E não será apenas sua presença cênica o elo entre seus trabalhos: em todos, noções de poder, violência, miséria e contradições se imiscuem para criar breves porém épicas narrativas – ora em série de imagens, ora em vídeos – sobre o Brasil contemporâneo. Sua arte evoca questões sociais, políticas e culturais das quais boa parte dos debates atuais tende a desviar. Mas Berna Reale não se considera panfletária: “A polaridade poder e miséria é recorrente no meu trabalho e vai me interessar sempre porque é a realidade. Sou uma artista do presente e me contamino por ele”.
Obra Habitus está no 34º Panorama da Arte Brasileira (MAM-SP).
Foto: Cortesia da artista e da Galeria Nara Roesler/Divulgação
Sua trajetória poderia ter sido bem diferente. Nascida na capital paraense, “perto do Ver-o-Peso, onde moro até hoje”, quis cursar Medicina. De uma amiga, ouviu falar do curso de Educação Artística. Aprovada na UFPA, atravessou a seara acadêmica sem muito deleite. “Não foi dentro da faculdade que descobri o gosto pela arte, e, sim, ao frequentar aulas de cerâmica na periferia”, rememora. Corriam os anos 2000, quando Berna enveredava pela escultura. Apreciava o artesanal, mas se incomodava com os limites físicos do barro. Migrou para a imagem e suas possibilidades. “Comecei a fotografar terra. Registrei tijolos, casas em reformas. Até hoje, uso símbolos fáceis para, sem esquecer a estética e o apelo visual, ‘dar a volta’ e neles encontrar a arte”, situa a artista.
Sua imersão no ambiente do IML lhe rendeu trabalho como Habitus.
Foto: Cortesia da artista e da Galeria Nara Roesler/Divulgação
Há signos do cotidiano em Quando todos calam (2009), registro fotográfico de uma performance descrita pela própria artista como “fundamental” na sua construção artística: barcos no porto, urubus, pescadores ao fundo. O prisma, o ímã e o cerne do discurso eram, contudo, a própria Berna, nua sobre uma mesa adornada com uma toalha branca, com vísceras no seu corpo a esperar as famintas aves. Decepcionada com os rumos da política, sentindo-se “sem horizonte”, ela deu vazão ao desejo de se colocar no trabalho. “Já não conseguia mais falar só com imagens, queria estar presente”, resume. A atitude lhe rendeu o grande prêmio do Salão Arte Pará.
A polaridade "poder e miséria" está presente nos trabalhos de Berna, que já ambientou obras em um lixão (Cantando na chuva)
Foto: Cortesia da artista e da Galeria Nara Roesler/Divulgação
Nada apareceu por acaso – naquela época, Berna já havia sido aprovada no concurso de perita no Centro de Perícias Científicas do Estado do Pará. Antes de assumir, havia passado meses visitando o IML local para fotografar entranhas. Essa imersão se espelha, desde então, nas suas imagens. Foram ossos enterrados em valas clandestinas na região metropolitana de Belém que ela transportou, solenemente vestida de preto, em uma carroça em Ordinário (2013). No interior de uma penitenciária, ela reinterpretou o olímpico gesto de carregar uma tocha em Americano.
A obra Americano foi ambientada em uma penitenciária.
Foto: Cortesia da artista e da Galeria Nara Roesler/Divulgação
Nas ruas desertas de uma Belém ao amanhecer, filmou Palomo (2012), em que monta um cavalo vermelho (tingido sem dano algum) e aparece, ela mesma, com uma focinheira, como se as eventuais palavras que ousasse proferir lhe tivessem sido negadas – o vídeo foi um dos destaques deVazio de nós, individual no Museu de Arte do Rio de Janeiro (2013). Tapou o rosto novamente emCantando na chuva, no qual, como uma alienígena em dourado, invadiu um lixão com uma máscara antigás; com um elegante vestido em azul a dirigir uma biga, locomoveu-se por uma favela puxada por porcos. E ocupou a sala de necrópsia em que trabalha para ambientar Habitus.
Há vestígios de chacinas, ruídos policiais e ecos da selvageria cotidiana das metrópoles brasileiras nos seus projetos. Afinidades mais do que eletivas, portanto, aproximam a atividade forense do exercício artístico. E assim ela age como uma detetive. “Numa perícia, é uma investigação científica. Na arte, é simbólica. Quando se entra numa cena de crime, tudo está envolvido por centenas de símbolos. O perito procura evidências, trabalhando com aquilo que está lá, com o concreto, com a ciência. Isso tem relação com a arte, em que tudo é simbólico. Só que a arte não é ciência, apesar de pesquisadores quererem decodificá-la a esse ponto. Possui milhões de possibilidades de interpretação.”
Registro fotográfico da performance Quando todos calam, considerada "fundamental" pela artista, rendeu-lhe o grande prêmio do Salão Arte Pará.
Foto: Cortesia da artista e da Galeria Nara Roesler/Divulgação
Em Precisa-se do presente (2015), série de fotografias e um vídeo realizados para o Rumos Itaú Cultural durante uma viagem pela Rússia, Índia, África do Sul e China, em O tema da festa, instalação do 4º Panorama da arte brasileira, e na performance que se multiplicará no vídeoPromessa, Berna Reale usa a ironia para convidar o espectador a tecer sua própria camada interpretativa. “A arte não pode ser fechada. Quero que o espectador fique em dúvida sobre o que é real e o que é manipulado. Para uns, um cavalo vermelho é uma mancha de sangue.” “Égua”, diz, na expressão típica do Pará, “o que seria para outros?”.
LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.