Arquivo

Montagem: No balanço do rio

Peça 'Cordel do amor sem fim', encenada pelo grupo O Poste, propõe apresentações experimentais dentro de um barco atracado no Capibaribe

TEXTO Guilherme Novelli

01 de Junho de 2015

Foto Aryella Lira/Divulgação

"Deus separou o claro do escuro, separou o mar da terra, separou o macho da fêmea, separou o bem do mal e, se Deus já começou separando, quem sou eu pra falar de união? Mas digo que o homem é bicho que nasceu pra ficar tudo junto”, começa o Contador, introduzindo ao público o Cordel do amor sem fim, peça da baiana Cláudia Barral, encenada pelo grupo de teatro recifense O Poste, sob direção de Samuel Santos. A peça, que já ganhou diversos prêmios em festivais pelo país, reestreia dia 29 deste mês, às 20h, no Espaço O Poste (Rua Aurora, 529, Santo Amaro, Recife), às margens do Capibaribe.

É a história de três irmãs, Tereza, Carminha e Madalena, que moram numa cidade ribeirinha chamada Carinhanha, divisa entre Bahia e Minas Gerais. No dia em que José pediria a mão de Tereza, a mais nova, ela vai até o cais do Rio São Francisco comprar farinha e conhece um forasteiro chamado Antônio, ficando perdidamente apaixonada. O forasteiro embarca no vapor que o tinha trazido, dizendo que voltaria para casar com ela. Todos os dias, a partir daí, Teresa vai esperar por Antônio no mesmo horário, no mesmo local onde se conheceram. E ele não volta. Passam-se dias, meses, anos, e o amor de Teresa não esmorece. No processo de espera, de tempo, de amor, ela começa a enlouquecer. A cidade então comenta a sua loucura. De tanto esperar, acaba virando uma pedra às margens do São Francisco.

O Capibaribe e o São Francisco são rios irmãos, em termos de importância e de imaginário poético. “Tivemos a oportunidade de levar o espetáculo a várias cidades que são banhadas pelo São Francisco. Percebemos a importância dele. Era como se fosse, realmente, o coração da cidade. É o que pulsa, faz viver, alimenta, dá respiração, assim como o Capibaribe, que corta toda a cidade do Recife indo até os interiores de Pernambuco. Desse rio se tira muito. Famílias sobrevivem com a pesca, o turismo, passeios de barco”, conta o diretor Samuel Santos.

No projeto atual, patrocinado pelo Funcultura, o grupo realizará apresentações dentro de um barco no meio do Capibaribe. “O espetáculo irá se adaptar a outro espaço, com outras marcações de cena, dentro do barco. Faremos o espetáculo no meio da noite, no rio. Também o apresentaremos ao ar livre, às margens do Capibaribe, pois queremos viver esse rio em suas potencialidades”, continua. O Espaço O Poste, onde serão feitas as demais apresentações, fica a 10 metros do rio.

“Na Bahia, em todas as cidades que são rodeadas pela seca, o rio acaba sendo a veia econômica da cidade. Em Carinhanha, é exatamente isso que acontece. Muitas das relações da cidade se dão através do rio. Ele atravessa a cidade. Isso marca as pessoas de lá. Há diversas referências a ele, principalmente na obra poética”, conta Cláudia Barral, autora da peça.

O CASO DE TEREZA
A história de Tereza é baseada em fatos. Uma das versões conta que ela conheceu um turco, no cais, que lhe disse que voltaria pra buscá-la. Diante de sua espera, a população começa a tachá-la de louca. Até que, quatro anos depois, o estrangeiro volta. Os dois se casam, têm filhos. Na versão de Cláudia Barral, não há final feliz. A peça transita do riso, no início do texto, para uma tristeza lúgubre, da angústia da espera, da loucura. “Essa história é bem antiga. Aconteceu na década de 1940. Ao mesmo tempo, é algo atávico. O feminino enquanto passividade, espera. Investigar a força que existe por trás desse arquétipo tem tudo a ver com o texto e é o diálogo que a montagem do Samuel propõe”, define a dramaturga.

A versão de Claudia talvez combine mais com uma segunda versão dessa história popular, em que os senhores de idade de Carinhanha contam até hoje. Dizem que Tereza foi filha do prefeito da época e se apaixonou por um índio. O pai, com vergonha, mantém a moça trancada e ela enlouquece.

Em termos da dramaturgia, a peça mistura referências bastante próprias do Nordeste, como a presença de cordelistas, narradores, contadores de histórias, violeiros, que eram vistos antigamente nas feiras da região. “A peça tem a característica desse tipo de história que passa de boca em boca, comum ao nordestino. Por isso, também, que a palavra cordel vai no título da peça”, explica a dramaturga, que lembra que as apresentações contarão com versão em libras.

Teresa enlouquece ao longo do espetáculo. A plateia acompanha a espera e a loucura dela por amor. “O público acha que é tudo ilusão da cabeça dela, que esse amor nunca existiu, que essa pessoa é irreal, mas ele não é. E Teresa continua no cais do rio São Francisco, até virar uma pedra”, comenta Samuel.

ENCENAÇÃO
O Poste tem uma relação com o teatro físico, em que o trabalho corporal é bastante acentuado. Trabalha essa referência dentro do Expressionismo, da distorção do “eu”, representada na fisicalidade dos atores, emergindo daí o grotesco. A pesquisa vocal acompanha o trabalho corporal, fugindo completamente do registro naturalista.

“A intenção é, justamente, fugir do clichê, do tradicional. Quando se fala em cordel, em teatro popular, existe esse estereótipo dos figurinos com sandálias de couro, roupa de chita, o violeiro cantando. Montamos esse espetáculo em outra dimensão”, ressalta o diretor.

O texto norteou as pesquisas do grupo. “A partir do Cordel do amor sem fim, enveredamos pela pesquisa do corpo ancestral, primitivo, aquele que se deforma, vem de outra dimensão e invade a nossa, transformando a relação tempo-espaço”, conclui Samuel Santos. 

GUILHERME NOVELLI, jornalista.

Publicidade

veja também

Congadas: Uma celebração a São Benedito

Em busca da felicidade eterna

Yuri Firmeza