De fato, Mário Pedrosa dedicou boa parte da vida à arte, tanto como colunista e resenhista de jornais, revistas, catálogos, livros, quanto como importante agente do campo artístico. Além de ter escrito com frequência para o Jornal do Brasil, o Correio da Manhã e Tribuna da Imprensa, por exemplo, o crítico exerceu funções determinantes em instituições culturais influentes. Na Fundação Bienal de São Paulo, cuja grande mostra ajudou a fundamentar, atuou como membro das comissões organizadoras da exposição entre as décadas de 1950 e 1960, e como seu diretor-geral em 1961.
Mário Pedrosa com sua filha na década de 1950. Foto: Coleção Família Pedrosa
Logo em seguida, dirigiu o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM–SP) durante dois anos. Todavia, além da arte, outra questão ajudou a catalisar sua energia em todas essas direções: a política, nos seus sentidos macro e micro. Por isso, a Cosac Naify também lançará uma coleção de escritos relacionados ao tema.
“Mário Pedrosa foi um militante decisivo para as causas do socialismo democrático. Foi um antistalinista precoce, rompeu com o PCB e era, como único latino-americano, um dos organizadores da IV Internacional, com Leon Trótski à frente. Fez parte da Esquerda Democrática, que reunia opositores da ditadura do Estado Novo. Em 1980, foi o filiado número 1 do nascente Partido dos Trabalhadores”, lembra Milton Ohata, editor desses novos títulos.
Por conta de seu engajamento, Mário Pedrosa passou por dois exílios: um de 1939 a 1945 e outro de 1970 a 1977. Pouco tempo antes, em 1938, havia viajado clandestinamente a Paris, na França, justamente para a IV Internacional, encontro voltado a reforçar o poder do proletariado. No ano seguinte, regressou também clandestinamente ao Brasil e, ao dar entrada no território, foi preso e liberado sob condição de exilar-se.
De acordo com Ohata, estão programados, para 2016–2017, mais dois volumes sobre arte, duas compilações de escritos políticos e uma edição sobre “cultura em geral”. “Estamos também em conversa com os herdeiros sobre a edição da correspondência”, adianta o editor, referindo-se à negociação com a família de Pedrosa para publicar a série de cartas trocadas entre Mário e grandes artistas modernos, críticos e militantes políticos, por exemplo.
Artistas como Lygia Pape (foto), Lygia Clark e Helio Oiticica tiveram sua criatividade estimulada por Pedrosa. Foto: Reprodução
Afora Lorenzo Mammì, à frente dos textos sobre artes plásticas, e Guilherme Wisnik, sobre arquitetura, mais três especialistas estão envolvidos na organização dos novos livros da editora paulista: o professor e historiador Francisco Alambert, para a edição de cultura geral; e Isabel Loureiro e Dainis Karepovs, para os títulos relacionados às reflexões e militâncias políticas. Os dois últimos conheceram Mário no fim da vida (ele morreu em 1981) e tiveram a oportunidade de pesquisar no arquivo da sua casa. Todos os organizadores escolhidos pela editora são “uspianos”, ou seja, crias da Universidade de São Paulo, que segue, não obstante sua suma importância, ditando olhares e interpretações sobre o nosso conhecimento em arte, cultura e política no Brasil, pelo menos desde a Semana de Arte Moderna em 1922. A força de um eixo que se mantém, apesar da importante conexão de Mário com o Nordeste, por exemplo.
Segundo a editora, a antologia dos textos políticos é a grande novidade editorial da coleção, porque vem associada, pela primeira vez, ao viés da estética, além das novas abordagens dos organizadores, das notas de rodapé (fruto de pequisa de referências não feitas antes por Mário) e do caderno de imagens encartado na edição das artes plásticas.
“O mais importante é que, na cabeça dele, arte e política andavam juntas, como era para Picasso, Miró e os surrealistas. A arte, como a política, era fundamental para criar um mundo menos alienado, mais livre. Simplesmente, decidimos juntar as metades que tinham tomado caminhos editoriais divergentes ao longo do tempo. Pela primeira vez, um projeto editorial está contemplando essas duas dimensões do Mário Pedrosa”, defende Milton Ohata.
Lygia Clark. Foto: Reprodução
Os livros mais conhecidos do autor, ligados à sua atuação política, foram publicados pela editora Civilização Brasileira e, depois, não mais reeditados. Os da Cosac Naify compreendem textos inéditos e abarcam justamente desde a sua dissidência do stalinismo, nos anos 1930, até sua contribuição à fundação do PT, em 1980. Quanto aos escritos sobre arte, Otília Arantes e Aracy Amaral haviam organizado importantes compilações, que foram amplamente consultadas no ambiente acadêmico e serviram de base para as novas edições.
Na visão de Vera Pedrosa, sem os trabalhos de Otília e Aracy, a obra do seu pai “teria ficado dispersa e talvez esquecida”. “Tanto os textos recolhidos em livro e estudados por Aracy Amaral como os volumes da Edusp organizados e analisados por Otília Arantes são de importância capital para o conhecimento da obra dele. A dra. Otília teve o mérito de destrinchar e organizar, de maneira meticulosa, uma grande quantidade de documentos que lhe foram por ele entregues. Seu trabalho é a fonte de informação mais consultada pelos que estudam e realizam trabalhos acadêmicos a respeito”, afirma a diplomata, poeta e crítica de arte Vera Pedrosa (leia entrevista com ela a seguir). A professora Otília Arantes, aliás, foi responsável ainda pela organização do livro Mário Pedrosa: itinerário crítico (188 páginas), uma antologia de sua apreciação estética ao longo da vida, publicada também pela Cosac Naify, em 2005. Além disso, ela foi consultada pelo próprio editor Milton Ohata para este novo projeto.
Poderíamos, então, perguntar: qual a diferença entre os trabalhos feitos pela especialista para a Edusp e para a atual edição, e, agora, os organizados por Lorenzo Mammì e Guilherme Wisnik, também ligados ao olhar estético do crítico? Ohata responde que “cada coletânea teve a sua importância na época de sua produção”. Segundo ele, as da Aracy Amaral, por exemplo, foram acompanhadas pelo próprio autor (“Há, de certo modo, uma chancela dele”). A de Otília Arantes, por sua vez, é mais extensa e foi baseada em pesquisas de arquivo, incluindo o do próprio Mário Pedrosa. “As duas coletâneas não têm exatamente os mesmos textos”, afirma.
Helio Oiticica. Foto: Reprodução
Para Vera Pedrosa, à diferença de Aracy e Otília, os encarregados pelas novas edições da Cosac não o conheceram pessoalmente, o que não implica numa diminuição de qualidade, pois um trabalho, neste caso, alimentou o outro. Ela acredita que o mais importante é que a atual iniciativa da editora paulista torna acessível, mais uma vez ao público, uma obra que estava fora de circulação. “É um fato cultural significativo”, ressalta ela.
CRÍTICA DE SÍNTESE
Afora os livros desta nova coleção, encontra-se em vias de conclusão a primeira edição em língua inglesa de textos do autor, organizada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, local onde Mário foi frequentador assíduo, tendo travado relações com gestores da instituição. A publicação é fruto de uma iniciativa do curador Paulo Herkenhoff junto ao MoMA e está sendo organizada com a colaboração de Glória Ferreira e outros estudiosos brasileiros do mesmo calibre. Segundo Vera, o livro fará parte da série Primary Documents do museu, contendo volumes com panoramas da arte atual do Japão, da China, da Venezuela e da Argentina. “A particularidade do volume sobre o Brasil é a de centrar-se na figura de Mário Pedrosa.”
Em se tratando dele, é preciso desconstruir noções do senso comum do que seja um crítico de arte, um intelectual. Por exemplo, há quem diga e reforce a ideia de que um crítico é, grosso modo, um árbitro apto a separar o “bom” do “ruim”. A professora e pesquisadora Maria José Justino afirma que, no sentido moderno, “a crítica surge como uma atividade humana voltada aos julgamentos, em particular, os julgamentos de apreciação (juízo de valor) da obra de arte”. E acrescenta que “essa ocupação faz do crítico, em relação à obra, uma autoridade, amada ou odiada”. Em parte, tem ela razão e pode até ser que Mário Pedrosa tenha se encaixado, ao longo da sua vida, nessa definição. No entanto, está longe de ser uma descrição suficiente, para não dizer reducionista, de sua contribuição ao mundo. Mário Pedrosa foi muito além disso. Na direção contrária, até. Do mesmo modo, esteve igualmente longe de ser um apreciador no “sentido kantiano”: de visão puramente formal e distanciada, que vê na arte uma essência e uma grandeza – o belo e o sublime.
A Cosac Naify dedicou um volume aos escritos sobre
arquitetura e outro aos de arte. Foto: Divulgação
Como escreve Guilherme Wisnik, em sua apresentação para os textos sobre arquitetura, Mário Pedrosa atuou nesse meio “não como um historiador ou um cronista da cultura, e, sim, como um verdadeiro crítico”. Poderíamos afirmar que ele inaugurou, no Brasil, a crítica de arte contemporânea, coerente com os caminhos e os pensamentos da produção artística brasileira a partir dos anos 1940, bem como a europeia e a norte-americana, com as quais o crítico também manteve íntima aproximação. Todavia, mais do que ter sido “um crítico certo no momento certo”, para trazer as palavras de Milton Ohata, Pedrosa foi ainda um intelectual, digamos, sem antolhos, isto é, de vista alargada, profunda e perspicaz. Assíduo leitor de Karl Marx e outros, para ele importavam muito mais as questões sociológicas, filosóficas e psicológicas da arte do que as estéticas. Nesse sentido, podemos dizer que ele foi um dos primeiros, pelo menos nas artes plásticas, a praticar no Brasil uma crítica de síntese entre a linguagem jornalística, diferente da praticada atualmente, e a acadêmica, tendo sido, portanto, um ensaísta por excelência, de escrita extremamente sedutora e sensível.
Podemos ver o amadurecimento de seu trabalho quando nos deparamos com a leitura de seus textos compilados agora pela Cosac Naify, ou quando lemos as apresentações dos seus respectivos organizadores. As contradições, claro, fazem parte desse processo: no início, foi um crítico das vanguardas e, depois, um grande defensor das experimentações contemporâneas.
No seu texto Arte, necessidade vital, publicado em 1947, por exemplo, Pedrosa defende um conceito mais amplo de arte, numa época em que a criação era ainda (para não dizer ainda hoje) associada à ideia de uma virtude a serviço da reprodução fiel da realidade. Mas, para ele, a arte não quer “imitar a vida”, ela é a própria vida, ou em suas palavras (à luz da artista e educadora Marie Petrie), “a arte se realizaria pelos mesmos princípios que regem a criação incessante do universo e o seu mecanismo funcional. Ela não repete ou copia a natureza; mas obedece às mesmas leis que esta; transpõe-nas para o plano da criação consciente, isto é, humana”. Obviamente, Mário dava plenos poderes à arte, mesmo na sua tentativa de pôr em prática uma visão antiessencialista, contracultural. Contudo, há de se convir: a definição na qual relaciona vida e arte (talvez a grande questão teórica da arte) soa muito mais eficiente do que mil teses sobre a produção contemporânea e, vale ressaltar, em plenos anos de 1940 no Brasil.
Lorenzo Mammì alega que Mário Pedrosa “não foi um pensador acadêmico, mas um crítico militante”. Uma dimensão não parece anular a outra, pois nem o pensamento científico está isento de sua militância. Entendemos a força de sua frase, no entanto, talvez seja mais interessante pensar, como escreve Wisnik, que, inspirando-se em Baudelaire, “Mário Pedrosa entende a atitude crítica de maneira política. Pois a crítica estética envolve juízo, comparação, hierarquia e uma relação dialética entre distanciamento e empatia com a obra. Para ser justa, a crítica tem de ser parcial, apaixonada, e não fria e algébrica”. E poderíamos acrescentar, à maneira de Pedrosa, que, para nascer arte, o adubo deverá ser a liberdade, posta em condições para tal.
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