequentemente elogiada, a intérprete é capaz de transformar tudo o que canta em algo seu. Foto: Xavier Vila/Divulgação

ESTREIA LUSA
O pianista português Júlio Resende tem fresca na memória a primeira vez que escutou a voz de Sílvia Pérez Cruz, era 2012. Navegando na internet, abriu um vídeo da espanhola cantando a canção Pare meu (que em catalão significa “meu pai”), música que integra o primeiro álbum solo da moça. “Escutei aquilo e percebi que ali havia algo muito intenso e bem- delineado”, diz o músico. Um ano depois, Resende assistiu a um concerto de Sílvia num festival de músicas do mundo que acontece em Portugal. Entregou-lhe um disco e, meses depois, fez o convite para que tocassem juntos em Lisboa, num projeto do português chamado Fado and Further. Foi um concerto no auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, um lugar conhecido por receber um público tão conhecedor de música, como exigente. Ainda assim, já na terceira música, a plateia passou a aplaudi-los de pé.

“Eu sabia que, se não houvesse algum problema de som ou se ninguém esquecesse a letra ou a melodia, aquilo ia funcionar bem”, diz Resende. Naquela noite, além de uma canção de Sílvia e do clássico mexicano Cucurrucucú Paloma, tocaram um fado. “Foi uma sugestão minha, eu queria mostrar às pessoas que o fado pode ser sentido em outro idioma, e pode até ser dito em outro idioma.” Depois dessa marcante estreia, a cantora já tem agendado dois concertos na capital lusa para os próximos meses.

Um dos elogios mais frequentes que se escuta em relação a Sílvia é o de ser capaz de transformar tudo o que interpreta em algo seu. Como se tivesse se apropriado de tudo o que escutou e estudou para construir o seu estilo. “Ela tem formação musical e é capaz de juntar o erudito e o popular com uma assustadora naturalidade”, define Troquel. Suas influências musicais são variadas. Vão do clássico às canções regionais, do fado ao samba, do som caribenho ao rock. Esse estilo único se explica não só pelo domínio da técnica musical, mas também pela história da sua vida.

A família tem raízes na Galícia e em Múrcia, dois universos totalmente diferentes da Espanha e que têm características musicais próprias. Os sons do Caribe, que tanto interessavam ao pai, estão no seu sangue, assim como a música portuguesa, país que Sílvia frequenta muito porque tem uma irmã que mora lá. “Sou do mar e isso forma parte da minha música, mas me sinto em sintonia com as cantoras galegas ou andaluzas, ou de Mallorca e Portugal. Minha maneira pura de cantar tem muito a ver com as cantigas populares, a minha poderia ser a voz das avós da Península”, explicou Silvia, recentemente, ao jornal El País.

Essa “menina velha”, como também era chamada na infância, é daqueles raros casos em que há unanimidade de crítica. Por onde passa, ganha elogios de músicos, especialistas e público. Refree, produtor de um disco, parceiro em outro e amigo de Sílvia, diz que ela é a “pessoa com mais talento musical” que viu na vida. Para Luis Troquel, é dona da voz mais “pessoal e intensa” que apareceu na música espanhola nas últimas décadas. Júlio Resende vai mais longe: “A Amália (Rodrigues) foi a maior voz da Península Ibérica, acho que não há dúvida quanto a isso. Ela possuía aquela força que entrava nas pessoas. E acho que a Sílvia também tem essa centelha. Se a sua carreira seguir o caminho que se imagina, tem todas as possibilidades de se tornar a cantora mais importante da história da Espanha”.

Algumas das cabeças mais lúcidas da Península Ibérica, como o filósofo e escritor espanhol Miguel de Unamuno e o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago, advogaram pela criação de uma pátria supranacional, que integraria Portugal e Espanha, uma união ibérica. Um espaço em que caberia a melancolia portuguesa, a força vital da Andaluzia, o brilho da Catalunha, o mistério da Galícia; enfim, um lugar como a voz de Sílvia Pérez Cruz. 

RICARDO VIEL, jornalista, radicado em Portugal, colabora com diversas publicações brasileiras.

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