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Arte local

TEXTO José Cláudio

01 de Novembro de 2015

Reproduções Rafael Gomes

Terminei a última crônica falando em “arte local”, coisa há muito considerada heresia, desde o séc. 16, quando a Renascença dominou a arte ocidental. Mas mesmo aí, embora o ideal fosse aprender a arte italiana, começaram a distinguir a arte de alguns países, como Renascimento Alemão ou Francês. Na própria Itália notavam-se tendências locais, como a pintura de Veneza, Florença ou Roma. E nunca, ao longo do tempo, deixou de haver designações locais, como pintura cusquenha, escolas de Fontainebleau ou de Barbizon e até se discutiu se haveria uma escola pernambucana. Quando comecei, aqui, na década de 1950, a bola da vez era, correndo por fora o muralismo mexicano, a escola de Paris, que passou o bastão à escola de Nova Iorque, não sabendo eu se tais designações têm mais relação com a bolsa de valores ou com manifestações artísticas. De fato, o grande marchand Daniel-Henri Kahnweiler, mandado pelo pai, banqueiro alemão, para ganhar traquejo na bolsa de valores de Paris com vistas a abrir um banco na África do Sul, franqueando para isso uma certa quantia, viu, para seu desespero, o maluco do filho em vez disso, abrir uma galeria em Paris, onde fez a primeira exposição cubista.

De uns tempos para cá, um grupo muito promissor tem saído para pintar, isto é, fazendo pintura ao ar livre, ou pintura do natural, para o que não tenho mais preparo físico, mas continuando a achar grande fonte de consulta e aprendizado, grande fonte de inspiração, o diálogo direto com a natureza. Seria injusto não falar de Mané Tatu, meu filho: não conheço quem tenha mais tarimba nesse mister. Com seis ou sete anos me acompanhou para ajudar quando ainda precisava levantar os braços para segurar cavalete e tela numa chuva de vento que nos pegou no alto dos maristas em Apipucos, eu no maior desespero, trabalhando na Sudene, só podendo pintar fim de semana, não querendo desperdiçar a oportunidade, com chuva e tudo, e efetivamente só saí depois de pintar o açude lá embaixo, quadro que gostaria de rever: será que seu atual proprietário dará o devido valor a essa pequena tela que nos custou tanto sacrifício?

A arte local atende a um público local, residindo aí a primeira dificuldade. Certa vez, numa exposição de desenhos promovida pela galeria Artespaço de Nara Roesler e Renato Gouvêa, um rapaz bem-apessoado, vestido de paletó, queria se inteirar o mais pormenorizadamente possível de questões de preço, percentagem, custos, lucro enfim, levando Renato a pensar tratar-se de um desenhista, e interessou-se em ver seu trabalho, respondendo o rapaz que não, que nunca tinha desenhado, mas se o ganho compensasse, dispunha-se a tentar. Não há nada de errado nisso: João Martins de Athayde editava folhetos dos outros até ver que, escrevesse ele próprio os versos, o lucro seria maior, virando um dos maiores poetas. Muitos vislumbrariam na arte a possibilidade de ficar rico a curto prazo, imitando a pintura dos que ganham fortunas em euros ou dólares, e agem como se o “público alvo” fosse o dos colecionadores que frequentam galerias e leilões de Londres ou Nova Iorque, pintura essa produzida por pintores nativos daqui que se destina, o que existe também aqui, aos que se sentem afinados com o gosto dos artistas que fazem sucesso nesses grandes centros, pagando mais barato, isto é, os clientes, ou apostando em serem descobertos por algum caça-talentos, os artistas. Isso também é arte local. E devo ter escrito esse parágrafo todo para dizer que não sou contra nada e de onde menos se espera pode sair um artista extraordinário.

Mas voltemos à pintura do natural. Vamos fazer um pouco de história. Morando na Rua do Bonfim, Olinda, onde cheguei em 1967, certo dia, assim que o dia começou a clarear, ainda os notívagos voltando para casa, na esquina entre o colégio estadual e a Igreja do Bonfim, casa onde morávamos eu, Léo, dois filhos, Mané que hoje se assina nos quadros Mané Tatu, e Maria Júlia, hoje professora de música nos Estados Unidos, resolvi sentar no meio-fio, instalei um pedaço de eucatex em cima de um caixão de sabão e comecei a pintar o pequeno largo ali em frente, Largo do Bonfim, quadro adquirido por Renato Carneiro Campos. A última vez que tinha acompanhado alguém a pintar do natural tinha sido na Bahia em 1953 como ajudante de Jenner Augusto, pintando ele uma vista da lagoa do Pau Miúdo, uma casinha de taipa num istmo, bem no meio da lagoa (Viagem de um jovem pintor à Bahia, p. 43).

Aos que acham que pintura do natural é coisa do séc. 19, justamente aí é que está a diferença, como naquela história de Jorge Luís Borges do cara que de tanto curtir o Dom Quixote e querendo fazer um outro de sua autoria, purificando-o e reescrevendo-o vezes sem fim, chegou ao ponto máximo de igualar o original vírgula a vírgula, palavra por palavra. A grande diferença é que escreveu em plena Buenos Aires no séc. 20 entre arranha-céus, barulho de automóveis, rádio e televisão. É como pintar do natural, sabendo da bomba atômica, Picasso ou Saburo Murakami.

Depois do quadrinho do Largo do Bonfim, tomei gosto na parada e passei a sair geralmente sozinho a princípio, com o taxista Everaldo, ou com Guita Charifker e Eduardo Araújo, que nos carregava num jipe. Foi como se, nesta nova geração, passasse a bandeira a Mané Tatu, que tem convidado outros pintores a saírem com ele: André Valença, Antônio Mendes, Feliciano dos Prazeres, depois Sandro Maciel, Adriano Cabral e Fábio Rafael. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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