Arquivo

Os que fugiam aos padrões

Jornalista Clarice Hoffmann lança, neste mês, site baseado na pesquisa O Obscuro fichário dos artistas mundanos, levantamento realizado a partir de fichas da DOPS datadas entre 1934 a 1958

TEXTO Luciana Veras

01 de Novembro de 2015

Imagem Arte sobre fotos de arquivo

Não se trata pois de dizer que a “História” é feita apenas das histórias que nós nos contamos, mas simplesmente que a “razão das histórias” e as capacidades de agir como agentes históricos andam juntas. A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer.
(Jacques Rancière, A partilha do sensível)

A jornalista Clarice Hoffmann havia sido contratada para fazer pesquisa iconográfica para o livro Mulheres negras do Brasil, um projeto da Rede de Desenvolvimento Humano/Redeh, quando se deparou com o prontuário de uma deputada negra no Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, no centro do Recife. Ficou curiosa, ao verificar que aquelas informações haviam sido arroladas a mando da Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco/DOPS-PE, e pensou em cascavilhar para ver se achava algo sobre sua avó, Gusta Gamer, uma atriz ucraniana que chegara ao Brasil entre a I e a II Guerras. Ela havia crescido com as histórias de que a matriarca teria sido fichada pelo governo por causa de sua ocupação.


Boa parte das fichas catalogadas é de artistas que participavam da Festa da Mocidade, como a bailarina italiana Vitoria Copola. Imagem: Fundo Dops/PE - Apeje

Era 2003, quase uma década antes da entrada em vigor da Lei 12.527/11, “que regulamenta o direito constitucional às informações públicas”. A Lei de Acesso à Informação passou a ser oficial em 16 de maio de 2012. Impressionada com a descoberta do documento sobre a deputada, Hoffman, uma carioca há muito radicada em Pernambuco, ouviu da historiadora Marcília Gama, então vinculada ao Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, que havia mais. “Ela trouxe duas gavetas que estavam guardadas no setor. Quando abri, não acreditei no que via: fotos 3x4 de pessoas como Dalva de Oliveira, Grande Otelo e outros artistas”, recorda Hoffmann.

Plantava-se, ali, a semente d’O Obscuro fichário dos artistas mundanos, projeto idealizado e coordenado por Clarice Hoffmann, financiado pelo Rumos Itaú Cultural e pelo Funcultura e tornado público, em pequenas pílulas textuais e imagéticas numa página do Facebook, no primeiro semestre de 2015. Neste mês de novembro, haverá o lançamento do site e da convocatória artística de criação de narrativas em mídia digital a partir do material reunido. Em números, esse material se alastra por 404 pessoas fichadas, 432 pastas consultadas e 612 recortes de jornal extraídos de período que se inicia em 1934 e se estende até 1958 – pouco antes da ditadura do Estado Novo e seis primaveras antes do golpe militar de 1964.


Pai do artista visual Paulo Bruscky, Eufemius Bruscky fez parte de Os Cossacos de Kuban. Imagem: Fundo Dops/PE - Apeje

A compilação do impressionante acervo que constitui O Obscuro fichário dos artistas mundanos se deu, de fato, muito tempo depois daquela visita de Hoffmann ao Arquivo Público. “Na época, como ainda não havia a Lei de Acesso à Informação, eu poderia até ver as fichas, mas não tinha acesso aos prontuários. Fiquei com aquele arquivo na minha cabeça por anos”, lembra. Escalada para trabalhar na pesquisa do longa-metragem Tatuagem, escrito e dirigido por Hilton Lacerda, e mergulhando novamente em memórias do tempo no qual o Brasil vivia sob o peso das Forças Armadas, ela resolveu voltar àquele fichário: “Quando retornei lá, já não havia problema em consultar todo o material. Perguntei à funcionária que me atendeu: ‘Alguém já veio perguntar por essas fichas?’ E ela respondeu: ‘Não, nunca’”.

Era um tesouro – a ideia que lhe invadiu foi essa. Clarice passou três meses sistematizando as fichas, “por conta própria”. Percebeu, de imediato, que a maioria correspondia a mulheres – 60% – e que cerca de 40% era de estrangeiros – os únicos que, em tese, possuíam a obrigação de procurar a DOPS ao chegar ao Brasil, posto que precisavam ser identificados quando em passagem pelo país. Não demorou para a jornalista e pesquisadora observar, ainda, que os artistas eram as principais vedetes, por assim dizer, dos agentes da delegacia. Mágicos, ilusionistas, contorcionistas, transformistas, cantores, dançarinas, músicos da Europa, das Américas e da Ásia vinham ao Recife e davam à capital pernambucana o status de uma metrópole efervescente.


O anão Sixto Gallo se apresentou no Circo Hispano-Americano, armado no Parque 13 de Maio, em 1950. Imagem: Fundo Dops/PE - Apeje

Foi essa constatação que levou Hoffmann a procurar o historiador potiguar Durval Muniz de Albuquerque Jr. “Eu tinha lido A invenção do Nordeste e outras artes, em que ele fala do uso da palavra ‘Nordeste’ e da criação do imaginário de uma região obsoleta, rural, arcaica. As fichas que eu tinha em mãos, porém, me mostravam que o Nordeste também era urbano e cosmopolita. O Recife era um porto aonde chegavam esses artistas do mundo inteiro”, aponta ela. O professor do Departamento de História da UFRN não apenas aceitou o convite para participar, como se encarregou da assessoria histórica do Obscuro fichário.

FISIONOMIAS “AMEAÇADORAS”
Em entrevista à Continente, ele ratifica a tese que defende em texto a ser disponibilizado no site O obscuro fichário dos artistas mundanos: a razão para o fichamento dessas pessoas residia na ameaça que suas fisionomias e características físicas representavam para a ordem política, social e cultural vigente. “O fichário começa um pouco antes da ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas, um período em que volta a se fortalecer a relação com a Igreja Católica, pois esta havia ficado à margem do poder na Primeira República. Havia também a prevalência do pensamento eugenista do nazifascismo e, assim, o ideal de um corpo ‘oficial’ ou modelo. As pessoas fichadas pela DOPS eram o oposto disso. Eram corpos desprezíveis que desafiavam o ponto de vista da normalidade: as mulheres barbadas, os anões, os contorcionistas, as mulheres que trabalhavam na noite e não eram casadas, os negros. Juntava-se a ideia de um corpo moral, defendida pela Igreja, com a perspectiva de um corpo biológico estranho”, argumenta o professor Durval Muniz de Albuquerque Jr.


Como parte do acervo, mapa situa os locais de trânsito de artistas fichados entre as décadas de 1930-50. Imagem: Acervo da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco

Havia ainda o que ele descreve como uma “aversão ao nomadismo”. “Um regime intolerante prefere a sedentariedade, pois a fixação em um determinado lugar facilita o ato de vigiar. Os artistas eram nômades, viviam em vários lugares e sob outros códigos sociais, às vezes mudavam de nome, tinham pseudônimos diferentes para cada estado”, prossegue o historiador e professor. Clarice Hoffmann atenta para o fato de que os elaborados relatos das atividades dessas pessoas na capital pernambucana, preparados por agentes da DOPS mediante tocaias e delações, são um conjunto de provas de como operavam as estruturas de controle e repressão: “É importante destacar que essas biografias presentes nas fichas nunca poderiam ser tomadas como verdades, e, sim, como peças de ficção em que se pode perceber a maquinaria discursiva do regime”.

São as “ficções” a que alude o filósofo francês Jacques Rancière em A partilha do sensível e seus rearranjos entre o que se vê e o que se diz. O Obscuro fichário dos artistas mundanos é, também, uma possibilidade de recombinação das noções de identidade, territorialidade e alteridade, um farol a iluminar um enigmático capítulo da história recente do Brasil e um resgate de pequenas trajetórias fadadas ao esquecimento. “O mundo virtual deu concretude ao passado. Se não fossem as hemerotecas digitais, nunca poderíamos ter acesso a essas vidas, muito menos relacioná-las ao que acontecia na época”, ressalta Hoffmann. No site, as passagens de Norberto Americo Aymonino, Sixto Argentino Gallo e Margarida Hernandez, por exemplo, pelos palcos recifenses são alinhavadas com os documentos extraídos da DOPS e por meio de trechos do noticiário.

IMPERIAL CASINO
O arquivo digitalizado do Diário da Manhã, disponibilizado ao projeto pela Companhia Editora de Pernambuco/Cepe, foi “uma fonte preciosa”, nas palavras da pesquisadora. É assim que sabemos que o argentino Aymonino, o Aymond, era um transformista que, em 1938, esteve no Casino Grande Hotel precedido por anúncios como “Aymond, em suas curiosas e brilhantes apresentações – Homem ou mulher?” e “Aymond, artista de dupla personalidade, em apresentações e tipos variados”. Dois anos antes, Margarida Hernandez, nome artístico Marga, era estrela solo no Imperial Casino como uma “coupletistainternacional”. Em 1950, Sixto Gallo era um anão que integrava as atrações do Circo Hispano-Americano armado no Parque 13 de Maio. Segundo o periódico, “em turnê pelas Américas, chegava para apresentar o mais moderno espetáculo circense já visto na capital pernambucana!”.

Outros estrangeiros notáveis eram Os Cossacos de Kuban, que incluíam o ucraniano Leônidas Ordyngew e o russo Boris Popoff, donos do bar e “restaurante familiar” Tabu. O Tabu, aliás, é recorrente nos verbetes, assim como o Imperial Casino e o Casino Grande Hotel, tríade de excelência da “cartografia das delícias”. No site, o Recife dos anos 1930 aos anos 1950 aparece com seus mapas antigos, dividido nessa e nas cartografias da paranoia, da política, do nomadismo e das artes. Durante os anos 1940, o Tabu – localizado na Rua do Hospício, 65 – funcionou como uma encruzilhada geográfica a receber os artistas internacionais, os policiais infiltrados, os jovens que, décadas depois, seriam considerados “subversivos” e os protagonistas e coadjuvantes da cultura local. Entre eles, um membro dos Cossacos fichado como Eufemiuck Brucki ou Eufenyusz Brucki. Durante a pesquisa, a equipe do Obscuro fichário confirmou o que a grafia, posteriormente “aportuguesada” para Eufemius Bruscky, denotava: tratava-se do pai do artista visual Paulo Bruscky.


Em 1948, Grande Otelo era fichado ao chegar para se apresentar com o Circo Nerino. Imagem: Fundo Dops/PE - Apeje

Clarice Hoffmann conta que as irmãs da escritora ucraniana Clarice Lispector foram fichadas, assim como “famílias inteiras de esquerda”. Um dos achados mais simbólicos de seu notável trabalho de pesquisa é a certeza de que esse fichamento ostensivo e metódico serviu de esteio para as práticas de cerceamento de direitos e liberdades individuais advindas com a instauração da ditadura militar. “No período democrático, quando os partidos políticos voltaram a ser legalizados e as pessoas correram para se filiar ao PCB, aí é que se fichava mesmo”, diz Clarice. “A estrutura repressiva não foi desmantelada entre 1946 e 1964, ou seja, durante a democracia os fiscais da DOPS/PE continuaram a vigiar, agora com mais fantasias, pois havia o temor da espionagem, do comunismo”, situa o professor Durval Muniz de Albuquerque Jr.

Em um país que permanece “muito atrás dos vizinhos de continente”, no que se refere à abertura total dos arquivos do regime militar e na própria maneira de lidar com o pós-ditadura (“fomos os únicos da América Latina a anistiar torturadores”, lamenta o historiador e professor potiguar), O Obscuro fichário dos artistas mundanos é mais do que admirável: é essencial, ainda mais em tempos nos quais “corpos estranhos” – vide os alarmantes índices de assassinatos de transexuais e travestis – seguem a ser hostilizados.

“Estamos vivendo um tenebroso momento de uma regressão civilizacional da sociedade brasileira. Periodicamente, vem à tona a dimensão fascista dessas forças conservadoras que temem as mudanças e as transformações sociais. A extrema direita saiu do armário e perdeu a vergonha de, privilégios à parte, reivindicar um novo golpe. Vivemos ainda os ecos da escravidão e essa intolerância ao diferente, tudo isso com uma polícia militarizada, um dos braços auxiliares das Forças Armadas durante a ditadura, que segue a praticar torturas”, contextualiza o professor Durval Muniz de Albuquerque Jr. Que outros fichários ressurjam e que possibilitem, pois, novas revisões da história contemporânea de uma nação que, talvez, ainda não saiba lidar com o que foge à ordem. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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