Financeiramente, o filme dublado tem sido um bom negócio. A pesquisa do Filme B mostra que a renda dos dublados foi de 57% do total em 2014, contra 32% dos legendados e 11% dos brasileiros. Entre os exibidores, a rede Cinemark, com aproximadamente 570 salas no país, espalhadas em 77 complexos, foi a campeã no posicionamento dos dublados, totalizando 50,6% de seus espectadores para estes filmes, ante 36,8% nos legendados. “A constante melhoria dos processos de dublagem otimizou o interesse do público pelo formato”, diz Betina Boklis, diretora de marketing da Cinemark. “A rede analisa, junto da sua equipe, a demanda de cada complexo para determinar quais salas receberão a versão dublada, legendada ou ambas as versões. Avaliamos resultados de filmes similares e experimentamos.”
Até mesmo redes exibidoras de títulos menos comerciais, como é o caso da Espaço de Cinema, têm se rendido à presença do filme dublado. “Já coloquei num mesmo circuito versões dubladas e legendadas de um filme. Com um, tive público de uns 2.000 espectadores; com o outro, 300 pessoas”, compara o programador Adhemar Oliveira, um dos nomes mais conhecidos no setor. “É claro que varia de cidade para cidade e de cinema para cinema, em alguns prevalecendo o filme dublado e, em outros, o legendado. Mas é questão de aderência. O público brasileiro está aceitando a dublagem com naturalidade, e isso não pode ser olhado com preconceito.”
Países como a França naturalizam a dublagem de estrangeiros. Foto: Divulgação
Para Butcher, o grande problema do atual cenário surge a partir do momento em que o mercado pende para apenas um lado, eliminando (ou quase) os filmes legendados de suas cartelas de opções em prol da busca pelo ganho mais garantido do filme dublado. “Nas cidades do interior e nas periferias, principalmente, a oferta de legendados tende a ser mínima ou nenhuma, o que certamente é uma sacanagem com quem prefere ver filme na língua original”. Ele ainda vê como “uniformização perigosa” a padronização de determinados nichos de programação, pasteurizando o circuito a partir de desempenhos específicos e diminuindo a variedade de oferta. “Muitas vezes, ao não ofertar determinado filme ou determinada versão do filme, o exibidor está praticamente empurrando aquele que seria seu consumidor mais fiel, o amante de cinema, para a pirataria.”
O fantasma do filme pirata é, de fato, uma realidade dentro de um mercado que passa a ofertar apenas o tipo de produto que agrada à maioria, em detrimento da preferência de fatia significativa (ainda que menor) que não se vê contemplada. O resultado pode ser o afastamento de uma parcela do público de filmes comerciais nos cinemas e a transformação das salas alternativas em espécies de “templos” do filme legendado, já que, nesses espaços, o espectador habitual tende a ser mais fiel e cativo. “Pelo histórico do que acontece na Europa, onde a questão do protecionismo cultural é mais latente e a regra é dublar os filmes nas línguas locais, a tendência é que, ao ouvir seu idioma na tela, o público se habitue a isso”, analisa Marcelo Hessel. “Ao mesmo tempo, a oferta de filmes em outras mídias e a oportunidade de assistir a um filme legendado (clandestinamente ou oficialmente) em casa pode tornar a dublagem ainda mais hegemônica nos multiplexes.”
Adhemar Oliveira fez recentemente o experimento inverso, para avaliar como seu público se comporta: enquanto todas as grandes redes exibiam a animação Divertida mente em versões dubladas e em 3D, ele lançou, em pleno Espaço Unibanco da Rua Augusta, em São Paulo, uma cópia do filme legendada e em 2D. “Funcionou muito bem, porque é claro que existe a demanda”, afirma.
EUROPA E EUA
O cenário controverso do filme dublado no Brasil não encontra paralelos em países de cinematografias e circuitos mais desenvolvidos, como na Europa e nos EUA. No primeiro caso, países como França, Espanha e Itália têm a dublagem como base, sendo raridade encontrar produções estrangeiras no som original e com legendas – muitas vezes, eles estão apenas em salas alternativas, fora do circuitão. “É curioso como o mercado brasileiro cresceu e se tornou mais parecido com esses mercados chamados ‘maduros’, quer dizer, os países europeus, onde o cinema não tem mais muito como crescer e onde a dublagem é a regra pelo menos desde os anos 1960”, compara Pedro Butcher.
No caso dos EUA e da Inglaterra, a questão é diferente. Ambos os países possuem circuitos nos quais predominam os filmes falados em inglês, o que evidentemente afasta a legendagem e a dublagem. “Quando você não lê legendas, há melhor fruição das imagens e do ritmo do filme. O filme sem legenda seria sempre a melhor opção, mas, no Brasil, ninguém assiste só ao que é feito em sua própria língua, como nos EUA”, diz Adhemar Oliveira.
Historicamente, o filme estrangeiro dublado em português sempre gerou polêmica no Brasil. Em 1929, os primeiros longas-metragens sonoros começaram a ser lançados nas salas locais e, três anos depois, a legenda já tinha se tornado o padrão. “A dublagem em português também foi experimentada nesse período, mas vários motivos resultaram em seu abandono. Os custos mais altos do processo e a rejeição à substituição das vozes originais dos atores foram duas das principais razões”, escreve o pesquisador Rafael de Luna Freire, professor da UFF (Universidade Federal Fluminense), no artigo Dublar ou não dublar: A questão da obrigatoriedade de dublagem de filmes estrangeiros na televisão e no cinemas brasileiros, publicado na revista acadêmica Famecos no final de 2014. “As primeiras experiências de dublagem em português de cópias exibidas no Brasil foram realizadas no exterior, o que gerou críticas. Não havia então a possibilidade de realizar no país a dublagem das centenas de filmes estrangeiros importados anualmente.”
Na pesquisa, Rafael de Luna encontrou a inusitada história do senador Geraldo Lindgren, que propôs, em 1960, o Projeto de Lei nº 37/1960, cuja base era de que “os filmes editados no estrangeiro sejam gravados no Brasil, na língua portuguesa e, bem assim, determina que o fundo musical ou partes musicadas sejam também gravadas por orquestra brasileira”.
Demonstrando senso de imposição elitista e autoritária a um tipo específico de defesa nacionalista, o texto do senador registrava que, com a dublagem, “nossos patrícios de todos os rincões terão oportunidade de travar um íntimo contato com o vernáculo correto e quase sem variações prosódicas, ao mesmo tempo que será uma oportunidade para formar-se um vocabulário mais seleto para toda a população brasileira”. Em 1961, o projeto de Lindgren foi arquivado, após enfrentar forte oposição da sociedade civil e da imprensa.
Curiosamente, apenas um ano depois, em 1962, o governo editava o Decreto nº 544, que obrigava as emissoras a dublarem filmes e programas estrangeiros na TV brasileira. Conforme constata a pesquisa de Rafael de Luna, a medida não enfrentou nenhum tipo de oposição do mercado ou do público, consolidando a dublagem na televisão como algo naturalizado e propiciando a criação de diversas empresas especializadas neste tipo de serviço, como a Herbert Richers e a Álamo, entre dezenas de outras. “Enquanto o cinema já tinha alcançado estatuto definitivo de ‘sétima arte’, a televisão, como um meio ‘menor’, seria teoricamente voltada para um público menos exigente, para o qual a dublagem não causaria tanta repulsa estética”, diz Freire.
Em 1971, outro projeto de obrigatoriedade de dublagem dos filmes estrangeiros nos cinemas surgiu sob autoria do deputado federal Léo Simões, fincado mais em questões econômicas do que nacionalistas. Esta nova proposta também foi arquivada, em 1975.
MARCELO MIRANDA, jornalista, crítico de cinema e mestrando em Comunicação na UFMG.