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Antonio Bivar: Na época do pé na estrada

Dramaturgo paulista assume seu papel de memorialista, fala sobre os anos de formação, as raízes caipiras e de seu cosmopolitismo diletante, anglófilo e zen

TEXTO Marcelo Abreu

01 de Julho de 2015

Antonio Bivar

Antonio Bivar

Foto Renato Stock/Na Lata

No documentário Tropicália, dirigido por Marcelo Machado em 2012, aparecem imagens de um grupo de músicos brasileiros, liderados por Caetano Veloso e Gilberto Gil, “fazendo um som”, como se dizia na época, no palco do festival de rock da Ilha de Wight, na Inglaterra, em 1970. Entre eles, um sujeito cabeludo e de barba toca um reco-reco freneticamente. Pouca gente reconheceria hoje essa figura, mas ali estava, debaixo da indumentária hippie, Antonio Bivar, na época já renomado autor de peças teatrais, premiado no circuito Rio–São Paulo, que havia migrado para Londres na grande revoada da contracultura no final da década de 1960.

Nos últimos 50 anos, Bivar tem sido, na sua maneira discreta de ser, um participante de momentos marcantes na cultura brasileira, seja como dramaturgo, jornalista, tradutor, roteirista de TV e de shows, desenhista, incentivador da subcultura punk, ou simplesmente como um andarilho refinado e culto. Hoje, ele se define como escritor, o que, aliás, sempre foi o seu objetivo, mesmo quando começou a se destacar no teatro. Aos 76 anos, morando em São Paulo, acaba de lançar o terceiro volume de suas memórias, intitulado Mundo adentro vida afora (L&PM), dessa vez abordando seus anos de formação, de 1939, quando nasceu, até 1970, quando embarcou para a Inglaterra.

O ano que passou percorrendo as ilhas britânicas foi o tema de Verdes vales de fim de mundo, seu primeiro livro de memórias, lançado em 1984, e que encantou uma geração de leitores com suas aventuras na Europa, num tempo em que estavam exilados por lá nomes como Gil, Caetano, a atriz e dramaturga Leilah Assumpção, o cineasta Rogério Sganzerla e a atriz Helena Ignez. O livro traz um relato cheio de episódios da contracultura, que estava no seu apogeu e foi intensamente vivenciada por Bivar, incluindo a ida ao lendário festival da Ilha de Wight, um dos marcos do período. A volta ao Brasil, em 1971, e os dois anos seguintes, foram tema de um segundo volume, intitulado Longe daqui aqui mesmo, publicado em 1996. Agora, chegou a hora de contar o começo de sua história.


Bivar participou de performance de Caetano Veloso no festival da Ilha de Wight, em 1970. Foto: Reprodução

Bivar escreve diários desde criança, mas conta que somente a partir de 1973 começou a guardá-los. “Antes, eu rasgava, colocava numa fogueira e queimava, com medo de que alguém visse, coisas de criança.” Mas para escrever sobre a infância e juventude, contou com, além da memória muito boa, a possibilidade de entrevistar parentes e consultar revistas antigas. “Eu trabalhava nesse livro desde 1996. Escrevi tudo à mão. Foi uma composição, escrevendo todos os dias, até durante viagens a lugares como Cornualha, Sicília e Ribeirão Preto, às vezes de madrugada. Foi gostoso”, diz o autor, sentado em um café no Bairro de Higienópolis, em São Paulo, onde morou muitos anos antes de se mudar para a zona sul da cidade.

“De 1973 pra cá, tenho tudo, mais de 100 volumes de diversos tamanhos, em caixas.” É esse material bruto que está sendo retrabalhado no seu ritmo zen, para compor as deliciosas memórias que vão saindo aos poucos. Como num jogo em que ele vai juntando as peças.

Antonio Bivar nasceu próximo à Serra da Cantareira, na cidade de São Paulo, mas passou quase toda a infância numa fazenda ao norte do estado, no município de Igarapava, na fronteira com Minas Gerais. Mudou-se na adolescência para Ribeirão Preto, onde tem parentes até hoje. As raízes no interior idílico daqueles tempos são fortes e ele, quando perguntado, ainda se define como um caipira. Chegou para morar na cidade somente aos 24 anos, quando se mudou para o Rio de Janeiro com o objetivo de estudar no Conservatório Nacional de Teatro. Foi jogado no torvelinho de contestação política e cultural dos anos 1960, e dali ganhou o mundo.

NOVA DRAMATURGIA
Bivar começou a se destacar profissionalmente por volta de 1966. Seu nome passou a ser badalado quando escreveu, no Rio, junto com o amigo Carlos Aquino, uma peça chamada Simone de Beauvoir, pare de fumar, siga o exemplo de Gildinha Saraiva e comece a trabalhar. Era, na verdade, mais um happening irônico do que uma peça. Como escreve em Mundo adentro, “happening podia não significar nada, mas dependia de uma teoria para explicá-lo”. O autor aproveita e explica agora quem era a personagem que dava título ao trabalho: “Gildinha era um símbolo da esquerda festiva carioca, a turma do Cine Paissandu”.


Em seus mais recente livro, o escritor apresenta suas memórias.
Imagem: Reprodução

Foi um sucesso e os títulos longos viraram uma marca registrada. Na sequência, veio O começo é sempre difícil, Cordélia Brasil, vamos tentar outra vez, com Norma Bengell no papel principal (que deu a Bivar o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte como melhor autor de 1968). No ano seguinte, a peça Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã, com Maria Della Costa e direção de Fauzi Arap, lhe deu um prêmio Molière que, na verdade, era uma passagem aérea para a Europa, o que permitiu sua viagem, em 1970, para a Inglaterra.

Depois veio O cão siamês de Alzira Porralouca. As peças tinham sempre problemas com a censura. Alzira, por exemplo, só foi liberada após um lobby feito junto à própria Iolanda Costa e Silva, mulher do então general-presidente da República, Artur da Costa e Silva. A peça foi autorizada sem alguns trechos considerados ofensivos e com o título amenizado para Alzira PL. Depois virou Alzira Power, por influência do movimento feminista norte-americano, que Bivar viria a conhecer durante uns meses passados em Nova York, como hóspede do compositor Jorge Mautner, no lendário e decadente Chelsea Hotel. É até hoje sua peça mais encenada.

Sobre suas influências, ele afirma que sempre gostou de comédias e de “um teatro mais digestivo”. Mas cita também sua admiração pelos ingleses conhecidos como angry young men, nomes como John Osborne e Harold Pinter. Gosta ainda de Edward Albee e Samuel Beckett.

Hoje, só eventualmente Bivar escreve para teatro. Trabalhou durante 10 anos numa trilogia sobre a história do Brasil, em parceria com Celso Luiz Paulini, que resultou nos textos de Enfim, o paraíso, Uma coroa nos trópicos e As raposas do café. O monólogo Salém da imaginação, escrito para o ator Luiz Salém, tem percorrido o país. “Mas o pessoal sempre prefere montar as mais antigas”, diz, sem se importar muito.


Bivar frequentou grupo de intelectuais inicialmente formado por
Lyon Strachhey e Virgnia Woolf. Foto: Reprodução

Recentemente, Bivar foi personagem do espetáculo Próxima parada, de Felippe Vaz e Cesar Augusto, que aborda sua trajetória junto a um de seus companheiros de geração, o também dramaturgo e amigo José Vicente de Paula (1945-2007), autor de Hoje é dia de rock. Junto com nomes como Consuelo de Castro e Leilah Assumpção, eles formaram o núcleo da chamada “nova dramaturgia”, ou Geração de 1969, que renovou o teatro brasileiro no período mais fechado do regime militar, colocando no palco temas mais amplos do que a abordagem de grupos mais políticos, como o Teatro de Arena.

Ao longo dos anos, Bivar tem atuado também como jornalista, sempre escrevendo sobre comportamento e estilo de vida. Foi editor das revistas Interview e Gallery Around (já extintas) e mantém atualmente uma coluna mensal na revista Joyce Pascovitch. Foi também diretor artístico de shows de artistas como Rita Lee e Maria Betânia.

VIRGINIA, MEU AMOR
A paixão pela Inglaterra, que surgiu na primeira temporada por lá, em 1970, foi crescendo ao longo dos anos e se intensificou depois que descobriu a obra de Virginia Woolf (1882-1941) e dos intelectuais do grupo de Bloomsbury. Tudo começou quando, por volta de 1973, na casa de uma amiga, Bivar tirou da estante um livro para dar uma folheada. Era o romance As horas, da escritora inglesa. Não conseguiu mais largar o volume. Durante 12 anos, entre 1993 e 2004, frequentou, na Inglaterra, eventos sobre o Bloomsbury. Ficou amigo de Quentin Bell, sobrinho e principal biógrafo de Virginia Woolf, e de sua mulher Anne Olivier Bell, com quem ainda mantém contato.

No livro Bivar na corte de Bloomsbury (Editora A Girafa, 2005), conta sua participação nas escolas de verão da Fazenda Charleston (originalmente a casa de campo de Vanessa Bell, irmã de Virginia), localizada no condado de Sussex. E também nos festivais anuais de Charleston e em encontros variados de especialistas no tema, promovidos em outros lugares da Europa. São relatos cheios da joie de vivre de intelectuais que ouvem palestras de especialistas na obra de Woolf, pegam autógrafos, participam de oficinas de cerâmica e visitam os verdes vales do sul da Inglaterra por onde transitaram, na primeira metade do século 20, artistas e pensadores como John Maynard Keynes, Duncan Grant e Lyton Strachey. O livro traça um vasto panorama humano do diletantismo como forma de vida, praticado por pessoas de vários lugares, e é curiosíssimo, mesmo para os não iniciados nos estudos sobre Woolf e seu grupo. As idas frequentes à Inglaterra acabaram levando a um envolvimento amoroso entre Bivar e a editora inglesa Jenny Thompson, colega do círculo de admiradores de Bloomsbury, com quem esteve casado até a morte dela, há alguns anos.


Sobre a experiência com o Bloomsbury, Bivar escreveu um livro.
Imagem: Reprodução


Bivar reconhece e assume seu lado diletante e seu espírito jovem, sempre aberto a descobertas. “Assim como a Virginia me enlouqueceu, eu fiquei depois enlouquecido pelo Gabriel García Márquez, pela Colômbia e pela música valienato.”

ESPÍRITO LIVRE
A maior contradição na sua trajetória parece ser seu interesse pela subcultura punk. O intelectual que viveu intensamente o sonho hippie de paz e amor, o esteta sofisticado interessado em Bloomsbury e arte em cerâmica, paradoxalmente se tornaria o principal incentivador brasileiro do movimento musical juvenil conhecido justamente por sua estética rude e crua.

“Eu morria de medo de que os punks descobrissem”, diz hoje sorrindo, ao se referir a seu passado hippie. “Mas sabia que era o outro lado da mesma moeda.” Bivar conheceu os primeiros jovens fãs do Clash e dos Sex Pistols na Galeria do Rock, no centro de São Paulo, quando já tinha 43 anos de idade. “Identifiquei-me na hora com eles, me sentia com 15 anos novamente. Eu também havia sido office-boy na juventude. Era uma revolta muito ingênua e profunda.” Para dar uma força aos novos amigos, organizou o primeiro festival punk do Sesc Pompeia, em 1982, chamado O começo do fim do mundo. E escreveu o livro O que é punk, que se tornou um best-seller.

Outro capítulo marcante na sua carreira foi a tradução do romance On the road – Pé na estrada, de Jack Kerouac. A versão para o português foi inicialmente encomendada ao jornalista gaúcho Eduardo Bueno, que se baseou em uma edição espanhola. Bivar, que conhecia os beats desde os anos 1950, quando a novidade começou a circular aos poucos no Brasil, foi convidado pela editora Brasiliense a fazer uma revisão da tradução. “Vi que o livro estava traduzido em gauchês, na base do ‘tri-legal’ e coisas do gênero, com trechos ausentes, uma loucura”, relembra.


Peça Alzira Power foi liberada após ter trechos cortados pela censura.
Imagem: Reprodução

Ele se impôs a tarefa de transportar a linguagem para um tom mais neutro, retirando os regionalismos, e preencher as lacunas, traduzindo do original de Kerouac, em inglês. Deu uma melhorada, mas a editora tinha pressa e não houve tempo para muitos retoques. O resultado final não lhe agradou. De qualquer maneira, aquela edição de 1984 tornou-se histórica por lançar a literatura beat no Brasil, com 27 anos de atraso em relação aos Estados Unidos.

Beat, hippie, punk e bloomsburiano, tudo junto? Tem mais ainda. Bivar diz que tem “um lado meio mórmon, que baixa de vez em quando”. De formação católica, lembra com carinho do seu tempo de adolescente em Ribeirão Preto, quando passou a frequentar um templo dos mórmons, inicialmente com o interesse de fazer amizades e aprender inglês com os missionários norte-americanos. “Lá tudo era proibido, cigarro, Coca-Cola, café. Achava ótimo porque aquilo me prendia. Acho bom que a inocência perdure até quando puder. Mas voltei à Igreja Mórmon há pouco tempo por causa dos hinos, e agora as meninas já usam maquiagem.” Hoje, diz que tem uma ligação que considera “bem free” com a espiritualidade. “Não acredito muito em nada, mas acredito um pouco em tudo.”

Com a experiência de quem viveu intensamente as experiências das décadas de 1960 e 1970, ele reavalia alguns movimentos artísticos. “A nouvelle vague, por exemplo, parece chatérrima hoje. Com o distanciamento, pouca coisa resiste. Mas tem também coisas de que eu não gostava e agora gosto. A gente muda também.”

Bivar considera as tendências atuais de comportamento bem diluídas. “Eu tinha uma espécie de antena que captava as coisas no ato, hoje não consigo captar. Não sinto nada forte, tudo está misturado: futebol, tatuagem, Neymar, Beckham, funk.” Também lhe desagrada um certo comodismo no teatro, apoiado com dinheiro público. “Antes, eram nove sessões por semana, mesmo que houvesse um só espectador. Hoje é somente sábado e domingo. O ator fica cinco dias sem contato com o texto, o que é ruim. Muitas produções vivem só do circuito de festivais.”


Bivar escreveu livro e fez o primeiro festival do gênero de punk no país. Foto: Reprodução

VIDA INTERIOR
Antonio Bivar diz que nunca ganhou muito dinheiro. Sempre viveu de forma barata, viajando e lendo muito, flanando pelas cidades, curtindo museus, conversando sobre arte. É reconhecido e tem amigos na intelectualidade e na classe artística. Nas muitas temporadas que passou em Londres, sempre recorrentes nas suas memórias, vive e diverte-se com poucos recursos. É o tipo de sujeito que se contentava com uma máquina de escrever e um teto. Hoje, escreve tudo à mão e depois passa o texto para o computador. “Não sinto falta de nada. Sempre fui um sonhador com uma vida interior intensa.”

O sonho sempre foi se retirar para escrever sozinho, com calma. Promete para daqui a algum tempo um livro contando suas peripécias entre os anos de 1973 a 1992. E depois um outro sobre o período pós-Escola de Verão de Charleston, de 2005 até o presente.

Esse hedonista hippie, uma espécie rara de caipira cosmopolita, que costuma dormir cedo e acordar cedo, continua na estrada oferecendo aos leitores saborosos textos. Quem bem definiu Antonio Bivar foi, certa vez, o também dramaturgo Plínio Marcos (1935–1999), na saída de uma sessão de teatro. Em alto e bom som, reagindo ao que tinha visto na peça Abre a janela, Plínio desabafou: “Enquanto estamos lutando pelo feijão e arroz, lá vem Bivar com a sobremesa”. 

MARCELO ABREU, jornalista, autor de livros como De Londres a Kathmandu e Viva o Grande Líder - Um repórter brasileiro na Coreia do Norte.

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