Arquivo

Resistência: Livro feito de recortes de censura

Romance experimental de Ignácio de Loyola Brandão, 'Zero' comemora 40 anos de publicação no Brasil, quando o autor relembra a trajetória do texto proibido pela ditadura

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Julho de 2015

Imagem Karina Freitas

Há exatos 40 anos era lançado no Brasil um dos romances que mais desafiaram o regime militar. Zero, de Ignácio Loyola Brandão, traçava um vasto panorama do Brasil real, miserável e violento, quase sempre oculto dos jornais que circulavam na época, e tornou-se símbolo da resistência intelectual no período mais duro da censura e das restrições às liberdades. Como se não bastasse a ousadia política, o livro praticava experimentalismos literários e estéticos, simultaneamente pops e eruditos, em que eram desconstruídas a narrativa tradicional, a pontuação e a cronologia dos eventos.

Quatro décadas depois, o romance continua em catálogo. Atualmente, é considerado por muitos como um clássico da literatura brasileira. “Um livro solitário, que não fez escola. Não sei se isso é bom ou ruim”, diz Loyola. “Foi minha ‘bomba literária’, provocada pela raiva contra a ditadura.”

A história da feitura do romance é tão acidentada quanto o Brasil retratado no texto. Em 1964, o autor trabalhava como secretário gráfico na redação paulistana do jornal Última Hora e viu de perto a chegada da censura à imprensa. Os censores ocuparam um posto na redação, de onde liam previamente todo o material produzido, para decidir o que podia e o que não podia ser publicado. As notícias censuradas eram devolvidas com um carimbo de “vetada”. Loyola jogava tudo que havia sido barrado numa gaveta. Um ano depois, começou a colocar o material em caixas e levar para casa. As pilhas de textos censurados foram se acumulando até que, um dia, uma amiga, a atriz Ítala Nandi, estranhou a presença de tantas caixas em sua casa. Ao ouvir a explicação sobre o conteúdo, ela perguntou: “Isso aí não dá um livro?”. O autor começou a trabalhar no material efetivamente em 1967 e, nos anos seguintes, escreveu cerca de quatro mil laudas.


Ignácio de Loyola Brandão. Foto: Divulgação

“Depois, fui reescrevendo, cortando e dando um molde a aquilo tudo. Comecei a criar os personagens. Os depoimentos de tortura são verdadeiros, mudei os nomes das pessoas, mas são baseados em cartas que vinham das prisões e chegavam à redação”, diz Loyola, em seu apartamento no Bairro de Pinheiros, em São Paulo, numa moderna sala de trabalho abarrotada de livros. “Quando terminei, vi que era o Brasil que estava ali, o Brasil oculto, da repressão, de jovens morrendo, de professores exilados.”

PRIMEIRO NA ITÁLIA
Do ponto de vista estilístico, Zero tem um pouco de tudo: gente falando sozinha, monólogos interiores, conversas com taxistas, ruídos urbanos, onomatopeias, ortografia das palavras às vezes baseada na fonética, paródias dos estilos publicitário, religioso, militar, inscrições de banheiro; enfim, “cacos” que formam um “mural em mosaico” de uma metrópole, conforme definiu a professora de literatura da USP, Walnice Nogueira Galvão. O romance ficou pronto em 1973, mas não havia possibilidade de publicá-lo no Brasil. Foi rejeitado por umas 10 editoras. Foi quando o dramaturgo Jorge Andrade, colega de trabalho na revista Realidade, começou a ler o manuscrito e pediu para terminar a leitura durante uma viagem que faria à Itália.

Em Roma, mostrou o texto à amiga Luciana Stegagno Picchio, que ensinava literatura brasileira por lá. Ela gostou e recomendou a publicação do livro à prestigiosa editora Feltrinelli. Ela topou e o romance acabou saindo primeiro em italiano, em 1974. A Feltrinelli comprou os direitos e começou a vender para outros países. Em 1975, Ligia Jobim, dona da pequena editora carioca chamada Brasília, decidiu também comprar os direitos e publicá-lo no Brasil.

O risco era grande. Não havia censura prévia para livros mas, depois de publicados, alguns acabavam sendo proibidos de circular, quando o conteúdo desagradava ao governo. Zero foi lançado em 31 de julho de 1975, dia em que o autor completava 39 anos. Vendeu bem e saíram duas edições em pouco mais de um ano. Mas notícias sobre o conteúdo ousado começaram a chegar aos altos escalões do governo e o livro acabou banido em novembro de 1976. A proibição se baseava no decreto-lei 1.077, de 1970, que estipulava a proibição para obras que fossem “contrárias à moral e aos bons costumes”.


Loyola começou a gestar, involuntariamente, o romance ao
juntar em sua gaveta textos que eram jogados no cesto pelos
censores do jornal
Última Hora. Imagem: Reprodução

A professora Sandra Reimão, autora do livro Repressão e resistência – Censura a livros na ditadura militar, lembra que a proibição a Zero ocorreu junto à do romance Feliz ano novo, de Rubem Fonseca. Ambas seguiam o mesmo padrão. Com o texto já em circulação, alguém se escandalizava com o conteúdo e alertava as autoridades. A obra era, então, avaliada por um burocrata no Departamento de Censura e Diversões Públicas e o ministro da Justiça decretava a proibição. Vários livros também foram proibidos no período, como Em câmara lenta, de Renato Tapajós, e Aracelli, meu amor, de José Louzeiro.

Zero não chegou a ser recolhido nem houve a prisão do autor, porque o motivo da interdição não era político, era simplesmente moral, portanto, menos grave aos olhos do regime militar. O estoque foi se esgotando nas livrarias, com as vendas estimuladas ainda mais pela proibição. Fora do mercado, criou-se o mito e Loyola passou a percorrer o Brasil para fazer palestras a convite de universidades e diretórios acadêmicos. Zero circulava discretamente em cópias xerográficas feitas pelos estudantes. Numa época de fechamento político, as referências contidas no texto a torturas, assaltos a banco e à angústia existencial causada pelo sufoco político tinham um enorme impacto, sobretudo sobre um público jovem de esquerda que raramente podia ler sobre o assunto.

O autor foi convidado a falar em lugares como Bauru (SP), Campos (RJ) e Blumenau (SC). Em Campina Grande (PB), mostraram-lhe um calhamaço que havia sido datilografado por um grupo de estudantes, reproduzindo o texto do livro, um trabalho voluntário e imenso para fazer a história circular. “Como uma samizdat na União Soviética”, diz o autor, ao comparar a situação à censura também existente no outro campo ideológico.

No Recife, o hoje advogado Chico de Assis, preso político durante nove anos, contou publicamente numa palestra de Loyola que ele e seus companheiros de prisão leram a obra no cárcere. Páginas desmembradas eram levadas aos poucos por parentes durante as visitas, e circulavam discretamente entre os presos políticos.


O romance de John dos Passos foi uma das inspirações do autor
para escrever
Zero. Imagem: Reprodução

Em 1977, indignados com a persistência da censura, intelectuais organizaram um manifesto que pedia a liberação dos livros censurados. O documento, com o apoio de nomes como Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon, teve 1.046 assinaturas. Enquanto isso, saíam edições em Portugal, na Espanha e na Alemanha. Posteriormente, foi publicado também em idiomas como inglês, húngaro, tcheco e coreano.

LIBERAÇÃO
Em maio de 1979, com a abertura democrática, Zero voltou a circular legalmente no Brasil, editado pela Codecri, que pertencia ao Pasquim. Em uma semana, vendeu cinco mil exemplares e ocupou a lista dos mais vendidos. Teve quatro edições naquele ano. Com o fim da Codecri, passou para a editora Global, na qual está até hoje, agora na décima terceira edição. As antigas quatro mil laudas foram condensadas em 288 páginas de texto da edição atual.

Hoje, aos 78 anos, Ignácio de Loyola Brandão é um autor consagrado com mais de 30 livros publicados, entre contos, crônicas, memórias de viagens e, é claro, romances.

Ele revela ter se inspirado, ao escrever Zero, no estilo de Manhattan transfer, clássico da literatura norte-americana escrito por John dos Passos (1896–1970), conhecido por sua estrutura multifacetada, recortada, incluindo muitas vozes, colagens em que entram trechos da oralidade e da linguagem dos cinejornais. O filme A doce vida, de Federico Fellini, foi outra influência forte, pelo escopo amplo, a pretensão de abarcar todo um tempo, as sucessivas camadas da história. Loyola, que começou no jornalismo como crítico de cinema, assistiu ao filme dezenas de vezes ao longo dos anos, desde sua estreia em 1960, e tem toda a obra de Fellini como uma de suas obsessões. Considera Araraquara, sua cidade natal, no interior paulista, como a sua Rimini, onde nasceu o cineasta italiano.


O longa Doce vida, de Fellini, também inspirou Loyola em seu livro. Imagem: Reprodução

A presença dessas influências explicam o fato de Loyola escutar de leitores jovens a afirmação de que o texto de Zero “parece com um videoclipe”. É bom lembrar que, quando o livro foi concluído, no início dos anos 1970, nem havia o conceito do que seria essa forma de expressão. Mas, e hoje, numa época em que o videoclipe já foi inventado, superado, diluído, o que resta do impacto de um texto experimental como esse?

A princípio, o escritor recusa uma análise aprofundada: “Eu sou apenas um criador, não sei nada, sou um intuitivo.” Mas, depois, elabora melhor: “O texto conserva um frescor porque o mundo está fragmentado, apesar de globalizado. É um livro muito dividido. Tem vários pontos de vista, não tem uma narrativa com começo, meio e fim, não tem psicologia, não fico explicando o personagem. Acho que continua atual”.

“Na literatura, você exagera e a vida vem atrás. A vida é que copia a literatura”, afirma Loyola, que escreveu outro romance com teor de profecia, o Não verás país nenhum, de 1981, denúncia contundente sobre a ameaça de uma crise ambiental. Mas ele recusa o elogio. “Não sou profético coisa nenhuma. Basta olhar pela janela e ler muito – colecionei quatro mil recortes de jornal para escrever esse livro. Tudo começou quando vi uma notícia sobre a ocorrência de neve no Saara.”

Enquanto Não verás acertava na sua previsão da crise ambiental do futuro (hoje presente), Zero falava sobre o presente (nos anos 1970), uma realidade então escondida sob o tacão da censura, e que, de certa forma, continua atual, no momento em que o Brasil enfrenta desafios aparentemente diferentes. “Há uma nova ditadura funcionando, de outra maneira, a ditadura do mercado. E também censura por todos os lados.” Sobre a atualidade das obras de ficção, Loyola afirma que “quando Gabriel Garcia Márquez fez Cem anos de solidão, era tudo imaginação. Hoje, é tudo verdade”.


Bem jovem, Ignácio de Loyola trabalha como jornalista. Foto: Reprodução

A possibilidade de uma adaptação do livro para o cinema foi muitas vezes aventada. Mas o autor afirma que jamais autorizou, nem pensa em fazê-lo. “Vieram duas ou três propostas, mas Zero é inadaptável.” Houve, no entanto, uma versão para espetáculo de dança, com coreografia do austríaco Johann Kresnik, no começo dos anos 1990. Para além da importância política, Loyola espera que um dia o livro possa ser visto como um romance de formação de uma geração. “Todos os nossos símbolos estão esparramados pelas páginas. Leituras, ideologias, política, igreja, comportamento, cultura, o cinema que víamos, as revistas, os gibis, as relações familiares, os preconceitos e os tabus, as drogas e a música”, escreveu, numa apresentação da edição comemorativa, publicada em 2010.

CULTO AO MANUSCRITO
Agora que se fala na chamada “genealogia do manuscrito”, pequenas iniciativas são feitas para mostrar o processo de elaboração de livros importantes. Na Festa Literária de Aquiraz, no Ceará, em 2014, por exemplo, quando Loyola foi o autor homenageado, exibiram-se painéis com ampliação de páginas do original do romance. Na biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo, o livro também foi lembrado na exposição Zero: 40 Anos – A aventura libertária de Ignácio de Loyola.

No seu gabinete de trabalho, ele mostra o manuscrito de Zero com as alterações feitas à mão, em canetas de diferentes cores, trechos colados com fita adesiva. Certa vez, o teatrólogo Zé Celso Martinez Corrêa, seu amigo e conterrâneo de Araraquara, sugeriu que o livro fosse editado tal como o original, com as próprias correções evidentes, em papéis de texturas variadas, como uma grande colagem. “O editor ia querer me matar”, diz o autor, divertindo-se com a ideia e pensando no trabalho que ia dar.

Ao ser perguntado se vislumbra, algum dia, uma exposição do material bruto que deu origem ao livro, as famosas caixas de papelão contendo as matérias censuradas, Loyola diz que muita coisa se perdeu, quando se mudou e morou fora do Brasil. “Na verdade, essas coisas me constrangem um pouco.” 

MARCELO ABREU, jornalista, autor de livro como De Londres a Kathmandu e Viva o Grande Líder - Um repórter brasileiro na Coreia do Norte.

veja também

Gordofobia

Diego Di Niglio

Literatura: Sob a égide do mercado