Além de os bifes serem enormes para os padrões brasileiros, o segredo aqui é o seguinte: a carne a ser empanada é cortada bem fininha, para ser cozida rapidamente. Depois de temperada com sal, pimenta, alho e salsinha, é passada por ovo (com soda, em algumas casas) e por uma fina capa de farinha de rosca, e prensada com as mãos sobre o balcão para que a farinha fique bem-aderida. Encontrado já empanado nos frigoríficos em suas versões bovina e de frango, o bife pode ser frito ou – mais prático ainda – assado no forno. Há ainda a versão napolitana, com molho de tomate e queijo.
CHURRASQUEIRA DOMÉSTICA
O nascimento da cultura gaúcha nessa região da América do Sul durante o período colonial, compartilhada com o Brasil e o Uruguai, arraigou a importância da carne nas refeições, e desenvolveu o costume de reuniões ao redor do fogo. Pode-se dizer, sem exagero, que o produto – sobretudo bovino – é motivo de orgulho nacional. “A carne é mais do que o prato nacional, é a aspiração nacional”, diz Narda Lepes. “O portenho acredita que se não comer em grande quantidade na verdade não comeu. E que, por ser argentino, tem direito a comer mais do que em qualquer outro lugar. Os restaurantes oferecem pratos com 800 gramas de carne!”, acrescenta.
O churrasco portenho, algo bastante diferente da experiência de se comer um bife em um restaurante, é autenticamente comido em casa, no quintal ou na laje, e feito sobre grelha, e não em espetos. Mesmo entre as pessoas com menos recursos, uma churrasqueira não falta ou, pelo menos, uma grade é improvisada sobre tijolos na calçada. Nas sextas-feiras e finais de semana com sol, o cheiro de churrasco inunda alguns bairros portenhos na hora do almoço.
Com poucos acompanhamentos – geralmente salada – e apenas sal como tempero, a carne é a grande protagonista. Um amante do churrasco que se preze faz ele próprio o ritual, não importando a classe social. Acende o fogo, harmoniza a brasa, salga as carnes e planeja qual vai à grade por ordem de cozimento, enquanto toma aperitivos, belisca queijos e embutidos, e observa orgulhosamente a chama queimar.
Da churrasqueira, primeiro saem os chorizos (típica salsicha argentina), que podem ser comidos em forma de sanduíche no pão (apelidado de choripan), e a mocilla (salsichão de sangue prensado, especialidade local) e entranhas. Quando prontas, as carnes são colocadas em uma travessa ou tábua na mesa, um verdadeiro banquete, e todos comem juntos. O chimichurri (molho picante, que também pode ser usado para temperar antes do cozimento) e o vinagrete acompanham. Como em um espetáculo, a cerimônia geralmente termina com uma salva de palmas após algum comensal gritar: Un aplauso para el asador!
As churrascarias estão por todo lugar em Buenos Aires e oferecem a parrillada, um banquete com variedade de carnes, entranhas e salsichas, acompanhado de fritas ou salada. É o que mais se assemelharia ao que um portenho faz portas adentro. Mario Cueva, que há nove anos trabalha em churrascaria, diz que o segredo de uma carne suculenta e saborosa é cozinhá-la a fogo lento, sem pressa. “Gosto de temperar com pouco sal e pincelar com chimichurri, antes de colocar na grade. Depois, é ir controlando e servindo de acordo com cada corte e o pedido do cliente”, conta.
Pizza é uma das opções rápidas e baratas em Buenos Aires. Foto: Mariana Camaroti
“Ser convidado para um churrasco na casa de uma família local é a melhor coisa que pode acontecer para alguém que visita Buenos Aires”, brinca Narda Lepes. Segundo ela, o passado de grande produtor e exportador de carne e grãos – o país era chamado frigorífico e seleiro do mundo – não apenas marcou a gastronomia portenha, como também a caracterizou pela abundância. O argentino não convida uma visita para tomar um drinque ou um simples cafezinho, convida para almoçar, jantar. Quando o encontro se dá no final da tarde, faz um piquenique na praça ou se senta em uma mesa farta em facturas (brioches locais recheados de doce de leite, creme ou marmelo) e medialunas (croissants), enquanto compartilha o mate (chimarrão). Uma cerimônia deliciosa!
MUITA MASSA
Os imigrantes italianos marcaram os portenhos não apenas com seu sotaque, o tom alto da voz e os gestos, mas também com a culinária. Raviólis, nhoques, canelones, espaguetes, talharins, polenta com queijo e outras iguarias italianas regadas aos mais autênticos molhos se fixaram na culinária local. Além das cantinas típicas e das residências, elas são encontradas nas casas de massas espalhadas pela metrópole, em que o público compra os manjares pré-cozidos, geralmente para as refeições de final de semana. Em dias frios, a clientela forma fila na calçada para levar massas frescas, secas ou recheadas, bem como os molhos que as acompanham.
Filho de italiana e um dos donos da tradicional cantina Broccollino, no microcentro de Buenos Aires, Alejandro Ballabene diz que a culinária italiana, sobretudo as pastas, está totalmente instaurada e convive muito bem com outras preferências portenhas.“Minha mãe fundou este restaurante em 1985 e esteve à frente dele por 10 anos. Ensinou os cozinheiros a prepararem os molhos, como o à bolonhesa, pomodoro(tomate), pesto creme, e nós mantivemos sua receita original”, conta, revelando que o segredo de uma boa massa são o ponto de cozimento e o molho original italiano.
Na Broccollino, as massas e pães servidos são de fabricação própria, feita no subsolo da casa, e geralmente vão à mesa com a bebida de especialidade nacional: o vinho Malbec. Um grande forno de lenha ocupa o centro do salão, de onde saem pãezinhos, chipás (parecidos com o pão de queijo brasileiro) e outros quitutes que vão quentinhos às mesas. Aberta das 12h à meia-noite, a cantina é procurada por estrangeiros por estar próxima a hotéis e pontos turísticos. Uma das opções mais pedidas pelos turistas é a “seleção de massas”, com quatro tipos diferentes (recheadas, frescas e secas) e molhos (à bolonhesa,carbonara, pesto crema e pomodoro).
A pizza é um item à parte entre as heranças italianas em terras portenhas e ocupa, junto com a milanesa, a posição de queridinha dos hermanos. Amassada em casa nas famílias mais tradicionais, versão delivery, servida em pizzarias ou vendida pré-preparada em padarias, a pizza é imprescindível em reuniões de amigos e festas de aniversário. Com a inflação alta dos últimos anos (ao redor de 30% ao ano) e a correria da vida de uma grande metrópole, ela ganhou ainda mais espaço, por ser uma opção rápida e barata.
Aberta desde 1939 e considerada lugar de interesse gastronômico e cultural da cidade, La Mezzeta acumula pilhas de dezenas de assadeiras, quilos de tomate, cebola e queijo em sua cozinha, enquanto os maestros amassam e recheiam o que logo mais será assado, cortado e servido aos fiéis clientes.
Empanadas de carne, queijo e presunto e queijo e cebola são alguns dos sabores dessa tradição portenha. Foto: Mariana Camaroti
“Quem entra aqui quer algo rápido e, muitas vezes, termina passando mais tempo para tirar a ficha do caixa do que comendo”, diz sorrindo o gerente Luis Dovale, genro do fundador da casa, enquanto sacas de farinha de trigo são descarregadas e os primeiros clientes começam a chegar.
Tradicional no Bairro de Villa Ortúzar, La Mezzeta é uma pizzaria popular, na qual se come em pé, e vende uma média de 1,5 mil porções de pizzas diariamente. A preferência da clientela é uma porção defugazzeta (pizza recheada com queijo mozarela e cebola) com refrigerante ou copo de vinho, embora a venda de álcool tenha caído com a fiscalização de trânsito.
EMPANADAS
Das regiões Norte e Cuyo da Argentina, veio a saborosa empanada, salgado em forma de pastel (a massa é mais grossa) com recheios variados, frita ou ao forno. As mais típicas são de carne (suave ou picante), mas também são vendidas em todo lugar as versões com queijo e presunto, queijo roquefort, tomate, queijo e manjericão, queijo e cebola, milho, frango, atum e verdura.
Algumas diferenças marcam as empanadas de carne, segundo a província de origem, gerando uma certa disputa quanto à que é mais gostosa. De Tucumã, Salta, Jujuy ou San Juan, elas podem ter ovo cozido, azeitona ou outros detalhes que fazem de todas uma iguaria local. “A origem das empanadas remonta à época do virreinato (vice-reinado da Coroa de Aragão, século 15) e não sabemos se nasceu na Argentina, no Peru ou em outra parte, porque, naquela época, a colônia espanhola não tinha fronteiras”, diz Andres Patrolongo, um dos sócios do restaurante regional El San Juanino.
Há mais de 60 anos aberta ao público, a rede serve não apenas empanadas, mas também guiso de lentejas (ensopado de lentilhas com carne bovina, linguiças e carne de porco), locro (ensopado de feijão, milho, carne bovina e suína e verduras) e mondongo (feito com vísceras, parecido com a buchada). “São pratos mais consumidos no inverno, porque são calóricos, e acompanhados por vinho”, explica. Além disso, como são tradicionais e remontam à época da independência argentina, dois séculos atrás, são pratos muito procurados durante as festas pátrias (maio e julho).
Apetitosos também são a humita (milho ralado, queijo gratinado e ervas) e o tamal (farinha de milho com carne picada bovina e suína, com tempero picante), ambos envolvidos em palha de milho. Entre as sobremesas regionais, não podem faltar a pastelito (massa folheada frita e recheada de doce de batata-doce ou de marmelo), o alfajor santafecino (torta folheada e recheada de doce de leite), a empanadita de nozes e o martín fierro (doce de batata-doce com queijo).
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