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Atitudes contra o “valor inerte”

Impulsionados pelas facilidades tecnológicas, serviços de compartilhamento provocam debate sobre conceitos, modos de consumo e negócios na sociedade

TEXTO Yellow

01 de Novembro de 2015

Uber, serviço mais barato que o de táxi, opera em mais de 50 países

Uber, serviço mais barato que o de táxi, opera em mais de 50 países

Foto Divulgação

Imagine chegar ao aeroporto de uma cidade que você não conhece. Uma pessoa passa lá para lhe dar uma carona, mas não é seu amigo nem um táxi. O lugar onde ficará hospedado é o apartamento de outro desconhecido que deixou as chaves com o porteiro e avisou que você chegaria. À noite, você pega emprestada uma bicicleta e vai jantar na casa de um estranho. Ele cozinha para você e outras pessoas, numa experiência que é ao mesmo tempo turística e caseira, provocando-lhe a sensação de ter dividido, com novos amigos, um momento especial.

Tudo isso é possível, hoje em dia, graças a serviços como Uber, Airbnb e Eatwith. Eles pertencem a uma nova e ascendente categoria de negócios, a que explora o compartilhamento. A ideia não é nova, mas vem ganhando força nos últimos anos, graças a demandas sociais e conveniências tecnológicas. Algumas pessoas entendem o novo modelo como uma necessária renovação diante da estagnação de indústrias antiquadas, enquanto outras o veem como ameaça a mercados estabelecidos e devidamente enquadrados à legislação.

Uma das primeiras iniciativas de compartilhamento aconteceu em Amsterdã, no verão de 1965. Há 50 anos, o grupo contracultural Provo coletou, pintou de branco e distribuiu pela cidade dezenas de bicicletas, para que fossem usadas livremente por qualquer pessoa. O happening seria a primeira de uma série de ações de comunhão de bens e serviços, e durou menos de um mês, após enfrentar vandalismo por parte dos cidadãos, e eventual confisco das bikes pela polícia.

As bicicletas brancas se tornaram símbolo da derrocada dos ideais da década de 1960, porém, entraram no imaginário do povo holandês. A capital é, até os dias de hoje, uma das cidades que mais fazem uso do transporte ciclístico no mundo, e, em algumas partes do país, ainda existem bicicletas brancas, como no Parque Nacional Hoge Velewe.


Uma das primeiras experiências de compartilhamento foi realizada em Amsterdã.
Foto: Divulgação

Em 1993, um experimento similar aconteceu em Cambridge, mas, em menos de um ano, a maioria das 300 bicicletas (verdes, desta vez) havia sido roubada, e o projeto foi abandonado. Em outubro de 1995, foi lançado o primeiro sistema de compartilhamento de bicicletas bem-sucedido, o Bikeabout, na University of Portsmouth, também no Reino Unido. Pela primeira vez, foram utilizados bicicletários eletrônicos, que liberavam as bicicletas através do uso de cartões, o que permitia a localização de bicicletas extraviadas. Este modelo inspirou a maioria dos sistemas de compartilhamento de bikes em todo o mundo, como o Vélib’, em Paris, EcoBici, na Cidade do México, e Porto Bike, no Recife.

DESPERDÍCIOS
Um dos conceitos centrais da economia de compartilhamento é a ideia de “valor inerte”. O tempo em que um bem está sem uso é valor perdido. Um carro que circula com apenas um passageiro, na maioria do tempo, representa econômica e ecologicamente desperdício. O tempo inerte de um automóvel, ou de um quarto de hóspedes, pode, supostamente, ser convertido em renda. E daí surgiram serviços como Uber (que permite às pessoas que possuem carro trabalharem em seu tempo livre como taxistas), Lyft (em que motoristas oferecem e cobram por caronas a desconhecidos) e Airbnb (que oferece online imóveis, cômodos ou até mesmo leitos a hóspedes).

Essas empresas se multiplicam a cada dia, crescem rapidamente e são cotadas por valores cada vez maiores; mas, enquanto se expandem em vários países, batem de frente com órgãos que regulam serviços, em uma teia litigiosa cada vez mais difícil de acompanhar.

O serviço Airbnb foi inspirado por um evento que aconteceu com três colegas que dividiam um apartamento em San Francisco e precisaram partilhar o espaço com um desconhecido para cobrir o valor do aumento do aluguel. Perceberam que a experiência não era tão desconfortável quanto imaginaram que seria, e criaram um site no qual as pessoas pudessem oferecer hospedagem a estranhos. A cada mês, o serviço atinge mais 1 milhão de clientes.


Airbnb oferece móveis, cômodos e leitos para viajantes. Foto: Divulgação

A companhia não possui nenhuma propriedade, porém, compete diretamente com cadeias de hotéis, que precisam dispor de grande infraestrutura física e de mão de obra qualificada, além da adequação a normas e inspeções de diversas esferas governamentais. A Airbnb valia, em setembro do ano passado, 10 bilhões de dólares, enquanto a cadeia de hotéis Hilton, por exemplo, valia cerca de 25 bilhões. Por isso, encontra grande resistência do setor hoteleiro, sempre que se populariza em algum lugar.

A cidade em que o serviço é mais popular é Nova York, e a prefeitura estima que cerca de dois terços da atividade de negócios da Airbnb seja ilegal. A empresa propriamente dita não está cometendo nenhum crime, e paga rigorosamente todos os impostos cabíveis. Porém, é possível que a maioria dos anfitriões (como a Airbnb chama as pessoas que oferecem seus imóveis para aluguel através do serviço) não cumpra com todas as suas obrigações, de acordos condominiais até o recolhimento de impostos, passando por normas de segurança. Seu uso chegou a ser proibido na cidade, e hoje só é permitido quando o anfitrião também está na residência.

É difícil justificar a ilegalidade de alugar um cômodo a um estranho através de um serviço da internet, enquanto hospedar familiares, mesmo em um apartamento alugado, não seja. Existe a alegação de que o serviço facilite a realização de atividades ilegais, como a alocação de serviços de prostituição ou tráfico de drogas – e casos como estes já ocorreram –, porém a experiência da maioria das pessoas que usou o recurso é positiva.

“Oferecemos nosso apartamento há oito meses e, nesse tempo, já o alugamos umas seis vezes”, conta Antônio Martins Neto, jornalista pernambucano que atualmente reside em Portugal, com a mulher e o filho. “Tem gente de outros estados que vem nos fins de semana, e outros que vêm durante a semana, a trabalho. Mas há também quem alugue por um tempo maior. Hoje, temos uma família dos Estados Unidos que vai ficar por quase cinco meses.”

Antônio afirma que nunca teve problemas com os hóspedes. Ele costuma dar dicas sobre o bairro e a cidade, mas diz que a experiência requer “certa dose de desapego”. “Deixamos o apartamento mobiliado, com muitos objetos nossos, como livros e quadros. Mas tem sido um prazer saber que as pessoas valorizam isso e usufruem da nossa biblioteca.” O sistema do Airbnb oferece garantia em caso de sinistro, mas o jornalista nunca precisou usar. Ele elogia ainda a falta de burocracia, a rapidez do pagamento, e a comissão de 3% cobrada aos anfitriões, bem menor do que seria cobrado por uma imobiliária. O serviço cobra aos hóspedes uma taxa de 6 a 12%.


Com o Eatwith, cozinheiros usam seus lares como restaurantes improvisados.
Foto: Divulgação

Por enquanto, a Airbnb não encontra grande resistência no Brasil, mas a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis já começou a pressionar a Embratur para taxar as transações, de olho na ocupação de turistas durante as Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro, a cidade brasileira que mais dispõe de vagas no serviço.

CARONA
No Brasil, programas de compartilhamento de transporte similares ao Lyft, como o pernambucano Bigoo, não vingaram. A Uber permite que alguém passe a transportar passageiros através de um aplicativo, tornando-se, praticamente, um taxista. O serviço espalha cizânia por onde quer que passem seus carros pretos.

Em outros países, a empresa supriu demandas urgentes de grandes cidades, forçando governantes a se adequarem ao sistema. Nova York tinha, há pouco tempo, um número de licenças de táxi muito aquém da demanda. Os táxis esquivos se tornaram, inclusive, uma marca da cidade. A Uber facilitou o acesso ao transporte, diminuiu o valor das corridas e ainda serviu, após a crise econômica de 2008, como alternativa para muitos desempregados.

O modelo que a Uber trouxe ao Brasil é um serviço de carros de luxo – exige que motoristas possuam carros pretos, de determinadas marcas e modelos. O taxista e músico olindense Gustavo Pinheiro não entende por que alguém se interessaria em oferecer seu automóvel para o serviço: “Deve ser por vaidade. Não sei o que leva alguém a comprar um carro de luxo, pagar IPVA caro, arcar com a manutenção, vestir paletó e ainda oferecer água e cafezinho, pra deixar 25% do valor da corrida pro Uber”. Enquanto isso, os taxistas recebem incentivo, na forma de atenuação tributária, para trocarem de automóvel a cada três anos, e só precisam pagar comissão se fizerem parte de uma cooperativa.

O maior empecilho à profissão é o acesso ao licenciamento. As “praças” são concessões municipais e deveriam ser gratuitas, mas são abertamente negociadas, como bens. Este provavelmente é o fator principal para a adoção do Uber.


No Lift, motoristas oferecem e cobram carona a desconhecidos. Imagem: Reprodução

Cada cidade tem lidado de maneira diferente com o serviço. Em São Paulo, após muitos protestos dos taxistas, o serviço foi proibido e foi criada uma categoria especial, a dos “táxis pretos”, para veículos de luxo que atendam exclusivamente através de aplicativos de celular. No Recife, uma decisão da Câmara Municipal, em 29 de setembro, proibiu o uso de aplicativos de celular para transporte, tornando ilegais não apenas Uber, mas serviços já estabelecidos, como EasyTaxi e 99Taxis.

CHEFS E MODELOS
Tomando como inspiração o Airbnb, após um jantar que fez na casa de uma família durante uma viagem, o empresário Guy Michlin fundou, em 2010, o serviço EatWith, que permite a cozinheiros converterem seus lares em restaurantes. Seria justo permitir que qualquer pessoa venda refeições em sua residência, enquanto restaurantes precisam passar por inspeções de segurança e higiene? E quem processar, no caso de dor de barriga: a empresa ou o anfitrião?

Swipecast é uma rede que permite a modelos publicarem seus books e negociarem trabalhos. Se der certo, promete acabar com as comissões de agências, como Wey, Elite e Ford, e abrir um canal para a divulgação de novos talentos independentes, em todo o mundo. Se der errado, pode diminuir cachês e servir de veículo para assédio moral e sexual. A plataforma já ganhou o apelido de “Uber de modelos”, mas seus detratores a chamam de “Tinder de modelos”.

Se, por um lado, o compartilhamento nos permite superar os obstáculos dos sistemas de produção de valor, por outro, corremos o risco de tentar “monetizar” tudo. Um exemplo do cúmulo a que podemos chegar é a recém-aberta FlightCar, empresa que vai ao aeroporto buscar carros de pessoas que viajam, para alugá-los enquanto elas não voltam. 

YELLOW, designer gráfico, músico, professor e mestre em Ciências da Linguagem.

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