'Califórnia': Sobre aquilo que não se concretiza
Primeiro longa-metragem de ficção da cineasta Marina Person traz a história de uma adolescente paulistana no início da década de 1980
TEXTO Luciana Veras
01 de Dezembro de 2015
A atriz Clara Gallo estreia como protagonista do longa-metragem
Foto Aline Arruda/Divulgação
Entre o estalo inicial para contar uma história centrada na juventude do Brasil, nos anos 1980, e as filmagens de Califórnia, 10 anos se passaram na vida da cineasta paulista Marina Person. “As ideias começaram a surgir em 2004, quando passei a me reunir com amigas que haviam estudado comigo no colégio, com mil ideias, mas sem estrutura alguma. Uma coisa, no entanto, nunca mudou: seria sempre a história da Estela, começando na primeira menstruação e terminando com a primeira transa”, relata Marina à Continente, a respeito do seu primeiro longa-metragem de ficção, com estreia nacional no início deste mês.
Portanto, para a diretora e para seus personagens, Califórnia traz, na essência e desde a gênese, essa vivência do inédito, essa compilação das experiências que inauguram novas fases da vida. Estela (Clara Gallo) é uma adolescente paulistana que, em 1984, aos 17 anos, prepara-se para fazer vestibular. Seu maior sonho, contudo, não é ser aprovada e, sim, empreender uma jornada a partir de Los Angeles com o tio Carlos (Caio Blat), que lhe envia fitas gravadas com relatos de shows, fazendo, assim, a distância, a educação sentimental, musical e cinematográfica da sobrinha. Dois anos antes, combinara com os pais (Virginia Cavendish e Paulo Miklos) a troca da festa de debutante pela viagem pré-universidade. Quando o espectador a conhece, tudo que a protagonista faz é marcar os pontos que pretende visitar num gigantesco mapa da Califórnia na parede do seu quarto.
“Não é um filme autobiográfico”, diz Marina Person, “mas tem muita situação que eu vivi mesmo”. “Queria contar um pouco como foi ser adolescente em São Paulo, no ano das Diretas Já, algo muito marcante para mim, e com a chegada da Aids. Nós somos os filhos da geração dos anos 1960, que queimou sutiã, que emancipou a mulher e, quando as coisas pareciam que iam melhorar, na nossa vez de aproveitar, veio a Aids”. Tio Carlos, o ídolo de Estela, não consegue esperá-la nos Estados Unidos; doente, ele regressa ao Brasil e, sob o olhar cuidadoso da sobrinha, hospeda-se na casa da irmã.
Doença do tio (Caio Blat) frustra o desejo de Estela de conhecer a Califórnia.
Foto: Aline Arruda/Divulgação
Sua volta coincide com a chegada de JM (Caio Horowicz), um jovem que só se veste de preto, lê Albert Camus e ouve Echo and the Bunnymen. Ele é o oposto do surfista Xande (Giovanni Gallo), por quem Estela tem uma queda. As dúvidas, as contradições, as ansiedades da adolescência e, claro, a possibilidade concreta da iniciação sexual permeiam Califórnia. São fios que a narrativa ata com naturalidade, sem nada escamotear ou forjar situações de um didatismo excessivo. A vida não vem com bula, afinal. “O primeiro título era A vida não é filme. Quase no final, Gustavo Rosa de Moura, meu marido e parceiro na Mira Filmes, sugeriu Califórnia, que acaba sendo o idílio, a utopia. O filme é sobre como aprender a lidar com tudo que você não concretiza”, sintetiza a diretora.
ELENCO
Aprendizado é uma palavra-chave que Marina Person usa para descrever a relação que estabeleceu com o elenco. “Eu testei quase 300 jovens para todos os papéis. Na hora em que encontrei, tive sorte. A Clara, por exemplo, nunca tinha feito nada, era totalmente inexperiente. Fiquei superintrigada com ela, com seu jeito de quem quer, mas parece que não consegue falar. Já o Caio Horowicz, quando entrou no teste, me deu um arrepio. Uma aparição, esse menino. Depois, não quis testar mais ninguém. E hoje não quero fazer mais nada sem eles. Estou desenvolvendo dois projetos, um com a Clara, outro com o Caio. Fico inspirada por eles. São meus musos”, relata.
Longa digirigo por Marina Person é marcado pela chegada da Aids e pelas Diretas Já.
Foto: Aline Arruda/Divulgação
Clara, Caio, Giovanni, Lívia Gijon e Letícia Fagnani, que interpretam Joana e Alessandra, as melhores amigas de Estela, passaram por “um super trabalho de preparação”. A ideia não era apenas criar uma intimidade entre eles, mas prepará-los para evocar uma época que não viveram. “Conversamos bastante sobre as referências dos anos 1980, principalmente sobre a comunicabilidade. Não havia internet ou mesmo computador em casa. Para fazer um trabalho da escola, a gente tinha que ir atrás das enciclopédias e das revistas. A Clara, por exemplo, não sabia mexer no gravador. Todos eles foram rápidos em absorver tudo, até porque essas coisas são o entorno. A questão da adolescência, esses hormônios explodindo, as indagações todas na cabeça deles, todo mundo passou por isso. Eles imediatamente se conectaram com o principal”, resume.
Califórnia, por sua vez, também se conecta com o público a partir das músicas que ajudam a compor o retrato daquele grupo de jovens e, por conseguinte, dessa geração. New Order, The Cure, Joy Division, Blitz, Titãs, Kid Abelha e Metrô são ouvidas em cena, transportando Clara e sua trupe para uma pista de dança imaginária, e a plateia mais velha para todas as festas já vividas. Na sessão da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, na qual a Continente assistiu ao filme, não eram poucos os espectadores, de diferentes faixas etárias, a cantarolar e bater o pé quando irrompiam os acordes de Caterpillar, Transmission ou Ceremony.
Ator Caio Horowicz está envolvido em outros projetos com a diretora.
Foto: Aline Arruda/Divulgação
Outros grupos, como The Smiths e Camper Van Beethoven, são apenas citados. “Essas autorizações dão um enorme trabalho e custam caríssimo. Queríamos botar The Smiths numa cena da loja de discos, mas ficou muito caro para liberar. Também queria muito usar o Talking Heads, mas pediram 40 mil dólares para licenciar Psycho killer. Pensei em usar Dear prudence, dos Beatles, mas seria algo em torno de 60 mil dólares. Impossível. Tudo tem que pagar, até quando o Xande toca De repente, Califórnia no violão. No final, entraram as bandas brasileiras e só as inglesas”, conta Marina Person.
E, no final, há muito dela na protagonista Estela e nesse que se tornou seu primeiro filme após o documentário Person (2006), em que resgatava a trajetória do pai, o cineasta Luiz Sérgio Person (1936-1976). “Quase todos os discos, 80% deles, que aparecem no filme, são meus. Eu também ouvia essas bandas, era fã do David Bowie. Guardo muita coisa daquela época ainda. A gente é meio a soma de tudo que viu, ouviu e leu na vida: filmes, discos, livros, obras de arte… Califórnia é também sobre como você planeja tanto uma coisa, como a Estela com sua viagem, mas nada acontece conforme o imaginado. Um pouco como a vida mesmo.”
LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.