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Arquitetura: A perda do protagonismo

Arquitetos de vários segmentos observam que decisões importantes da urbanização foram outorgadas pelo poder público ao mercado

FOTOS ALCIONE FERREIRA

01 de Novembro de 2015

Foto Alcione Ferreira

Aqui estamos: na sexta e última Conversa deste ciclo de comemorações aos 15 anos da Continente. Ao longo do ano, convidamos cineastas, artistas visuais, artistas cênicos, músicos e escritores para sentaram ao redor de uma mesa e discutirem tópicos que consideram prementes nas suas atuações.

Foram encontros ricos e significativos para sugerir, tanto ao público específico (no caso presente, outros arquitetos e urbanistas) quanto ao geral, quais as inquietações que perpassam as várias categorias profissionais artísticas. Encontramos em todas as falas – com exceção da cadeia de produtores de cinema – um desprestígio do poder público, sobretudo por um tipo de atuação que pode ser sinteticamente classificada como negligente. Essa opinião é depreendida do debate a seguir, bem como a ideia de que os profissionais se sentem hoje desprestigiados quanto ao papel decisório que já tiveram no planejamento das cidades, atualmente oferecido – não sem prejuízos – ao mercado imobiliário.

ADRIANA DÓRIA Agradeço a presença de todos vocês nessa última conversa que a gente faz este ano, em homenagem aos 15 anos da revista. Eu queria, para iniciar, que cada um expressasse como é que vê a pluralidade no campo da arquitetura, hoje, tanto no que diz respeito à atuação profissional, como nas diferentes formas de se compreender a arquitetura, nas suas confluências e também nos seus conflitos.

LÚCIA LEITÃO Do ponto de vista da atuação profissional, sempre achei que ela é rica. Eu digo aos alunos: uma vez arquiteto, você pode atuar em diversos campos, todos criativos. Isso tem seu lado positivo e negativo. Às vezes, essa pluralidade pode dispersar o foco e, às vezes, é possível que se perca, do ponto de vista até da sociedade, a consciência desse papel de uma forma mais consistente, digamos assim. Por exemplo, acho que, com a ascendência de uma classe média ou o surgimento de uma classe C, a profissão emergiu do ponto de vista da decoração, da arquitetura de interiores. É interessante como você, nos primeiros anos da escola, recebe uma quantidade grande de alunos interessados nisso. Se, do ponto de vista do mercado, isso é uma coisa interessante, do ponto de vista da arquitetura como um fato cultural é um empobrecimento enorme. Cada vez me interessa mais a arquitetura como um fato cultural, como expressão de humanidade, como habitação do mundo, se a gente for pela filosofia. E penso que isso a gente perdeu. De novo, pra dar um exemplo, eu acho que, notadamente no Brasil, mas talvez não só neste país, como na modernidade ou ainda mais precisamente no que se chama de pós-modernidade, a gente perdeu o senso do arqui, na arquitetura, dando excessiva ascensão à tectônica. A chamada arquitetura de espetáculo, hoje em dia, para mim, não é nada mais do que isso. Talvez seja menos. É o excessivo encantamento com a técnica, com o que a tecnologia possibilita, e com a beleza da forma, mas com isso a gente perdeu a relação, a noção de casa. Perdemos a noção de habitar o mundo. De se apropriar do que é essa condição humana que se expressa na materialidade do habitar. Hegel diz isso muito claro: nós não habitamos porque construímos, nós construímos porque habitamos. É uma inversão importante do que a gente percebe contemporaneamente. E daí a gente tem um campo vasto para se perder no sentido até de se apropriar mais adequadamente, mais significativamente e mais felizmente, no sentido de felicidade, do que é ou do que pode ser a arquitetura para a condição humana, para a vida cotidiana das pessoas. Essa apartação é uma perda na arquitetura contemporânea.

ADRIANA DÓRIA E você acha que isso diz respeito só ao arquiteto ou à própria concepção da sociedade?

LÚCIA LEITÃO É uma pretensão, de novo do meu ponto de vista, pensar que o arquiteto comanda a sociedade. Não é verdade. A arquitetura nunca foi neutra. Ela está sempre a serviço de. Ela está a serviço não só hoje, na cidade contemporânea, do mercado imobiliário, evidentemente, mas ela sempre esteve a serviço dos mecenas, a serviço da classe dominante. Outro dia, um aluno me disse: nós somos deuses, criamos o mundo. Em cima da noção demiúrgica, de Platão. Mas não é nada disso, nós somos artífices; aliás, o tectônico remete justamente ao operário da arquitetura, aquele que manuseia esse ofício de edificar melhor do que outras categorias profissionais. Então, mudanças sociais, evidentemente, estão na prancheta também. Claro que tem o arquiteto talentoso, o mais consciente do seu papel, que avança nessa direção, mas se a gente pensar profissionalmente, estamos a serviço de. E é outra coisa que nós não podemos perder, porque senão nós construiremos para nós mesmos, paras revistas, paras socialites, quando, na verdade, o ofício é para a sociedade, para a comunidade, para as experiências do mundo.


Lúcia Leitão

CLARISSA DUARTE Quando a gente fala de arquitetura social, costuma associar a uma arquitetura de baixa renda. Concordo com Lúcia, somos, antes de tudo, prestadores de serviço para um número gigantesco de pessoas dos diversos tipos. E arquitetura social não é apenas arquitetura das Zeis. É a arquitetura do dia a dia, a que a gente trabalha pensando no homem como um ser social. Quando estão perto de se formar, os alunos costumam perguntar: “Depois de tudo que foi visto na faculdade, tantas disciplinas diferentes, como é que a gente escolhe um caminho específico?”. Costumo dizer que não precisam ter pressa. A vida vai mostrar, o mercado, o rumo da sociedade naquele momento vai apontar um caminho. Contudo, naturalmente, é importante que a gente identifique determinadas identidades, habilidades e desejos profissionais que carregamos e que, normalmente, estão no início do curso, mesmo que invisíveis.

VITÓRIA RÉGIA ANDRADE Gostaria de colocar mais dois elementos para abrir essa discussão. Acho que Lúcia falou um pouco, mas eu gostaria de fortalecer. Arquitetura é abrigo. Ela é abrigo do ser humano, da sociedade, do homem. Então, por que arquitetura? Porque o homem precisou se abrigar. Esse é o ponto de partida. O arquiteto é, por si, o formador desse abrigo. E essa compreensão vai se ampliando. O projeto é uma hipótese – porque, na hora em que o lançamos, ele é uma hipótese de trabalho que vai se concretizar pela obra. Temos que ter todo um arsenal de conhecimentos científicos para fazer escolhas, e o que é que as define? A criatividade, a maneira com que você manipula essas variáveis que estão à disposição através do conhecimento da sociedade como um todo. Então, a capacidade de fazer essa escolha e de antever o futuro é o nosso calcanhar de Aquiles, e o que nos apaixona por esse fazer arquitetura. Todos nós procuramos essa profissão porque temos vontade de fazer uma proposta. Essa palavra – proposta – é uma chave para pensarmos, diferente das outras ciências. Os cientistas vão analisando fatos e acham uma solução dentro deles. O arquiteto não, ele tem a capacidade de inventar, de fazer algo para dar uma resposta. A resposta de Lúcia vai ser uma, a de Clarissa vai ser outra, a de João, outra. Então, cada arquiteto tem essa individualidade e, ao mesmo tempo, um olhar que nos rege, que é a realidade. E aí vem esse dilema ao qual a gente assiste. Um momento de profunda transformação, que é: como planejar diante dessa realidade de uma sociedade líquida, que só pensa no imediato, no presente, no seu prazer? O grande dilema na arquitetura, atualmente, é conseguir se reinventar na maneira de planejar diante de uma realidade que, depois que a gente acaba de falar, já não existe mais, porque ela está em profunda transformação. Como planejar a longo prazo, se as respostas que se pedem são a curto prazo? Acho que esse é, talvez, um bom caminho para explicar os dilemas do arquiteto hoje, frente ao mercado e à sociedade.

CLARISSA DUARTE Eu acrescentaria a esse seu comentário, Vitória, que é muito pertinente, uma outra pergunta. Como planejar tentando atender a essas demandas de curto prazo e essas demandas políticas, sociais etc., com a participação ou colaboração social, que é uma outra demanda latente que a gente está vivendo atualmente? Existe um mito que, para você planejar a curto prazo, não dá tempo de escutar a opinião da sociedade. Acho que esse reinventar de que Vitória está falando é justamente isso, porque estão surgindo formas de experiências de urbanismo muito interessantes no mundo todo. Acho que Lula Marcondes pode falar um pouco da experiência dele com o seu ateliê. A gente tem escutado falar do urbanismo tático, uma espécie de urbanismo experimental, feito no curto prazo, para testar a opinião e comportamento da sociedade; de determinadas intervenções feitas com baixo custo e um prazo bem curto, que não impedem, necessariamente, de se tomar algumas decisões com não tão longo prazo, mas que sejam mais conscientes e estejam em mais sintonia, de fato, com as necessidades sociais.

LULA MARCONDES Se olharmos o arquiteto como um criador, como um inventor, se a gente pega esse eixo, tanto a nossa formação como a atuação vão ter um espectro muito grande de ação. O nosso olhar é construído com o tempo, e a gente absorve muitas subjetividades. Temos manejo com proporção, escala, ritmo, sentimento, materialidade e imaterialidade. Nessa troca, a gente maneja essas subjetividades. E, com a prática, você vê que é algo muito complexo, nós construímos a cidade. Nesse todo tão complexo, se você se debruça, se o arquiteto coloca o olhar sobre outra coisa mais simples, vai ter possibilidade, por exemplo, de trabalhar com design, com moda, fotografia, cinema etc. Penso que a arquitetura trabalha com espaço. Onde tem espaço? Em tudo. Não é dizer que a gente vai salvar o mundo, mas o nosso olhar está treinado para pegar esses desafios. Então, em relação à formação, precisaríamos voltar nessa linha de que o arquiteto é um criador, um artista, um técnico, um pouco de sociólogo e antropólogo. Acho que, dentro dessas ações, se abre um leque de atuação imenso, e também a formação precisaria estar se abrindo dentro dessa ótica. O que vemos hoje é a questão da tectônica estar pegando um lugar em que, muito antes, a gente devia formar um olhar, antes de chegar e ir na materialidade, em si, direto. Precisaria estar com essa formação de espírito. Hoje, mais do que nunca, falta espiritualidade na arquitetura.


Lula Marcondes

JOÃO DOMINGOS AZEVEDO Eu queria pegar vários ganchos que lançaram aí. Tenho estado mais afastado da academia do que vocês três. Eu sempre vi o arquiteto como o ser capaz de analisar uma série de variáveis, das mais diversas, e conseguir transformar isso em realidade. Acho que, nesse processo, pensando numa perspectiva de planejamento da cidade, a gente perdeu muito das estruturas de planejamento. O governo militar, na época da ditadura, por mais que tenha questões negativas, teve um peso de planejamento muito grande. Havia uma situação de controle por trás, mas você via estruturas de planejamento e a tentativa de pegar essas variáveis e chegar a uma solução. Não sei se numa coisa também de querer ser o Deus e controlar as dinâmicas das cidades, mas a gente terminou por perder isso, e, só recentemente, temos conseguido perceber, talvez pela situação de caos a que a gente chegou. Temos a necessidade de voltar a planejar. Dentro de uma perspectiva da atuação do arquiteto, nas décadas de 1970 e 1980, você tinha muitos urbanistas; hoje, muita gente não se apresenta como arquiteto e urbanista ou urbanista, só como arquiteto. O arquiteto de interiores talvez tenha relação com isso. Nessa perda que houve das estruturas de planejamento, abriu-se um campo para a arquitetura de interiores.

LÚCIA LEITÃO Acho que não é por aí não. A questão da arquitetura de interior, ou menos do que isso, da decoração que, a rigor, nem precisaria de um arquiteto, bastaria um designer, é uma coisa dessa sociedade contemporânea autocentrada. Nós estávamos conversando sobre a questão, por exemplo, dos quadros. Você não escolhe uma obra de arte porque gosta dela, você vai escolher se ela é tendência desse ou daquele arquiteto renomado. Fica tudo muito falsificado, muito massificado. A gente não anda na cidade pelo prazer de andar e pelo reconhecimento de andar, mas porque alguém diz que andar é bom. Por exemplo, uma tendência – odeio essa palavra – contemporânea: quantas vezes uma família se muda hoje? E se muda por quê? Antes, as condições econômicas e técnicas eram outras e a gente tinha uma habitação conectada com a vida. Tanto que, até hoje, vemos as pessoas mais idosas com uma reação muito forte a sair da sua casa, porque casa não é caixa, não é máquina, é um pedaço da vida. Dizer “minha casa, minha vida”, para além doslogan, é fato, é o que está mais conectado ou deveria estar. Como vivemos uma sociedade irresponsável, na qual a gente não sabe mais o que é valor, a efemeridade é criada a partir de tendências de consumo, a gente resolve se mudar. A casa virou objeto de consumo. Eu me mudo para um prédio tido como mais importante, num bairro melhor etc., e não pela minha relação humana com esse espaço de viver. O arquiteto vive essa necessária e, até certo ponto, positiva contradição; como ele não é o dono da sociedade, expressa isso, também se deixou levar por esse movimento. Não são todos os arquitetos que vão parar para pensar na hora de projetar nessa condição. O projeto se torna uma resposta a uma demanda de mercado, um produto como outro qualquer. Eu vendo uma casa como eu vendo um carro. Teve um pensador que escreveu um manifesto aos arquitetos, urbanistas e planificadores do pós-guerra, na Alemanha. Ele se inquietou profundamente com a construção em série das cidades que tinham sido destruídas no pós-guerra. Dizia assim: você não sabe, mas quando uma pessoa lhe pede o projeto de uma casa, está lhe pedindo um projeto de vida. Evidentemente, o arquiteto não tem como responder pelo projeto de vida de ninguém, mas essa frase dá essa medida, que a gente aparentemente perdeu por completo. Se não tivéssemos perdido, não viveríamos essa realidade do Recife contemporâneo, que é de autodestruição compulsiva. O Recife perdeu a medida das coisas e confunde tecnologia com progresso, tecnologia com desenvolvimento. Vou construir 40 andares porque eu posso construir, ou seja, a engenharia tem elementos tecnológicos para colocar de pé, isso é confundido com uma cidade moderna, contemporânea.

ADRIANA DÓRIA Somos levados a pensar que, de certa forma, as cidades espelham o que nós somos. Porque a gente não pode dizer que o Recife hoje não é responsabilidade dos recifenses. Nós somos responsáveis pelo que está acontecendo. Se é pequeno o impulso de repúdio a esse tipo de cidade que a gente não quer, se é uma minoria que se comporta assim, a maioria é aderente, ela quer um shopping grande, climatizado, com muitos corredores, com muitas lojas internacionais. Quer dizer, a gente supõe que o nosso morador também não tem a noção do habitar.

LULA MARCONDES É preciso reeducar as pessoas.

CLARISSA DUARTE Eu costumo dizer que, antes de fazermos uma reforma urbana, a gente precisa fazer uma reforma humana. Uma reconstrução da cultura urbana da nossa cidade.


Clarissa Duarte

LÚCIA LEITÃO O pior é que não é a maioria. É como o carro. Outro dia, eu ouvi um técnico dizendo que o engarrafamento do Recife é causado por 13% da população. É a maioria da classe média e média alta. Não é a maioria da população que cria. A mesma coisa com relação a esses elementos. Não é a maioria, é uma minoria que tem poder econômico e decisório para implantar esse modelo.

JOÃO DOMINGOS AZEVEDO Mas eu acho que a causa está na minoria, digamos assim, mas o modelo termina contaminando a mente da maioria. Propõe-se algum tipo de restrição, como por exemplo, o pedágio urbano. Mas vão lembrar o cara que acabou de comprar o carro e agora vai ser punido; e o cara que tem dinheiro, que causou tudo isso, vai pagar e não vai sentir nada no bolso. A gente precisa ter uma mudança maior, de educação, de mostrar claramente que esse modelo de crescimento de cidade não se sustenta mais, está esgotado. Voltando um pouco à minha fala inicial, acho que tivemos um momento de hiato de planejamento que permitiu legislações que resultaram no que está aí.

VITÓRIA RÉGIA ANDRADE Voltando para essa questão do arquiteto, da arquitetura. A gente sempre achou estranha a palavra sustentabilidade, porque a escola de arquitetura em que nos formamos era sinônimo de sustentabilidade. Habitar, criar uma habitação em um sítio, é ser sustentável. Armando Holanda, em 1970, fez aquele Roteiro para construir no Nordeste, que tem todas as lições para se fazer um projeto. O que é que faltou ao arquiteto? Nós perdemos um discurso. E o que a gente vê hoje? A tectônica, os selos e as certificações estão se sobrepondo a uma decisão projetual. O projeto começou a valer muito pouco. Já tem colegas que dizem, como Gentil Porto, que a arquitetura hoje não existe mais. Arquitetura está no espaço público. São as pessoas. A relação da pessoa com o território até dispensa a tectônica, se esse território é habitável, se a pessoa consegue se enxergar, se tem árvores, se anda na rua. Então, a não forma, numa sociedade líquida, também é uma ação de um arquiteto. Existem muitas correntes que atentam para isso, para que o ofício do arquiteto, hoje, está mais em promover encontros do que em promover paredes.

LUCIANA VERAS Continente teve o prazer, digamos assim, de poder trabalhar arquitetura em várias vertentes nos últimos dois anos. Um dos nossos entrevistados, Carlos Fernando Pontual, disse que acreditava que o arquiteto já não tem mais a mesma força. Antes ele era um ator preponderante na sociedade. Guilherme Wisnik, arquiteto e urbanista de São Paulo, foi na mesma linha, inclusive questionando como o Brasil passou de uma condição de vanguarda, de um país que construiu uma capital do nada, para um país em que a arquitetura perdeu a força a ponto de se tornar cosmética. Ele defende que não se projeta mais, não se planeja, não se tem proposta. Qual é o desafio para vocês, arquitetos e urbanistas, pensadores da arquitetura, nesse aspecto? A gente está falando aqui de uma sociedade líquida, de uma contemporaneidade que traz uma perda de força do arquiteto, mas, ao mesmo tempo, de uma cidade que obriga o arquiteto, seja ele professor, gestor ou executor, a agir, porque a cidade está crescendo.

LÚCIA LEITÃO Só se procura o planejador, no caso, o urbanista, quando os problemas estão criados. Não antes de criar. Essa lógica não é simples de inverter, porque ela tem a ver com o modo como a gente se organiza socialmente, e eu estou falando bem da cidade brasileira. Não é toda cidade no mundo que não tem planejamento. Algumas são muito bem planejadas. Nós, profissionais de arquitetura e urbanismo, sabemos planejar bem uma cidade, mas de novo aquela história, se a sociedade reconhece isso como sendo um valor. Aí a gente chega à questão política. Quando as pessoas elogiam Curitiba como tendo sido um modelo de planejamento urbano no Brasil, eu sempre lembro que, no momento em que isso aconteceu, Curitiba tinha um prefeito que era um urbanista, e criou uma equipe para fazer isso. Ou seja, ele associou o poder técnico do projetista com o poder político do decisor. E o que a gente tem? Eu trabalhei na URB Recife, com a Secretaria de Planejamento, e a última gestão que a gente teve de urbanismo, de alterar a legislação de uso do solo e tal, foi feita por essa equipe. Primeiro, lembro que a gente participou da discussão de um plano diretor aqui, no final da década de 1990, e, quando chegou à Câmara dos Vereadores, esse projeto foi trucidado. Entraram com um substitutivo. Na época, a gente propunha um nível zero de crescimento em determinadas áreas da cidade que não suportavam mais, não tinham mais infraestrutura. Naquela ocasião, os planejadores do Recife já diziam que essa área ficaria estrangulada – foi o que aconteceu depois, e levou, inclusive, a prefeitura a fazer a lei dos 12 bairros, que é um arranjo. Quando você propõe para alguns bairros, numa emergência, estoura para os marginais. Não deu outra: Torre, Madalena, Rosarinho, estouraram completamente. Mas isso não foi falta de planejamento, foi uma decisão política. Porque não interessava a quem? Ao mercado imobiliário. A gente tem prefeitos – e não estou falando do prefeito atual, mas de gestores públicos no Brasil – cuja lógica é desfazer o que o antecessor fez. Um plano diretor não é feito por uma gestão, precisa de tempo para ser implantado. Os prefeitos brasileiros, em sua esmagadora maioria, engavetam o plano e fazem o seu plano de governo. Porque um plano diretor, assim como uma lei, constrange interesses, diz onde pode e onde não pode, e esse poder e não poder deve ser em benefício do interesse coletivo, da cidade, e não do interesse particular.


Vitória Régia Andrade

JOÃO DOMINGOS AZEVEDO Eu acho que são, na verdade, dois movimentos. O que eu estava falando da ditadura é que não só foi criada uma estrutura de planejamento, como também se empoderava essa estrutura de planejamento para poder fazer com que os objetivos acontecessem. Quando a gente perdeu essa mão forte, terminou gerando uma situação em que essa estrutura de planejamento gerava incômodos a quem estava ali, eventualmente, no poder como gestor. A oportunidade que nos avizinha é que, diante de uma situação de caos, na qual os arquitetos perderam tanto assim a sua influência, de alguma forma somos chamados de novo a ser protagonistas. Precisamos nos colocar como atores, mas, ao mesmo tempo, tentar agora não ser tão servis ao poder, mas buscar essa servidão na sociedade.

LÚCIA LEITÃO Nesse ponto, a gente tem uma novidade. Quando comecei minha vida como professora, e antes até, quando comecei a estudar arquitetura, quem era o estudante dessa área? Era a classe média alta. Sempre foi um curso elitizado e elitizante. Então, claro que esses alunos vinham com essa herança cultural de identidade com o poder. Hoje, não tem isso. Temos um grupo importante de alunos que vem das camadas mais pobres. E, quando você vê movimentos que temos vivido no Recife de reação da população, vê que os estudantes de arquitetura estão se colocando, criticando de outro ponto de vista. Não são apenas os filhos da classe média e alta que estão pensando a cidade.

LUCIANA VERAS Acho que a gente pega um pouco o exemplo da própria personagem Jéssica, do filme Que horas ela volta?, da Anna Muylaert. É uma jovem que sai de Pernambuco e vai a São Paulo tentar fazer vestibular para a FAU, o que causa certo estranhamento na família para a qual Val trabalha. Tem até uma fala. O personagem do pai pergunta “por que arquitetura?”, e ela diz que a arquitetura é uma ferramenta para transformar a sociedade, transformar o mundo.

LULA MARCONDES Interessante. Acho que os alunos, independentemente de terem um background mais aberto, se não tiverem vivências mais amplas na cidade, têm um obstáculo imenso. Se a gente observa os arquitetos que estão se formando hoje, sabe que eles convivem com um cenário muito diferente daqueles que estão com 30 anos para cima e que viviam numa cidade de mobilidade muito mais tranquila. Vivíamos a possibilidade de ir aonde a cidade estivesse pulsando, muito mais que hoje. Porque, além disso, hoje existe a cultura do medo, que está engessando lares e dinâmicas de vida. Porque alunos, hoje, de arquitetura, que serão cirurgiões da cidade, e precisam conhecê-la, se mantêm numa vidinha que é casa, faculdade, estágio. Quando você se familiariza com a cidade, traz lições. Sempre digo aos alunos: vão para a rua, aqui é um pit stop; vão para a rua, porque lá é o grande laboratório.


João Domingos Azevedo

LUCIANA VERAS Essa cultura do medo também não está, de certa forma, alicerçada numa arquitetura do medo?

LÚCIA LEITÃO Tenho que discordar bem fortemente. Essa arquitetura do medo não é uma arquitetura do medo. Escrevi um livro inteirinho para mostrar que não é assim. A gente diz isso porque é bonito dizer. Em qualquer ambiente social, posso chegar e dizer que moro nesse edifício semiprisional porque a cidade é muito violenta. E a gente consegue dar 250 exemplos do que aconteceu ontem, e dizer que é por isso que eu moro aqui. Não é verdade. Moro ali por uma questão de distinção, para dizer que sou mais importante do que o outro.

CLARISSA DUARTE Tem uma questão que eu queria retomar aqui, que surgiu na fala de todos nós. É a questão da cultura. Aí cito mais particularmente a cultura urbana do cidadão recifense. Nesse cidadão, estou incluindo todos os produtores de cidade, que somos nós, arquitetos e urbanistas, políticos, empreendedores, poderes público e privado. Esses construtores de cidade estão vendo que não podem mais ser um grupo menor que está planejando. A gente tem de entrar na questão da importância da colaboração social ativa, porque cidadania não é só ter direitos, mas responsabilidade com a cidade. Estou na academia, atualmente, criticando e exigindo melhoras na qualidade de vida urbana dos cidadãos e, de outro lado, estou tentando, com a Prefeitura do Recife, produzir uma cidade melhor. E a gente está se esforçando no sentido de ter uma maior colaboração social, que não seja só criticar, mas colaborar e propor.

ADRIANA DÓRIA É, acho que precisamos religar o profissional de arquitetura à cidade, porque ele ficou muito ligado ao mercado e às demandas acadêmicas.

VITÓRIA RÉGIA ANDRADE As instâncias de planejamento precisam ser renovadas. O arquiteto funcionário público precisa reocupar esses espaços e essas equipes, porque não adianta produzir projetos se não houver continuidade. O planejamento também tem um monitoramento e quem faz o monitoramento são equipes. Por que, antes, os arquitetos tinham mais poder sobre as legislações? Porque formavam-se corpos técnicos. A URB tinha um grande corpo que executava e planejava, a Fidem era um lugar de pesquisa. Então, o poder público deixou de ter esses técnicos. Porque, lá, você está num embate direto com o prefeito, direto com quem faz as leis. E o arquiteto perdeu isso. Você concorda, Lúcia?

LÚCIA LEITÃO Em parte, Vitória. O arquiteto não perdeu esse lugar que você está falando no setor público, porque a gente tem tido concursos, tem gente trabalhando. A gente perdeu foi respeitabilidade, a condição de ser ouvido. Mas acho que se perdeu isso como parte da perda do poder público, no momento em que o poder público abriu mão de ser o grande articulador do planejamento da cidade. O poder público, pelo menos municipal, no Brasil contemporâneo, deu essa tarefa, de bandeja, ao mercado imobiliário. Por que o poder público abriu mão? Algum ganho ele está tendo. A gente está vendo, no momento contemporâneo, como são as relações fraudulentas da construção civil. E ninguém é ingênuo de pensar que essa relação corrupta ocorre apenas nos grandes empreendimentos de petróleo etc. Tinha um cidadão chamado Giulio Carlo Argan, que inclusive foi prefeito de Roma, mas era antes de tudo um grande teórico. Ele dizia que o grande papel do urbanista era ser um educador de cidades. Eu acho que é isso que a gente precisa retomar. O que cabe a cada um no papel de urbanista é desempenhar ou desenvolver todos os métodos e metodologias possíveis de educar. 

Mediação:

ADRIANA DÓRIA, editora-chefe da revista Continente, professora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco, mestre em Teoria da Literatura (UFPE), com estudo comparativo entre as crônicas de João do Rio e Fernando Bonassi.

LUCIANA VERAS, jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco, com especialização em Estudos Cinematográficos pelas Universidade Católica de Pernambuco, e repórter especial da revista Continente.

Convidados:

CLARISSA DUARTE, arquiteta e urbanista, mestre em Planejamento Urbano e Dinâmica dos Espaços pela Universidade Paris 1 - Sorbonne. Sócia-fundadora do Escritório CD Arquitetura e Urbanismo e professora da Unicap. Atualmente, integra a equipe de coordenação do Plano Centro Cidadão.

JOÃO DOMINGOS AZEVEDO, Arquiteto e urbanista formado pela UFPE. Sócio-fundador do escritório Metro Arquitetura. Conselheiro estadual de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco - CAU/PE, exercendo segundo mandato. Atual presidente do ICPS - Instituto da Cidade do Recife - Pelópidas Silveira.

LULA MARCONDES, sócio-diretor do escritório O Norte - Oficina de Criação, fundado em 1998. Arquiteto pela UFPE (1997), mestre em Arquitetura pela Universidade do Texas em Austin/EUA, professor do Departamento de Arquitetura da Unicap, músico e artista plástico.

LÚCIA LEITÃO, Arquiteta, doutora em Arquitetura, com pós-doutorado na Universidade Paris-Descartes, Sorbonne. Professora do Departamento de Arquitetura da UFPE, pesquisadora do CNPq desde 2006. É autora de vários livros, entre os quais Quando o ambiente é hostil (2014).

VITÓRIA RÉGIA ANDRADE, arquiteta e urbanista formada pela UFPE, diretora da Cradus Estrategias Urbanas e Arquitetura e atual presidente do IAB-PE. Dentre seus principais trabalhos, destaca-se a realização e coordenação do primeiro Workshop de Desenho Urbano do Brasil - Recife Utopia Viva.

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