Traduzido livremente do inglês, to surround é um verbo que significa cercar, cingir, abraçar. No som, significa espacialidade, ou seja, a capacidade de envolver o ouvinte em sons emanados de todas as direções, exatamente como acontece na vida real, levando o espectador ao estado de imersão característica da experiência cinematográfica. O jornalista e pesquisador do assunto Rodrigo Carreiro explica que “foram feitas várias experiências com o surround antes que ele fosse usado efetivamente, sendo a primeira delas em 1940, quando a empresa RCA criou um sistema de som a pedido da Disney, chamado Fantasound para o filme Fantasia”. O Fantasound surgiu sob a premissa de posicionar caixas de som à esquerda, à direita e no centro da sala de cinema – uma ideia revolucionária, mas que, devido ao seu alto custo de produção, foi adiada por vários anos. Carreiro explica que “Fantasia foi o único filme lançado nesse sistema, que, na época, foi colocado à disposição dos teatros que quisessem instalá-lo por 40 mil dólares”.
Somente três décadas depois, em 1974, com o clássico Laranja mecânica, de Stanley Kubrick, o som surround se tornou popular na sétima arte, graças à criação do sistema Dolby Stereo, pela empresa Dolby Laboratories. “Quando o Dolby Stereo foi introduzido, em 1975, as salas de exibição tinham de desembolsar apenas 5 mil dólares de investimento para aderir à tecnologia, ou seja, oito vezes menos que o Fantasound, 35 anos depois”, esclarece Carreiro. Essa compensação financeira fez com que o tal sistema fosse convertido num elemento onipresente na indústria cinematográfica. Ainda assim, o Dolby Stereo nunca deixou de ser aprimorado, evoluindo até se transformar no Dolby Digital ou Dolby 5.1, lançado em 1992, no filme Batman – o retorno, de Tim Burton. Utilizada até hoje, tal tecnologia permite a divisão do som dos filmes em seis canais, sendo cinco deles posicionados ao redor da sala de exibição, além de um sexto exclusivo para a reprodução de frequências graves.
Recentemente, porém, a Dolby Laboratories anunciou o desenvolvimento de uma nova tecnologia, a Dolby Atmos, que expande o número de canais de áudio disponíveis nas salas de seis para 128. Embora ainda incipiente, o sistema, por enquanto só incorporado a uma sala do circuito brasileiro, aparenta ser um artifício não somente voltado para a elaboração de desenhos de som cada vez mais sofisticados, mas também enquadrado como um mecanismo de ação comercial. “Toda vez que o cinema se sente ameaçado por um outro mercado, que hoje seria a internet, ele tenta oferecer ao espectador uma experiência visual e sonora que não seja reproduzível em casa”, aponta Carreiro, referindo-se ao fato de atualmente ainda não haver aparelho de som de uso doméstico capaz de reproduzir tamanha quantidade de canais de áudio simultâneos.
O termo "sound design" foi criado por Walter Murch e apareceu nos créditos de Apocalipse now. Foto: Divulgação
SOM, TÉCNICA E LINGUAGEM
Um dos casos mais famosos da história do cinema ocorreu na exibição da primeira imagem em movimento, no pequeno Um trem chegando à estação, de 1895, produzido pelos irmãos Lumière. Diz-se que boa parte do público saiu correndo da sala, sem saber se a cena – composta por um trem vindo em direção à câmera – era real ou não. Tal acontecimento ilustra perfeitamente o impacto exercido pelo contato de uma nova linguagem com o homem. Cem anos atrás, as pessoas não estavam preparadas para interpretar os códigos sob os quais se constrói a experiência audiovisual. Hoje, graças à gigantesca popularidade e influência obtida pela sétima arte ao longo do século 20, o espectador médio desenvolveu e incorporou ao seu repertório a capacidade de assimilação da linguagem cinematográfica.
Nesse contexto, o som desempenha uma função complexa e intrigante. Enquanto as pessoas passaram a interpretar com naturalidade elementos como a trilha sonora, narrações em off e demais ruídos exteriores à diegese das obras, a tecnologia de áudio contribuiu para que a edição do som dos filmes os tornassem cada vez mais verossímeis. Hoje, é possível registrar as falas dos atores no momento em que as cenas são rodadas, mas, até pouco tempo, era obrigatoriamente necessário regravar os diálogos durante a pós-produção. Além disso, uma técnica artesanal como o foley art – que se resume a criar em estúdio todo tipo de ruído impossível de ser captado ao vivo, como o barulho de explosões atômicas ou prédios desabando – passou a dividir espaço com a enorme quantidade de bancos de som disponíveis gratuitamente na internet, como o famoso site Free Sound.
Trilha de Birdman inovou ao usar sons de bateria para acompanhar a narrativa.
Imagem: Reprodução
E, embora esse progresso das técnicas de gravação e manipulação do áudio tenha convertido o sound design numa prática mais dinâmica e acessível, alguns aspectos relacionados ao potencial linguístico do som do cinema permanecem passíveis de reflexão, especialmente em relação à composição das trilhas sonoras. Isso se deve ao fato de que, ao longo do século 20, a linguagem musical tomou o caminho inverso da sétima arte. Retida aos moldes e formatos disseminados pela música pop, a capacidade de interpretação sonora do público médio acabou pautada a apenas um dos infinitos caminhos pelos quais a composição musical pode seguir. Assim, é comum que a maioria das pessoas só associe determinadas sensações e sentimentos às progressões harmônicas e melódicas consolidadas pela indústria fonográfica. Além disso, a pluralidade de formatos de arquivos de áudio e a qualidade incerta da maioria das caixas de som domésticas também foram determinantes para que a música se distanciasse das condições estruturais necessárias à sua compreensão plena.
O produtor musical e sound designer Rafael Borges aponta: “Nós nos acostumamos a ouvir música muito mal. Essa experiência é infinitamente inferior ao que deveria ser. No cinema, existe uma solenidade em ir à sala e assistir a um filme, um resgate à apreciação plena da arte”. Tal análise coloca a experiência cinematográfica como um artifício capaz de levar o público a interpretar o som nas condições adequadas, algo que nem a própria música é capaz de fazer hoje. “No Ocidente, nós somos reféns da melodia. Instrumentos melódicos compõem a harmonia para nós. Não só a harmonia musical, mas a harmonia enquanto equilíbrio natural”, pontua Rafael, que também cita a trilha sonora do cultuado filme Birdman ou A inesperada virtude da ignorância, de Alejandro González Iñárritu, composta exclusivamente por percussão, como um exemplo de um modo de estimular sentimentos no espectador através de outras abordagens musicais.
Batman, filme de Tim Burton, fez a estreia, em 1992, do Dolby Digital. Imagem: Reprodução
Tal aspecto solene da experiência cinematográfica ainda reverbera em outro ponto importante para a construção do som dos filmes – os chamados LFE, abreviação de Low Frequency Effects, traduzidos como “efeitos de baixa frequência”. Responsáveis por interagirem diretamente com a fisiologia do corpo humano, as frequências graves são elementos quase obrigatórios para a criação de tensão e alívio na experiência fílmica e que raramente podem ser reproduzidos num equipamento de som doméstico. Um filme como Onde os fracos não têm vez, dos irmãos Cohen, sequer faz uso de uma trilha sonora e situa toda sua tensão na inserção de sons extremamente graves nas cenas – uma experiência que só atinge o seu estado de apreciação ideal na sala de exibição.
Ainda assim, quando um filme é finalizado, ele passa por uma série de procedimentos de mixagem de som, para que se adapte a todos os mercados, desde o cinema até a televisão.
Embora a sala de cinema seja um elemento atemporal e necessário à sétima arte, a elaboração da linguagem cinematográfica permanece em constante efervescência, transformada pela própria dinâmica do mundo. Ao definir o termo sound design, o norte-americano Walter Murch percebeu justamente isso: o som do cinema é, por excelência, um organismo vivo, necessário e flexível, à medida que evoluem a linguagem e a tecnologia.
FERNANDO ATHAYDE, jornalista e músico.