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“Ele redefiniu o cinema humanista”

Ao realizar o documentário 'Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang', o autor de 'Central do Brasil' afirma retratar, com intimidade, aquele que ele chama de "um dos melhores intérpretes do nosso tempo"

TEXTO Luciana Veras

01 de Outubro de 2015

Walter Salles

Walter Salles

Foto Mário Miranda Filho/Divulgação

"A decisão parte do desejo de fazer um filme sobre diversas camadas da memória”, descreve o cineasta carioca Walter Salles a respeito da gênese de Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang (Brasil/China, 2014), sua mais recente incursão no gênero documental. Em cartaz no país desde setembro, trata-se do quarto documentário na filmografia de Salles, que inclui nove longas ficcionais, entre eles Terra estrangeira (1996), Diários de motocicleta (2004), Linha de passe (2008), Na estrada (2012) e, claro, Central do Brasil (1998) – mais de 60 prêmios internacionais, entre os quais o Urso de Ouro da Berlinale. De fato, não são escassas as lembranças e as reflexões por elas engendradas, em Um homem de Fenyang.

Salles conduz o espectador à memória pessoal e afetiva do diretor chinês, que conheceu noFestival de Berlim e de quem se aproximou ao longo dos anos. Zhang-ke, autor de Plataforma (2000), Em busca da vida (2006), Um toque de pecado (2013) e do recente Mountains may depart (2015), exibido na competição em Cannes em maio passado, fala sobre sua infância e sobre influências cinematográficas enquanto visita locações dos seus primeiros filmes ou casas na província de Shanxi. onde morou. Nada é como antes, na China, no Brasil, no cinema e tampouco no mundo. Para Salles, o cineasta asiático é “um grande intérprete da contemporaneidade”, justamente ao se concentrar “sobre o efeito que as transformações têm no homem, que é a matéria-prima que lhe interessa”. “Por isso, penso que ele redefiniu o que chamamos de cinema humanista, um pouco como Kieslowski fez nos anos 1990”, resume Salles, em entrevista àContinente.

CONTINENTE O que levou você a querer filmar um documentário sobre Jia Zhang-ke? O que teria desencadeado esse desejo de partilha da visão de mundo de um dos cineastas mais importantes da contemporaneidade?
WALTER SALLES Conheci a obra de Jia Zhang-ke cedo, por uma coincidência que aconteceu no Festival de Berlim de 1998. No mesmo ano em que Central do Brasil foi selecionado pelaBerlinale, o primeiro filme de Jia Zhang-ke, Pickpocket, também foi selecionado pela sessão paralela Fórum. Quando vi esse filme e logo depois a obra-prima que é Plataforma, segundo filme de Jia Zhang-ke, fiquei profundamente impactado por um jovem cineasta que falava de forma tão sensível do nosso tempo, da transição dos anos de juventude para maturidade, e daquilo que se perde nesse processo. Mais ainda, fiquei impressionado em ver como a transformação dos personagens refletia algo maior, a mutação de um país que iniciava a transição entre uma economia planificada e uma economia de mercado, com todos os traumas associados a essa decisão. Fui pouco a pouco percebendo que Jia Zhang-ke tinha se transformado em um dos melhores intérpretes, senão o melhor, do nosso tempo. Um cineasta extremamente talentoso no país onde as transformações que vivíamos eram as mais aceleradas. Nesse momento, nasce o desejo de fazer não só um documentário, mas também um livro sobre Jia Zhang-ke, suas influências, o seu processo de trabalho e, mais do que tudo, a sua visão de mundo tão original e singular.


O diretor chinês Zhang-ke. Foto: Divulgação

CONTINENTE Qual foi a reação inicial de Jia ao saber do seu projeto?
WALTER SALLES Como foi um processo de lenta maturação, uma ideia que fomos desenvolvendo à medida que íamos nos encontrando nos festivais, ela tomou corpo de forma natural. Foi bom termos esperado vários anos antes de filmar, não só porque a obra de Jia foi se tornando cada vez mais ampla e representativa, mas também porque fomos nos conhecendo melhor. Essa proximidade é que permitiu a filmagem de um documentário tão íntimo, em que ele nos abriu as portas de sua família, seus amigos, e para a cultura tão singular da província de Shanxi, onde ele nasceu, no Norte da China – praticamente na fronteira com a Mongólia. É um mundo dentro de outro mundo, uma cultura única e original. Ter tido a possibilidade de filmar nessa região, graças a Jia, foi um presente.

CONTINENTE O que provocou a decisão de filmá-lo em sua cidade natal e, por conseguinte, nas locações de vários de seus filmes?
WALTER SALLES A decisão parte do desejo de fazer um filme sobre diversas camadas da memória. Existem as memórias da infância do Jia, dos anos de transição da adolescência para a idade adulta, e também a memória de uma cidade em transformação, que é Fenyang, onde ele nasceu. Finalmente, quis convidá-lo a voltar aos lugares em que ele havia filmado para trazer à tona uma terceira camada da memória, que é a própria memória fílmica. Ou seja, as lembranças das cenas que filmou, dos momentos que acabaram construindo os filmes que eu tanto admirava.

CONTINENTE Um homem de Fenyang é uma viagem à história do diretor chinês e também a tudo que de uma forma ou de outra participou de sua construção como sujeito e autor. Fala da vida dele, da China e do mundo. Que linhas de pensamento e diretrizes você seguiu para atingir esse equilíbrio?
WALTER SALLES O que Jia Zhang-ke faz é trazer, através dos seus filmes, o cinema de volta ao centro de debate. Era essa a função do cinema nos anos 1960 e 1970: os filmes discutiam os efeitos de Maio de 68, a Guerra do Vietnã, tudo aquilo que nos redefinia. Mas, aos poucos, o cinema foi se distanciando desse palco de discussão, e outras formas de expressão e de comunicação mais imediatas, como são hoje as mídias sociais, tomaram o seu lugar. Os filmes de Jia Zhang-ke são de tal forma fundamentais na discussão da transformação da sociedade chinesa, que não há como entender profundamente as suas mudanças sem mergulhar emPlataformaEm busca da vida ou Toque de pecado. Se você assistir a esses filmes em ordem cronológica, terá uma percepção muito mais clara da violência e da brutalidade das transformações ocorridas no mundo do que ler 30 matérias da revista The Economist sobre a China. Mais do que isso, Jia se concentra sobre o efeito que as transformações têm no homem, que é a matéria-prima que lhe interessa. Por isso, penso que ele redefiniu o que chamamos de cinema humanista, um pouco como Kieslowski fez nos anos 1990.

CONTINENTE Os filmes de Jia Zhang-Ke enfatizam as mutações do mundo e de uma China em desconexão com suas tradições – uma reflexão que pode ser feita a respeito de muitos países capitalistas. Isso foi algo considerado na concepção do projeto?
WALTER SALLES Sim, pelo simples fato de que, com a globalização, as crises vividas pelos personagens dos filmes de Jia Zhang-ke se tornaram cada vez mais próximas da gente. Ou seja, passaram a espelhar situações que você podia identificar no Brasil ou em outras latitudes. A globalização fez com que o cinema de Jia Zhang-ke, que é tão local e reflete uma realidade tão específica, também nos espelhasse e reproduzisse. Esse é um dos estranhos efeitos dos tempos que vivemos, essa compreensão de que as causas e consequências das crises no mundo contemporâneo não estão mais relegadas a uma única latitude, e, sim, a algo mais amplo. Aquilo que acontece no outro lado do mundo também pode estar acontecendo ao seu lado.


Cena de Em busca vida, de Zhang-Ke. Foto: Divulgação

CONTINENTE Há um momento no filme em que Jia pondera sobre o fato de que as cidades do mundo inteiro estão ficando iguais – creio que ele se refere às publicidades que vê nelas. A reflexão pode ser estendida para outras áreas, como os próprios filmes dele atestam. Qual a função do cinema, e da arte de uma maneira geral, no contexto de questões como essa? Como discutir a padronização urbanística que faz com que Recife e Miami sejam idênticas, na opinião do sociólogo britânico David Harvey em entrevista recente à Continente?
WALTER SALLES Ótima pergunta, e que me remete a uma frase que me disse uma vez o escultor Franz Krajcberg. Estávamos filmando o documentário que fizemos juntos, Socorro nobre, e ele disse: “Hoje, acordo em um hotel e não sei mais se estou em São Paulo, em Chicago ou em uma cidade europeia”. A padronização arquitetônica, dos gostos e dos costumes, é um fato evidente. Como lidar com ela, ou em outras palavras, como resistir e combater esse estado de coisas? Essa é uma das principais questões contemporâneas.

CONTINENTE Que similaridades você enxerga entre sua obra e os filmes dele? Possui algum filme favorito de Jia?
WALTER SALLES Acho que Plataforma é uma obra-prima, o filme de Jia Zhang-ke que revi o maior número de vezes. O filme acompanha o processo de desintegração de uma trupe de teatro maoísta de uma pequena cidade, Fenyang, à medida que os anos passam. Ao final, alguns de seus membros acabam dançando break dance à beira de uma estrada, evidenciando a perda de referências que passou a afetar toda uma cultura. O cinema, antes de tudo, é uma forma de expressão que acompanha personagens ao longo do tempo e do espaço. Em Plataforma, todas essas possibilidades trazidas pelo cinema são investigadas à flor da pele. É um dos filmes mais impressionantes e extraordinários que já vi, uma obra realmente essencial para entender aquilo que aconteceu não só com a China, mas com o mundo a partir dos anos 1990. Quanto à similaridade entre os filmes de Jia e os meus, não sei se existem… Prefiro pensar que o admiro justamente porque ele consegue reproduzir no cinema aquilo que eu não consigo alcançar, que é essa capacidade de nos refletir de uma forma tão sensível e aguda.

CONTINENTE Para terminar: que outro cineasta que você admira poderia merecer uma homenagem igual a essa? E como reagiria se recebesse uma proposta igual de um outro cineasta interessado em retratar seu modus operandi?
WALTER SALLES Admiro os filmes de diversos cineastas contemporâneos, mas não sei se uma obra de outro realizador me toca tanto quanto a de Jia Zhang-ke, hoje. Sou um grande admirador de Chris Marker e teria adorado fazer um documentário sobre ele. Mas, como você sabe, Marker era totalmente avesso a essa possibilidade, detestava ser filmado ou fotografado. Mas olhe que possibilidade interessante, a de um documentário sobre um artista que você jamais poderia mostrar... 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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