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Entre os homens

TEXTO José Cláudio

01 de Julho de 2015

Óleo sobre Eucatex, 24,5 x 35,5 cm, 1970. O oiticoró mede de 10 a 12 cm de comprimento, por aí

Óleo sobre Eucatex, 24,5 x 35,5 cm, 1970. O oiticoró mede de 10 a 12 cm de comprimento, por aí

Imagem José Cláudio

Eu sentia uma gratidão enorme, até hoje sinto, por Reynaldo Fonseca quando ele ia à noite às vezes ao Atelier Coletivo, na Rua da Soledade, na Rua Velha, início da década de 50, e conversava com a gente sobre pintura; por Abelardo da Hora, que teve a ideia de criar o Atelier Coletivo, de que sou fruto, que nos recebeu a todos no âmbito de sua família, de sua mulher Margarida, as filhas ainda nenéns, a vitrola onde a gente ouvia Marian Anderson, Paul Robeson, a Introdução ao Rondó Caprichoso de Saint-Saëns, A Dança dos Kurdos de Aram Khachaturian, primeiras músicas clássicas que ouvi; sentia e até hoje sinto gratidão, misturada com saudades dos que já se foram, do nosso convívio daquela época.

E não só aqui no Recife. Gratidão sem tamanho por Raimundo Oliveira, de Feira de Santana; desmedida, incomensurável por Mário Cravo Júnior, princípio dos princípios de tudo na minha vida na Bahia quando sua fama ecoava em todo o Brasil, ganhador do belíssimo prêmio de escultura da Bienal, quando a Bienal de São Paulo era a descoberta do mundo; ele que me deu de comer e abrigo sem me conhecer; gente que não existe mais, como Carybé, que cresceu tanto na minha vida e até hoje cresce; Arnaldo Pedroso d’Horta, vivesse eu dez vidas ainda não pagaria essa dívida. Gratidão por eles e outros que a sorte botou no meu caminho, gente até que nunca vi, como Amerigo Rotelini, que me sustentou um ano na Itália, ou Madame Morrin, de Louvain, na Bélgica, que sem que nem mais me deu um pacote de dólares dizendo simplesmente: “Para você conhecer um pouco mais da Bélgica”. Pedro Octavio Carneiro da Cunha e sua mulher Dna. Anny, o filho João, o excelente pintor João Carlos Carneiro da Cunha, que o Brasil até hoje ignora. Hermilo e Lêda. Paulo Vanzolini, grande pedestal no meu coração, um “Amazonas de afeto” como disse o poeta meu conterrâneo de Ipojuca Domingos de Albuquerque: “Só eu posso dizer que sou ditoso/Só eu posso dizer que sou feliz/ninguém fez como eu um caudaloso/Amazonas de afeto como eu fiz”. Vocês não sabem a incomensurável reserva de gratidão acumulada dentro de mim e que não é senão um tanque de muitos mil litros das bondades que me têm sido feitas e que me servem de para-choques, de amortecedor das ruindades e revezes que antes de me atingirem esbarram nessa parede e chegam a mim, quando chegam, como ressonância inócua, restaurando minha fé na humanidade. Essa reserva adormecida é acionada pelas menores coisas como me aconteceu esta semana, recebi de manhã cedo a visita de minha prima Jacira e seu marido Maurício trazendo-me ele um oiticoró, embora, para mim, oiticoró não seja uma coisa qualquer nem menor.

Tenho que estar relembrando isso, aprimorando essa lista de gente que me fez bem, cujo nome me é grato lembrar, aproveitando para isso qualquer espaço, antes de “me encontrar com Cristo à uma e meia da manhã” (Deolindo Tavares).

Ah, a interminável lista. Até daqueles a quem nem lhes passou algum momento pela cabeça ter feito por mim seja lá o que for; como haverá tantos que devem se lembrar, sim, de me terem socorrido de iniciativa própria, mesmo que eu nunca tenha chegado a saber; ou que um dia tenha sabido e o tempo, que tudo devora, me tenha feito esquecer; um sorriso anônimo que me salvou a vida; o vigia da obra do Centro Carneiro Ribeiro, na Bahia, Cadu, que me tirou de bote de uma casa inundada; o riso claro de dentes de marfim de Dna. Carmó, na extinta lagoa do Pau Miúdo, Salvador, sempre carregando no braço seu filho, filho de Zé Pedreiro: para saber mais, acesse algum exemplar de Viagem de um jovem pintor à Bahia. Se achar.

Pedro Borges, que quase sem me conhecer, morando no Rio de Janeiro, médico do Ministério da Saúde, me mandou sair do jornal, em São Paulo, onde eu estava bem, porque ali não era meu lugar, e fosse quebrar a cara na pintura porque aí é que eu me sentia feliz: ele foi lá no jornal só para me dizer isso! Milhões de gestos que me livraram de tropeços, ou melhor, de abismos. Gente que não era meu parente nem precisava de mim para nada. Essas dívidas, essas dádivas, crescem como se gerassem juros. Não posso dizer, como na Imitação de Cristo, “sempre que passei entre os homens voltei para casa menos homem”. Pelo contrário. Se existe em mim alguma coisa que preste, devo a ter passado entre os homens pelos quais passei, admitindo embora uma questão de sorte. Cresci e cresço com a lembrança deles.

Acho que esses assuntos me foram despertados pela exposição da coleção Odorico Tavares no Instituto Ricardo Brennand, um tempo desse, organizada por Emanuel Araújo, que conheci, já ele artista renomado, num banco de pau, diante de uma mesa, de costas para o janelão que dava para o quintal, na Medeiros Neto, 9, Brotas, casa de Carybé, um banco comprido, onde ficamos sentados eu, ele, Carybé, e não sei que tanta importância tem isso para ser contado, mas nos ocorrem qual cenas de vida de santo, sacralizadas pela distância. Perdoem a divagação.

Percebo uma dificuldade, ao falar de gratidão. Várias. Por exemplo, quando você cita uma pessoa, mesmo para elogiar, mesmo para agradecer, muitas vezes é como se estivesse fazendo uso indevido do nome dela, como se cometesse uma inconfidência. Ocorre com a gratidão o que ocorre com o amor e outros sentimentos mais profundos e incomensuráveis: às vezes a simples menção já é um grande fora. Tanto que um dos amigos a quem mais devo, compreendi a tempo que o menor sinal de agradecimento, e público ainda por cima, de minha parte, lhe era sumamente penoso. Tem coisa que dizer estraga. De certa forma é vangloriar-se da generosidade do outro, se locupletar do que não lhe pertence. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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