Arquivo

Gênese de uma capa

TEXTO José Cláudio

01 de Setembro de 2015

Ilustração em acrílico sobre papel, de José Cláudio, feita para o livro de Arthur Caravlho

Ilustração em acrílico sobre papel, de José Cláudio, feita para o livro de Arthur Caravlho

Foto Reprodução

Começou com um bilhete de Arthur Carvalho. “Amigo Zé Cláudio: O livro chama-se A menina e o gavião/200 crônicas escolhidas, a ser publicado pela Cepe. Segue a foto de Teresa Cristina, a minha filha, que inspirou a crônica, tinha 8 anos quando comprei o gavião para ela e depois tivemos que soltá-lo. Zé Mário fez as orelhas e Ângelo Monteiro o prefácio, Zé Mário perguntou quem iria fazer a capa e eu disse que deveria ser o pessoal da CEPE, ele sugeriu que a capa fosse sua (...) tem pássaro no meio, um gavião. Gostaria muito que você aceitasse o trabalho. Amizades, amizades, negócios à parte. Diga quanto será e a forma do pagamento. Saravá, Arthur Carvalho.”

Sabe o que é, Arthur, amarelei eu, são coisas que não se coadunam. Não encontrei como juntar, como fazer com que se coadunassem, pelo menos no meu espírito dividido entre a criança no quintal encantada com o gavião, encantamento repassado à parte de criança que em nos subsiste, apesar dos cabelos cor de prata, e a moça Teresa Cristina, muito linda, de arrasar, reavivando todos os meus complexos de inferioridade, de classe, de raça, de cultura, de pobreza, ou sei lá mais quais, imperceptíveis ou inconfessáveis, que eu julgava há muito vencidos, ainda mais de feiura e velhice que entre os nhambiquaras eram designadas pela mesma palavra segundo Levy-Strauss segundo Simone de Beauvoir (A velhice), me fazendo lembrar, apesar da diferença de gênero, o desamparo de Katherine Mansfield quando via homem bonito, coisa que não consigo imaginar, homem bonito, apesar da profissão de pintor, resultando de tudo isso febre, frio, dor de cabeça, labirintite, e ainda por cima tendo de entregar o desenho da capa “ontem”, Luiz Arrais telefonando, dizendo que Leitão estava em cima dele, isso sem falar na cobrança de quadros há tempo encomendados por marchands, e eu me refugiando, sabe onde?

Em quando eu menino nos meus “interiô”, longínquo embora no tempo e logo ali na distância: sei que é cansativo ficar falando o tempo todo de Ipojuca, que suscitará a pergunta: “Por que não volta pra lá?” E volto. Na memória, único jeito de voltar.

No quintal de lá de casa, como em todos os quintais que se prezam, tinha uma cacimba, de onde era bombeada por bomba manual a água para um tanque de cimento em cima do banheiro. Não havia energia durante o dia. A antiga tampa da cacimba, de madeira, meio apodrecida, foi substituída por outra de cimento armado, lisinha, passando a ser meu lugar predileto de contemplação, deitado de papo pra cima, olhando as nuvens. Maria Jorge, a empregada, me chamava de “Zé Preguiça”. Sabe Deus em que eu pensava. Em nada talvez. Talvez dormisse. Porque, numa dessas vezes, quando abri os olhos, pairava bem verticalmente acima de mim, a uns trinta metros de altura, como na crônica e no livro Ornitologia Brasileira de Helmut Sick, um gavião peneira (Elanus leucurus). “Peneirou peneira/Peneirou no ar/Peneirou peneira/Meu amor onde ele está?” Deve se referir ao gavião, lá do alto observando tudo.

Tanto que, me sentindo insuficiente para chegar à moça, parti para meu quintal d’antanho, em vez do sítio de Baccaro para onde se dirigiu Arthur Carvalho levando Crispim, nome com que Teresa Cristina batizara o peneira.

Pensei em reproduzir na capa uma paisagem que pintei do céu de Ipojuca do livro José Cláudio/vida e obra mas o leitor se perguntaria por que o quadro, sem saber do episódio da tampa da cacimba.

De novo olhava a foto, que apareceu na página social do Jornal do Commercio. Embarquei numa interpretação que me remetia dessa vez à Itália renascentista, a um quadro de fundo enigmático de Tiziano, A Vênus de Urbino. Nesse quadro, não me disseram por qual razão, uma cena dá ao todo da pintura um tom de mistério, uma criada saqueando um baú ao que parece, como aqueles criados surpreendidos pelo vulcão em Pompéia, quem sabe simbolizando um estupro ou sei lá que outras sugestões nos ocorram, e que corresponde a uma personagem no fundo da foto olhando com ar rancoroso, ameaçador, para a figura da moça, como se injuriada pela beleza e serenidade desta, a perguntar-se: “Por que bela ela e não eu?” E é como se nos transferisse essa pergunta irrespondível, a ponto de nos tornar céptico quanto à justiça divina ou à própria existência desse ser superior que nos incutiram.

Lembrei-me de dar uma saída, ir aos shoppings verificar nas vitrines das livrarias, na multidão de livros expostos, o que era raro nas capas, o que poderia fazer com que uma capa se distinguisse das demais quanto a tipografia, cor, ilustrações ou sei lá mais o que mas já sabendo pura perda de tempo, justamente o que eu não tinha.

Ocorre ainda que, quando da publicação no jornal da crônica que dá nome ao livro, escrevera ao autor um bilhete parabenizando-o, tão encantado ficara quanto Cristina pelo pássaro, e era de se esperar pudesse eu traduzir isso agora no desenho da capa, transformando um trabalho talvez considerado corriqueiro num cavalo de batalha, numa questão de honra até. Já o francês Mathiew aventara ser o trabalho do pintor igual ao do toureiro, este arriscando a vida e o outro ainda mais: a honra.

Terminei fazendo um gaviãozinho num buraco do azul entre as nuvens recuperando-o ao menos da memória distante, apostando no que disse Gauguin, de nada parecer tão banal quanto uma obra-prima. O que não se aplicará ao caso, dirá possivelmente coberto de razão o leitor. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

veja também

Artes visuais: O papel das instituições

Mário Pedrosa reeditado

Por que me devoras?