Uma casa para o Vivencial Diversiones
Mateus Araújo
Grupo surgido nos anos 1970, em Olinda, volta à cena cultural, montando sede no Recife e estreando espetáculo em comemoração aos seus 40 anos
Entre as vigas largas interligadas por tapumes de madeira transformados em um provisório chão, o ator e diretor Henrique Celibi se equilibra para apresentar os dois andares da nova república do Vivencial Diversiones. Num casarão abandonado, no Bairro do Recife, o símbolo da transgressão teatral dos anos 1970 em Pernambuco vai ressurgindo, quatro décadas depois de extinto. O prédio – que um dia foi boate underground e há 12 anos deixado de lado por seus donos, servindo de depósito de metralhas e abrigo para moradores de rua – hoje faz parte de um sonho ousado do coletivo anárquico e de afiada crítica ao moralismo social.
O grupo – surgido em 1974, em Olinda, como braço artístico da pastoral da juventude da Arquidiocese de Olinda e Recife – foi expulso pelos beneditinos logo depois da estreia por encenar esquetes ligadas à homossexualidade, violência, massificação e drogas. Abrigados por cinco anos no Teatro Guadalupe, também na cidade histórica, os atores juntaram dinheiro e conseguiram criar sua própria sede no Complexo de Salgadinho, o Vivencial Diversiones, espaço de peças, apresentações músicas e shows de travestis que funcionou até 1983.
O desejo de reabrir o Vivencial 40 anos depois surgiu de Henrique Celibi. Cria da verve transgressora do grupo olindense, o ator descobriu sua potência artística mirando-se no espelho das travestis e transformistas que habitavam aquele ambiente vertiginoso da república irreverente.
Aos 14 anos, em 1979, ele fez sua estreia no cabaré teatral e entrou para o elenco sem papas nas línguas e vergonha no corpo. “Eu morava na Ilha do Maruim (periferia de Olinda) e na escola era chamado de ‘bichinha’. Nunca quis jogar bola; queria ser artista. Quando minha mãe morreu, fiquei sem ninguém, e o Vivencial me acolheu”, lembra, sem medo aparente de andar nas madeiras frágeis que substituem o chão inexistente do prédio.
Com o fim do grupo, Celibi passou a integrar equipes de outras companhias pernambucanas, seja como diretor ou figurinista, e criando personagens memoráveis do humorístico local, como Cinderela, vivido pelo ator Jeison Wallace, e sucesso de público no estado na década de 1990.
Há 15 anos fazendo figurinos e adereços para o Grupo Experimental de Dança, que funciona num prédio maltratado no histórico Bairro do Recife, Henrique Celibi observava o casarão vizinho abandonado e vislumbrava fazer dele um espaço de arte. Entre as tantas puladas de muro para usar aqueles escombros como oficina de criação, o diretor pensava em reavivar o Vivencial ali, numa simbólica metáfora de reconstrução.
OCUPAÇÃO
O número 139 da Rua Vigário Tenório foi invadido há dois anos por Celibi e Guilherme Coelho, um dos fundadores do grupo mítico, numa “ocupação pacífica” – como eles chamam. Os donos do prédio sequer questionaram a invasão, e em breve a casa deverá estar legalmente nas mãos do grupo de teatro. “Essa casa é de uma senhora. Ela já sabe que estamos aqui, mas nunca procurou brigar por isso. Temos advogados resolvendo o processo e em breve o IPTU virá para o nosso nome”, explica Celibi.
Foram necessários seis caçambas de papa metralha e três caminhões para tirar os entulhos amontoados dentro do casarão. O trabalho foi feito por Celibi e Guilherme, ajudados, a partir de então, por Fábio Coelho, também ex-integrante do coletivo, e hoje morador do local.
As pretensões para a casa são generosas. No térreo, já ocupado por objetos de cenário e figurino, deverá existir um espaço de leitura e pesquisa de linguagem cênica. Acima, ainda sem chão, o mezanino se transformará num teatro para as apresentações das vivecas – como são chamados os integrantes do elenco. E o segundo andar, uma espécie de hostel, hospedará grupos e artistas que vierem ao Recife em turnê.
Como muitos dos prédios do casario que compõe o Bairro do Recife, este é mais um que grita por recuperação. O Vivencial pretende fazer do prédio uma ocupação teatral sonhada não só pelos integrantes do grupo, mas por muitos outros artistas pernambucanos que desejam potencializar o bairro como um centro de resistência cultural. Em frente à casa está o Espaço Cênicas; ao lado, o Grupo Experimental de Dança.
O projeto de criação aprovado no Prêmio de Fomento às Artes Cênicas da Prefeitura do Recife fez Celibi concretizar parte do seu sonho. Ele uniu um elenco de 10 pessoas para remontar o Cabaré Diversiones e gastou mais de R$ 10 mil do próprio bolso para colocar o espetáculo em cena outra vez – já que o pagamento do edital atrasou e ele não “deixaria as pessoas na mão”. Com essa dezena de artistas – a maioria atores de humorísticos populares e apenas uma ex-viveca, Sharlene, o trabalho estreou no final de agosto no Teatro Hermilo Borba Filho. “Era importante comemorar os 40 anos do Vivencial (celebrados no ano passado) fazendo uma montagem”, lembra o diretor.
A VOLTA
A montagem, ainda sem data para voltar ao cartaz, lotou a plateia de gente ansiosa para rever – ou conhecer, no caso dos mais novos – o falado grupo tropicalista de quatro décadas atrás. Desse sucesso, parte se deve ao filme Tatuagem (2013), do diretor Hilton Lacerda, que lança luz sobre a subversão do grupo teatral, transformando o coletivo em pano de fundo para a história de amor entre o soldado Fininha (Jesuíta Barbosa) e o ator Clécio (Irandhir Santos).
Sob direção de Henrique Celibi, o Cabaré une com sarcasmo esquetes antigas do grupo, costuradas com temas atuais, como a crise política brasileira, os preconceitos de gênero e a desvalorização da arte. Já a repressão que pairava como fantasma para os integrantes do grupo nos anos de ditadura militar agora é substituída pelo contexto em que o discurso conservador se apresenta tão forte como no passado.
“O espetáculo é um agradecimento ao grupo que me tirou de uma possível marginalidade. Se não fosse o Vivencial na minha infância, eu poderia ter seguido um caminho perdido como outros meninos que conheci”, afirma Celibi. Na peça, além de estar no elenco, ele foi um faz-tudo: dirigiu, fez cenário, figurino, coreografia e coassinou o texto.
Se um dia esteve à margem dos olhares da sociedade e dos próprios artistas do Recife, seja pelos seus deboches ou pela “falta de profissionalismo”, agora o Vivencial retorna em um momento de valorização. “Hoje somos santificadas, mas sempre fomos mesmo demônios”, brinca Celibi. “No passado, as pessoas faziam ‘beijinho no ombro’ para a gente, e nem todo mundo queria chegar perto do Vivencial. O elenco não era de atores profissionais e, por isso, nem sempre era respeitado”, conta.
O diretor lembra que ele e seus amigos brigavam pela igualdade e tinham a transgressão como arma de discurso. “A gente não queria que as pessoas fossem caretas. Muitas vezes, nas festas que aconteciam na república, em Olinda, a gente ficava de garçom, e quando via as pessoas morgadas, mexíamos na música e começávamos a tirar a roupa. A gente chocava todo mundo, transcendia a festa dos outros”, comenta, às gargalhadas.
Quarenta anos depois, a nudez ainda é algo que causa estranhamento, segundo Celibi, e, dessa vez, para o próprio elenco. No passado, o motivo era a censura; hoje, a religião. “Tive problemas com a nudez na peça. Quando falei da possibilidade de ficar nu em cena, alguns atores desistiram e os que ficaram só relaxaram depois da estreia”, lembra. “Tenho atores de famílias evangélicas, que não posso nem marcar nas fotos do Facebook. Mas o Vivencial sempre foi de transformar a realidade, e eles terminam sendo transformados”, completa ele, para quem o casario, com previsão de abrir as portas em 2016, servirá não só de ocupação de arte e oficinas culturais, mas de mudanças humanas. “O futuro, a gente quer que venha.”
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Pernambouc Quartet: A polivalência de quatro músicos
Texto: Valentine Herold
Fotos: Rafael Bandeira
Experientes instrumentistas formam projeto especial com intuito de apresentar ritmos nordestinos à França, onde cumprirão agenda de festivais e workshops
O nome não deixa dúvidas: é bem de música e de músicos pernambucanos que estamos falando. O frevo das ladeiras de Olinda, o repente do sertão do Pajeú, a percussão de matrizes africanas do Morro da Conceição e os acordes dos ritmos tradicionais do Agreste se encontram no Pernambouc Quartet, formando uma amálgama rítmica e melódica que emana dos instrumentos de Lucas dos Prazeres (percussão), César Michiles (flauta transversal), Antônio Marinho (voz) e Breno Lira (violão e guitarra). Agora em novembro, o quarteto embarca para a França, onde vai cumprir uma agenda de festivais e workshops sob o propósito pelo qual foi criado, a pedido da jornalista francesa Françoise Degeorges e sob a tutela e curadoria do produtor pernambucano Amaro Filho.
Desde o início de agosto, os músicos vêm se encontrando duas vezes por semana para ajustar o repertório que será apresentado em Nîmes, Toulouse e Paris nas próximas semanas. O último ensaio ocorreu na primeira semana de setembro e foi iniciado de maneira despretensiosa, porém certeira. A chegada da equipe de reportagem não alterou o curso dos ajustes que Marinho e Lira faziam para a canção Peleja, protagonizada pela viola e escrita por Lira e Juliano Holanda, outro nome expoente da atual cena musical pernambucana. Em um movimento crescente, após repassarem alguns versos, a flauta de Michiles se juntou ao duo que, já em trio, foi complementado em seu quase final pela chegada de Lucas e de seu cajón.
Também dessa forma, pela mistura sonora, foi pensado o repertório do Pernambouc Quartet. Do coco ao frevo, passando pela embolada e pelo maracatu. Uma localidade inteira de gêneros musicais tradicionais da cultural popular nas 16 canções escolhidas pelo quarteto. Além de composições de cada um dos integrantes, foram incluídas músicas de artistas clássicos do estado, como Luiz Gonzaga (revisitado em seu Algodão, por exemplo), Domiguinhos (com Lamento sertanejo), Jota Michiles (Recife nagô) e Chico Science (com A praieira). Todas as faixas foram rearranjadas pelo quarteto de maneira contemporânea. “Resolvemos dar uma chance para um representante de outro estado também. Um rapaz muito bom que está começando a carreira agora, Heitor Villa-Lobos”, brinca Antônio Marinho, referindo-se à inclusão de Trenzinho caipira no repertório dos shows.
Aliás, as três horas de ensaio foram todas assim, repletas de brincadeiras e sinergia. Quando questionados se já haviam tocado juntos antes desse projeto, é César quem responde: “Em vidas passadas, já”. É perceptível o comprometimento de cada um com o fazer artístico, seja nos arranjos das canções ou nas inúmeras repetições de certos trechos no ensaio. Além das faixas que serão executadas pelos quatro durante as apresentações, haverá um momento de solo para cada.
A escolha do repertório se deu de forma natural, segundo os integrantes e o produtor. Havia certa premissa de representar a diversidade musical do estado, e isso foi refletido sem muito planejamento através da história e trajetória musical de cada um. “A nossa matriz individual é complementar à outra. Nós viemos do mesmo Pernambuco, a diferença é o palmo de chão onde nascemos”, explica Marinho. “É a música que tem que mandar aqui.” César complementa dizendo que a mescla de ritmos e de referências é a principal razão de estarem reunidos. “A experiência que cada um tem, a vivência musical, facilitaram muito a união do grupo.”
HERDEIROS
Lucas dos Prazeres nasceu e foi criado com a força do maracatu e da dança no Morro da Conceição. Integrou o trio instrumental Rivotrill, circula desde 2013 com o espetáculo Frevo de casa (acompanhado do Maestro Spok, de Flaira Ferro e Valéria Vicente) e, há quatro anos, criou a Orquestra dos Prazeres – projeto que reúne 30 percussionistas em uma grande orquestra –, entre outros projetos.
Breno Lira, natural de Caruaru, é formado pela UFPE e pelo Conservatório Pernambucano de Música (CPM), onde também é professor. Já trabalhou com diversos artistas, como Yamandu Costa, Hermeto Pascoal, Silvério Pessoa e Lula Queiroga, além de ter integrado a SpokFrevo Orquestra e Treminhão. Sua formação erudita cedeu espaço já há alguns anos aos acordes dos ritmos populares pernambucanos.
Diretor musical de Geraldo Azevedo, César Michiles carrega em seus sopros de flauta a herança musical de seu pai, o compositor de frevo J. Michiles. Estudou no início dos anos 1990 na Manhattan School of Music e atua também como arranjador. Com apenas 11 anos, tocou ao lado do Rei do Baião, Luiz Gonzaga. Fagner, Chico César e Alceu Valença são alguns dos artistas com os quais César também se apresentou.
Antônio Marinho também convive, desde que nasceu, em São José do Egito, com arte e poesia. Neto de Lourival Batista, o Louro do Pajeú, o talento de criar sextilhas e rimas cantadas permanece na família. É que Marinho integra, junto a seus irmãos Greg e Miguel e sua mãe Bia, o grupo Em Canto e Poesia.
A decisão de juntar trajetórias tão distintas foi “pensada e pinçada”, segundo Amaro Filho. “A ideia, desde o começo, era a de que seriam quatro músicos polivalentes em seus instrumentos”, explica. Esse tal começo ocorreu no último mês de fevereiro, quando Françoise, âncora de um programa sobre música ao redor do mundo na Radio France, passou uma semana em Pernambuco produzindo matérias especiais.
Durante esse período, ela entrevistou diversos músicos e representantes da cultura popular local, como Naná Vasconcelos e os próprios Antônio Marinho, César Michiles e Lucas dos Prazeres. Amaro foi quem elaborou os roteiros da viagem. “No penúltimo dia, Françoise veio com essa história de querer montar um grupo para tocar no Festival de Nîmes, do qual é curadora”, lembra o produtor. No início, Amaro pensou em formar um duo. Mas Françoise preferiu um trio. “Aí eu disse: então vamos levar um quarteto! Mas já ouvi tanto papo de gringo, que deixei para lá, achei que não fosse rolar. No dia seguinte, ela me disse que já havia falado com o pessoal do festival e que já podíamos pensar nos nomes, incluindo músicos que havíamos visitado nessa estada.”
Criado para essa turnê francesa, o Pernambouc Quartet se configura até o momento como um projeto pontual. Mas a vontade de permanecer como um grupo, quando forem solicitados, está nas conversas dos músicos. “Todo mundo tem seus trabalhos independentes e ninguém vai deixá-los. Mas, pintando convite, por que não? Acho que tem que ganhar o mundo todo. Se não for nem Lucas, nem Breno, nem César nem o Em Canto e Poesia que querem, se for o Pernambouc Quartet, vamos embora”, arremata Marinho. C’est parti, então.
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HQS: identidades movediças
Germano Rabello
Talco de vidro, de Quintanilha, e Lavagem, de Shiko, lançadas quase simultaneamente, são obras desafiadoras que comprovam a vitalidade do quadrinho nacional
Marcello Quintanilha e Shiko estão entre os mais prestigiados nomes do quadrinho nacional. Existe em ambos uma grande dedicação à técnica, visível no traço, na transformação fiel e bem-planejada do discurso em linguagem. Em meio a grandes diferenças, o lançamento quase simultâneo de seus trabalhos mais recentes faz perceber a complementaridade de suas visões sobre o ser humano. Talco de vidro, de Quintanilha, e Lavagem, de Shiko, estão ligados por uma persistente lembrança de coisas que ameaçam nos devorar vivos: o mundo lá fora, o ego aqui dentro. São ruídos de fundo cuja intensidade aumenta de forma sub-reptícia e constante.
Os lançamentos são boas notícias em si e, além disso, sinais da vitalidade do mercado editorial brasileiro. A produção de quadrinhos não para, seja pelas grandes editoras, seja por editoras menores, sejam fanzines ou álbuns de luxo. Lavagem e Talco de vidro são publicações em capa dura, com produção muito além da média. As editoras, Mino e Veneta, respectivamente, apareceram no mercado há pouco tempo e já apresentam no currículo alguns lançamentos bem-selecionados, conquistando espaços através da inteligência. A Veneta foi premiada com o Troféu HQMix de melhor editora e, por ela, Marcello Quintanilha recebeu o prêmio de melhor roteirista nacional, pelo álbum anterior, Tungstênio. A livraria é hoje a principal vitrine do quadrinho nacional, ao menos em se falando de edições físicas, ou seja, descontando a internet.
Quintanilha, nascido em 1971 na mesma Niterói que é o ambiente da sua graphic novel, é desses que pegaram o bonde do quadrinho nacional em fase de transição, nos anos 1990. Mas ele foi comendo pelas beiradas e fazendo seu nome em salões de quadrinhos, e em revistas variadas (todas de duração curta). Mas um dos seus maiores entusiastas foi sempre Rogério de Campos que, nas editoras Conrad e Veneta, publicou a quase totalidade das obras dele, começando por A fealdade de Fabiano Gorila (1999), passando por Sábado dos meus amores (2009) e Almas públicas (2011).
Como se não bastasse a precisão do seu traço, seu roteiro e seu texto estão entre os mais elaborados do quadrinho nacional. Em Talco de vidro, a narrativa se desfaz em lembranças, acontecimentos banais, à primeira vista insignificantes. A gente se aproxima da personagem principal, temos acesso à sua intimidade; até aos seus pensamentos – ou como o texto ressalta, às suas sensações. E são essas sensações, vagas, inconscientes, não decifradas, que levam Rosângela a sair dos trilhos de sua vida aparentemente perfeita. Mesmo numa situação confortável de classe média, de êxito profissional, casamento estável, a mente abre espaço para uma crise.
O sentimento geral é reforçado já do título, a partir da combinação de elementos díspares, entre o que é reconfortante e o que pode perfurar, entre o que é familiar e o que é ameaçador. Não é leitura das mais fáceis, para o público em geral, não tem uma grande trama de mistério nem heróis, são os sentimentos varridos para debaixo do tapete que interessam aqui. Estão expostas a mesquinhez e instabilidade da alma humana. Esse olhar adulto sobre o cotidiano o aproxima de mestres modernos como Daniel Clowes e Eddie Campbell.
“Minha intenção é trabalhar um tipo de mentalidade muito raramente verbalizada em nosso convívio cotidiano, e que é muito familiar a todos nós, tenho certeza, independentemente de nossa origem social”, explica Quintanilha. Mesmo que não tenha sido a intenção do autor, é difícil não ligar esse recalque a uma parcela da classe média brasileira que, de tanto se definir por suas posses e seu status, se defronta com o vazio que existe apesar de tudo isso. E ao momento de polarização política e transformação social que a gente vive.
É uma narrativa fragmentada. A estrutura tem idas e vindas, pensamentos recorrentes e obsessivos, lembranças revividas. Remete à literatura contemporânea, ao cinema. Quintanilha é fã declarado de escritores como Clarice Lispector e Machado de Assis, de diretores como Welles e De Sica. O que ele produz aqui é uma narrativa de pensamentos velados, um fluxo de consciência em terceira pessoa, talvez porque a própria personagem tenha dificuldade de saber muito bem o que sente.
Por ter os diálogos interiores na mesma proporção que as ações factuais, o roteiro impõe vários desafios para a representação gráfica, mas o autor consegue escapar tranquilamente das armadilhas, sem cair no óbvio. A qualidade labiríntica dos pensamentos tem paralelo no leiaute claustrofóbico das páginas, divididas em quadros bem pequenos, e também nos muitos planos de detalhe, nas letras invadindo o espaço de forma irregular. Algo próximo do estilo que ele também apresentou ao adaptar O Ateneu para os quadrinhos.
Este segue a linha do anterior, Tungstênio, em preto e branco e tons de cinza. A diferença é a decisão de enfatizar os vazios, as manchas de luz e sombra, deixar as formas se estabelecerem sem contorno. Quintanilha define assim: “Tungstênio faz uso de tons de cinza para dar agilidade e crueza ao desenho, enquanto que os tons de cinza de Talco de vidro reforçam sua atmosfera subjetiva, expressionista. O desenho sugere, muito mais do que mostra”. Investe também num recurso injustamente esquecido pelos quadrinistas ocidentais de hoje, as retículas (zip-a-tone), e constrói com elas texturas incríveis. E o habitual detalhismo com o cenário: com ajuda de referências fotográficas, Quintanilha faz dos quadrinhos um retrato bem fiel das ruas brasileiras.
LAVAGEM
As estratégias narrativas e estilísticas em Lavagem, de Shiko, são praticamente inversas. Pouco se sabe sobre a personagem principal, nem ao menos o nome da mulher. A ação assume o primeiro plano, as palavras são esparsas. O contexto é desolador: uma palafita na lama da maré, que tem nos fundos um curral de porcos. Os conflitos são mais tangíveis, têm carne, sangue e ossos.
Shiko é uma figura multifacetada, cuja arte pode estar tanto em galerias como nas ruas – sua versão street art costuma ser assinada como Derby Blue. Nascido em João Pessoa, em 1976, faz cartazes de festa, capas de disco, storyboards, enfim, transita bem à vontade pelo universo pop. Lavagem é a adaptação de um curta dirigido por ele e lançado em 2011. “Acho que a maior diferença foi o tempo que tive para maturar os problemas e as questões que o roteiro apresentava. Nesse sentido, o roteiro do quadrinho tem mais capricho, é mais bem-lapidado”, explica.
A trama envolve um casal da beira do mangue, seu cotidiano enfadonho, ele cuidando dos porcos, ela cuidando da casa e indo à igreja evangélica. A súbita aparição de um pastor evangélico é o evento que desencadeia o resto. É um contexto de opressão avassaladora, pobreza, misoginia, conservadorismo. Todos os terrores são da vida real – incluindo aí uma televisão ocupada por pregações religiosas paranoicas.
Sobre isso, Shiko declara: “Em nenhum momento faço uma crítica a esse discurso, ou descontextualizo de modo a criar um discurso crítico a ele. Tampouco o favoreço. Mas o leitor que é contra esse tipo de pregação será crítico ao personagem, o leitor que compactua com esse discurso será simpático, sem precisar de minha ajuda para isso. Também não é de graça que a mulher não tenha nome. Em casa e na igreja ela não é tratada como indivíduo, ela é generalizada como ‘mulher’. Acho que esse é um bom exemplo de como uma informação que falta, às vezes, diz mais do que a informação completa”.
A HQ tem também crueza no traço. Cheia de hachuras, traços grossos, um visual “sujo”. Isso é equilibrado pela fluência de Shiko em tornar expressivos os personagens e os cenários. Proporções realistas, acentuando alguns detalhes do marido em especial.
As páginas fluem de maneira mais aberta, menos quadros por página, menos palavras. Elas comunicam muito, imediatamente, ao primeiro olhar. Há páginas regulares, compostas de tiras horizontais, como uma tela em Cinemascope, e outras em que essa lógica é quebrada completamente; páginas são compostas como uma ilustração única, sem limites entre os momentos. O impacto é construído como nos melhores filmes de terror, nós sabemos que vai acontecer algo, e que pode até em alguma medida ser previsível, mas não sabemos de onde vem o golpe. E quando tentamos racionalizar, já é tarde demais, estamos dentro da história, já trocando de pele com os personagens, no lugar deles, no ambiente claustrofóbico.
É uma história de terror, com algo de alucinação ou pesadelo. Impactante, tensa, para ler num só fôlego, não apenas pelo número de páginas e escassez de palavras, mas porque sequestra a atenção do leitor e não a devolve até o final. A HQ remete tanto aos clássicos quadrinhos de horror de revistas como Kripta e Calafrio, como às modernas revitalizações do gênero através de Thomas Ott e outros artistas.
Seja na paranoia do isolamento ou da busca do status na sociedade, e mesmo com o desconforto que possa causar a alguns, Lavagem e Talco de Vidro são duas obras desafiadoras. Quintanilha e Shiko são dois artistas que devemos acompanhar sempre.
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Perdas e danos no Chaco argentino
Priscilla Campos
Primeiro romance da escritora argentina lançado no Brasil, O vento que arrasa trata, no final das contas, da complexa relação entre nós, pessoas
No improvável encontro entre os pormenores arquitetônicos do Império Romano e as amplas variações térmicas do Chaco argentino, situa-se o romance O vento que arrasa, de Selva Almada. Lançado pela Cosac Naify neste semestre, o livro surge como um objeto cultural que demanda certo grau místico de suas pretensas análises críticas; algo não relacionado à descrição de sensações ou palpites intuitivos, mas, sim, à valorização de uma narrativa do espaço associada a qualquer ordem metafísica da escritura.
Roma, século 1. Através de um tratado atemporal, Vitrúvio designa poder e centralidade à figura do arquiteto. Apesar do seu desejo em solidificar questões práticas direcionadas ao futuro, o romano cria 10 livros – reunidos no volume que se intitula De Architectura – nos quais a força da palavra permanece acima de uma aplicabilidade técnica.
Para além das diretrizes voltadas às construções de muralhas, canais, templos, relógios solares, Vitrúvio apresenta, de forma original, a arquitetura como uma atividade que está em constante diálogo com o sagrado e outras ciências. No capítulo dedicado à astronomia, aponta-se uma relação entre o que está posto (a vivência dos ciclos naturais por meio dos astros) e o que ainda vai ser construído (a beleza e proporcionalidade arquitetônica). É neste ponto que o regime de ventos latino-americanos e a escrita de Almada alcançam uma aresta do conceito de Antiguidade.
Chaco argentino, recorte cronológico indefinido. Pai e filha, costumeiros viajantes, são surpreendidos por um problema mecânico automotivo que, por ora, frustra seus planos de continuar na rota planejada. Topam, por acaso ou sorte, com essa impensável oficina em meio à paisagem solitária. O lugar árido e sufocante é a mira certeira no que diz respeito ao desenvolvimento de O vento que arrasa. Ali, o Reverendo Pearson, sua filha Leni; o mecânico Gringo Bauer e Tapioca realizam uma espécie de dança narrativa do abandono. Movimento esse que se estende ao ato de leitura: ao final do romance, os leitores também estão rodopiando na ideia, sempre submetida ao ermo, proposta por Almada.
Ao longo da breve novela, existe o contínuo paralelo vitruviano do que é tido como definitivo – forte influência das alterações climáticas na dimensão textual, ausência materna, busca ou fuga religiosa – com o que ainda vai ser erguido: a escritora argentina parece ter perfeito controle de como manejar as diversas possibilidades de recortes narrativos pósteros que irrompem ao longo do livro. “O romance fala, talvez, como a maioria das histórias, dos relacionamentos humanos. Em O vento que arrasa, essas relações estão quebradas ou machucadas de alguma maneira. Existe abandono, sim, mas, no caso das mães de Leni e Tapioca, esse abandono é condicionado: ambas as mulheres se veem obrigadas a deixar seus filhos por várias razões”, explica Selva Almada, em entrevista à Continente.
A argentina afirma manter uma postura “contra a ideia mentirosa da ‘família unida’, do ‘núcleo de amor’”. Pois, segundo Almada, é no seio familiar que acontece a maioria dos abusos, em especial, os primeiros abusos físicos e psicológicos. “O escritor Fabián Casas tem um verso que ilustra bem o que eu penso: ‘Todo lo que se pudre, forma una familia’”. Um dos fragmentos mais simbólicos de tal disfunção doméstica é quando somos transportados para uma lembrança da garota: “A última imagem que Leni guarda da mãe é através do para-brisa traseiro do carro. Leni está dentro, ajoelhada no banco, com os bracinhos e o queixo apoiados no encosto. (…) A mãe faz menção de ir até o carro, mas o Reverendo se interpõe e ela se congela em meio ao movimento. Estão brincando de estátua, pensa Leni, que sempre brinca disso, sempre em pátios diferentes e sempre com crianças diferentes, depois do sermão dominical”.
DEUS E NATUREZA
De acordo com a escritora, a ideia de família quebrada é um tema frequente em seus romances e neste não foi diferente. Porém, O vento… traz essa noção de despedaço ampliada para o vínculo religioso, e, também, para a interação dos protagonistas com os elementos naturais. “Em alguns momentos, Deus e a natureza parecem negligenciar, de certa forma, esses personagens”, reflete. No arcabouço do enredo, o diálogo com o sagrado é interposto por uma prosa concisa e pragmática. O salto de linguagem causa um estranhamento que parece fazer parte da perspectiva de preservar o leitor naquele local pouco frequentado; um espaço estranho no qual curiosidade e vazio estão incessantemente juntos.
Ao mesmo tempo em que promovem algum tipo de repulsa, os sermões escritos por Almada possuem elementos ligados à hipnose; são catárticos numa medida doutrinária e perversa, o que causa certa perturbação: “Se a pessoa mais saudável que há entre vocês saísse nua no meio de uma noite chuvosa de inverno, há noventa e nove por cento de probabilidade que acabe pegando uma pneumonia. Do mesmo modo, se deixam o corpo entregue ao pecado, há noventa e nove por cento de chances que o Demônio se apodere dele. Cristo é amor. Mas não confundam amor com covardia, não confundam amor com escravidão. A chama de Cristo ilumina, mas também pode provocar incêndios”.
A argentina assegura que a tarefa fundamental de um escritor é debruçar-se sobre a linguagem. “Eu gosto de dizer que as vezes trabalhamos contra a linguagem também, no sentido de desmontar um mecanismo e trocar as peças de lugar. Em O vento… trabalhei com uma estrutura simples, pequena, econômica. Quando começo a escrever uma história, levo um bom tempo até encontrar o tom. Às vezes, esse tom está relacionado ao argumento. Neste caso, pensei que o romance deveria ser escrito como um sussurro; um murmúrio, algo parecido com o jeito dos crentes falarem com Deus”, detalha.
Apesar das possíveis conexões com a obra de Vitrúvio, a formulação do tempo em O vento que arrasa subverte toda a ideia estética da Idade Antiga, na qual a monumentalidade, formada por seus ideais simétricos e definições matemáticas, é o que era considerado belo, oportuno. O livro de Almada evoca o fascínio por uma representação das ruínas, de algo que ficou preso entre o passado e o presente. Com isso, a temporalidade é turva, inspira tanto a ideia de memória – como nos momentos de recordações empreendidos pelos personagens –, quanto a de fugacidade; uma lembrança do memento mori: o Chaco argentino como espelho, no qual você reconhece não só o fim daqueles sujeitos, mas o seu, também.
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Poesia: A linguagem como criação e jogo
Gianni Paula de Melo
No seu terceiro trabalho, O livro das semelhanças, Ana Martins Marques afirma seu interesse em refletir sobre o ofício da escrita e seus lugares de acontecimento
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