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De volta para o futuro que criamos

Como a arte vem, através da ficção científica, ao longo dos anos, contribuindo para modificar ou prever notavelmente o que está por vir

TEXTO Yellow

01 de Outubro de 2015

Marty McFly (Michael J. Fox), descobre que viajou no tempo em 'De volta para o futuro'. Foto: Divulgação

Marty McFly (Michael J. Fox), descobre que viajou no tempo em 'De volta para o futuro'. Foto: Divulgação

Foto Divulgação

Agora: 21 de outubro de 2015. Após negociar sua descida em meio a um engarrafamento de carros voadores, Marty McFly desembarca de sua máquina do tempo na praça central de Hill Valley, onde se depara com skates flutuantes, tênis com cadarços automáticos, postos de gasolina comandados por robôs e o ataque de um gigante tubarão voador azul, que na verdade era um trailer de cinema em realidade aumentada. Quando foi lançado, em 1989, o filme De volta para o futuro II, do diretor Robert Zemeckis, divertiu pessoas de todo o mundo, e gravou em seus inconscientes promessas de um futuro próximo.

Algumas das previsões feitas durante a cena, mais discretas, acertaram em cheio. Os automóveis, por exemplo, apresentam traços muito parecidos com os que vemos hoje – formas exageradamente aerodinâmicas e curvas. Os sistemas comandados por voz são um recurso de vários aparelhos e se tornam cada vez mais comuns. Algumas pessoas andam nas ruas com roupas constrangedoramente coladas e coloridas, o que também confere com o que acontece hoje. Outro acerto foi a nostalgia pela década de 1980, mostrada quando McFly entra em um bar ao som de Beat it, de Michael Jackson, música que tinha sido lançada há apenas cinco anos, mas tem presença ubíqua nas ondas do rádio e nos mashups do YouTube até hoje.

No entanto, nem esse filme nem outra forma de ficção, seja ela o cinema, a música ou a literatura, conseguiu prever coisas como a internet, que mudou drasticamente a maneira como nos comunicamos, trabalhamos, criamos e pensamos. “Porque escritores são visionários, e não videntes”, opina Diego Carreiro, doutor em Teoria da Literatura. “Por mais cientificamente ficcional que seja uma obra, a preocupação central continua a ser uma só: o homem. A ficção não tem obrigação com a realidade. Se a vida imita a arte, esse é um problema que a vida tem de resolver, não o inverso.”

Carreiro entende que nosso fascínio com o futuro mascara outra preocupação: “Há em nós um desejo inconsciente, incontrolável, de ‘dominar’ o futuro, e com ele, a morte. O homem nunca aceitou a morte. No universo ficcional posso criar um clone de mim mesmo, não posso? Se eu posso, então serei, de alguma forma, imortal. Se eu cheguei à imortalidade, dominei aquilo que não posso dominar e que não aceito: a morte e o desconhecido”.

A ficção científica não apenas entretém ou tenta fazer profecias. O gênero inspira muitas pessoas a dedicar suas vidas e carreiras à realização das astúcias descritas pelos autores. O inventor americano Simon Lake ficou fascinado pela leitura de 20.000 léguas submarinas, de Júlio Verne, e criou, assim, o primeiro submarino a enfrentar águas oceânicas, em 1898. E o foguete, projetado por Robert H. Goddard e lançado pela primeira vez em 16 de março de 1926, foi inspirado pela leitura de Guerra dos mundos, de H. G. Wells.

VIAGEM À LUA
A viagem do homem à Lua é uma das mais notáveis previsões ou inspirações que a ficção científica já foi capaz de perpetrar à humanidade. O livro de Júlio Verne, Da Terra à Lua, de 1865, era amparado no estado da ciência da época. Acreditava-se, por exemplo, que a gravidade da Terra exerceria força até certo ponto, a partir do qual a força gravitacional da Lua seria mais forte, e os passageiros do projétil disparado na direção do corpo celeste seriam jogados para o teto do habitáculo. Quando questionado sobre a possibilidade de respirar na superfície da Lua, o capitão da expedição diz: “Certamente deve haver ar suficiente para nós”.


Filme Eu, robô é baseado em romance de Asimov, que supôs desfecho inesperado para o uso da inteligência artificial. Foto: Divulgação

Verne erra em vários fatos científicos, mas inspirou não apenas a criação de outras obras de arte, como o livro Os primeiros homens na Lua (1901), de H. G. Wells, e o filme Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès, como também um século inteiro de inovações científicas, possibilitando a verdadeira visita de astronautas à Lua, em 1969.

“Um fã de Isaac Asimov acabar como coordenador de uma equipe de competição robótica não deve ser coincidência”, diz João Paulo Cerquinho Cajueiro, professor de Mecatrônica da UFPE e coordenador da equipe Maracatronics de robôs de competição. Ele salienta a importância do exercício da imaginação pela ficção para a inovação: “Acho que ajuda no chamado ‘pensar fora da caixa’. No caso da chamada ficção científica dura (hard sci-fi, que segue as leis da física, em contraste com a soft sci-fi, que cria leis diferentes), as análises técnicas feitas dentro da própria ficção já são interessantes para definir o que pode ou não ser feito”.

O exercício da ficção científica força a imaginação do autor a vislumbrar as consequências de mudanças na nossa realidade. Uma prática comum aos autores é mudar apenas um detalhe da realidade, e deixar desenrolarem os acontecimentos em torno dessa mudança.

Foi puxando o fio da meada que, por exemplo, Isaac Asimov previu que o nascimento da inteligência artificial ditada por suas leis da robótica eventualmente levará a humanidade a retornar a sociedades rurais e agrárias, ao final de Eu, Robô.

A invenção de uma sociedade baseada na revolução industrial levou Aldous Huxley, no livro Admirável mundo novo, de 1932, a concluir que as pessoas do futuro controlariam seus humores quimicamente, através de uma droga chamada Soma. Dados de 2013 mostram que antidepressivos são a classe de medicamentos mais prescritos a pacientes dos Estados Unidos, fazendo parte do cotidiano de 16 milhões de pessoas apenas neste país.

Muitos autores acabam tornando-se porta-vozes das inovações sobre as quais escreveram. Isaac Asimov respondeu, até o fim de sua vida, em 1992, a questões éticas sobre o relacionamento entre homens e robôs, devido às maquinações que matutou em Eu, Robô. Arthur C. Clarke deu pitaco, até seu último suspiro na brisa da Sri Lanka, sobre viagens interplanetárias, graças a 2001, uma odisseia no espaço e à série Rama.

Autores contemporâneos também tornam-se referências para a discussão de novos temas. Neal Stephenson escreveu, em 1992, Snow crash, um romance que descreve as consequências de bugs em um mundo de realidade virtual, e seu nome ganhou evidência em 2003, quando do lançamento de Second life, um mundo virtual em 3D, similar ao que ele havia idealizado. Daniel Suarez, autor Daemon (2006), Freedom (2010) e Kill decision (2012), pode ser encontrado em dezenas de episódios de podcast e vídeos de palestras, enumerando os perigos da inteligência artificial e os problemas éticos com os quais a humanidade precisará lidar em um futuro próximo.

Alguns autores fazem sugestões tênues, amparadas mais na fantasia que na ciência, enquanto outros oferecem declarações corajosas e fundamentadas. Os robôs, imaginados pelo tcheco Karel Capek em 1921, para a peça Robôs universais de Rossum, não passavam de um conceito: máquinas construídas para realizar trabalhos pesados, inspirados na lenda do Golem.


Escritor Neal Stephenson idealizou mundo virtual em 3D, no livro Snow crash, de 1992.
Foto: Divulgação

William Gibson cunhou o termo ciberespaço em seu romance Neuromancer, de 1984, e é procurado muitas vezes para opinar sobre a internet, uma rede de informação bem diferente da que criou. A rede de Gibson lembra mais o mundo do filme Matrix, no qual as pessoas se conectam fisicamente à rede de computadores, numa imersão completa, e ser pego hackeando bancos de dados do governo e de empresas pode resultar em dor ou mesmo morte.

Certamente, esse não era o objetivo do consórcio da W3C (World Wide Web) liderado por Sir Tim-Berners Lee, que lançou o protocolo HTML em 1991, com o propósito de servir ao acesso de trabalhos acadêmicos. Neste caso, podemos dizer que aos pais da tecnologia também faltou imaginação para prever o alcance de sua criação.

Dedicados autores de ficção, porém, foram capazes de contribuições verdadeiras à ciência. Em um artigo publicado na revista Wireless World, em outubro de 1945, Arthur C. Clarke descreveu a possibilidade de usar satélites em órbitas geoestacionárias (quando o objeto em órbita parece parado em relação à rotação do planeta) para enviar sinais de rádio, telefone ou televisão de qualquer lugar do mundo para outro. Hoje, mais de 300 satélites de comunicação usam a órbita geoestacionária, que é também conhecida como Órbita Clarke.

Em 1895, dois anos após a descoberta do elétron, o autor irlandês Robert Cromie imaginou, no livro The crack of doom, uma bomba capaz de libertar a energia que mantém unidos os átomos de uma molécula e que “levantaria 100 mil toneladas a quase duas milhas de altura”. A ideia de uma arma superpotente não é nada original, mas o método descrito por Cromie era curiosamente parecido com as bombas que seriam criadas 50 anos depois pelos cientistas do Projeto Manhattan, em Los Alamos.

Em 2005, em seu livro Shaping things, outro autor de ficção científica, Bruce Sterling, cunhou o termo design fiction, lembra H.D. Mabuse, consultor de design do Cesar e responsável pela criação e fomento de várias iniciativas de inovação dentro da instituição pernambucana, localizada no Porto Digital.

Design fiction é uma atividade que não é exatamente ficção nem design, mas, sim, o uso de elementos narrativos para imaginar futuros possíveis úteis para criação de inovação disruptiva.” Essa forma de imaginar a ficção como maneira de explorar realidades possíveis e iluminar possibilidades de futuro está longe de ser uma abordagem recente. O próprio Mabuse traz à tona uma citação de William Gibson: “Qualquer um que pensar que a ficção científica fala sobre o futuro está sendo ingênuo. A ficção científica não prediz o futuro. Ela o determina. Coloniza-o. Pré-programa a partir da imagem do presente”.

A humanidade ainda anseia pelo divertido, colorido, amigável futuro mostrado em Os Jetsons. A série de animação da “família do futuro”, criada pela Hanna-Barbera, que foi ao ar no início da década de 1960 em contraponto a Os Flintstones, povoou a imaginação de gerações de crianças, com seus edifícios suspensos e máquinas que serviam refeições ao toque de um botão. Seria coincidência termos trabalhado tanto nas últimas décadas para desenvolver TVs de tela plana, ligações telefônicas com vídeo, bronzeamento artificial, robôs que varrem a casa e esteiras ergométricas para cachorros, todos esses produtos mostrados no desenho animado?

Prova de que a ficção alimenta a realidade é que hoje existem esforços verdadeiros para o desenvolvimento de algumas das invenções propostas em De volta para o futuro II. Empresas e centros de pesquisa já tentaram reproduzir os skates flutuantes, aparentemente sem nenhuma consideração à óbvia periculosidade do objeto. A proposta mais promissora veio da Universidade Paris Diderot, o MagBoard, que usa supercondutores, mas mostrou-se inconveniente, pela necessidade de controle da temperatura baixíssima da placa supercondutora. Outra demanda do público são os tênis com cadarços automáticos da Nike, que foram prometidos por Tinker Hatfield, designer da empresa, para este ano. Pelo visto, já perderam o prazo estabelecido pelo filme. 

YELLOW, designer gráfico, músico, professor e mestre em Ciências da Linguagem.

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