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Fotografia: O biscoito fino do documental

Coleção homenageia profissionais que ajudaram a consolidar o gênero no Brasil, como Cristiano Mascaro

TEXTO Adriana Dória Matos

01 de Junho de 2015

Título dedicado a ele privilegia os retratos feitos nos anos 70-80

Título dedicado a ele privilegia os retratos feitos nos anos 70-80

Foto Cristiano Mascaro/Divulgação

Andar pelas páginas deste livro de Cristiano Mascaro (Ipsis Gráfica e Editora, 2014) é como entrar no conto Abraçado ao meu rancor, de João Antônio, e experimentar a sensação simultânea de imagens sem tempo e definitivamente ligadas ao passado. “Dentro do Martinelli, procuro um salão de bilhares no andar térreo, o Mourisco, grandalhão, de espelhos laterais do tamanho de um homem. Onde funcionavam, certos e terríveis como relógios, sonsos e dissimulados, uma ciência de precisão, sinuqueiros de nome – Brahma, Tarzan, Itapevi, Calói, Estilingue, Boca Murcha”, é um dos trechos da narrativa – um passeio aturdido e melancólico do narrador pelas ruas de São Paulo – escrita em 1986. Naquela mesma década, precisamente em 1980, em Cuiabá (MT), Cristiano Mascaro retratava dois homens numa sala de sinuca, ambos olhando incisivamente para a câmara, como que curiosos ou inquisitivos, a despeito de que “nomes de prestígio” pudessem ostentar naquela sala.

Mascaro conta que, quando foi convidado a compor a Coleção Ipsis de Fotografia Brasileira e soube que a curadoria ficaria a cargo de Eder Chiodetto, fez uma seleção enorme de imagens do seu arquivo, pensando em estabelecer um olhar histórico sobre a própria obra, sobretudo os retratos. Era aguda sua consciência de que a relação espontânea que se estabelecia entre ele e aqueles retratados – todos os registros realizados nos anos 1970 e 1980, com raras datações nos anos 90 e 2000 – deixou de existir, porque o mundo se tornou mais hostil e as pessoas reagem com desconfiança ou agressivamente à mira da câmera. “Na nossa conversa, então, Eder e eu decidimos intercalar retratos com imagens de interiores e arquitetura.”

Arquiteto e fotógrafo, Cristiano Mascaro (Catanduva, SP, 1944) é o que podemos chamar de um moderno humanista na fotografia brasileira. Seu trabalho tem sido, desde a década de 1970, pródigo no registro da cidade e da arquitetura, incluída nesse conjunto a figura humana, em elaboradas composições fotográficas, boa parte delas em preto-e-branco, como está exclusivamente representado neste livro que leva apenas seu nome.

Tudo é silêncio, vagar e contemplação nestas fotografias, cujo tempo apreendido reflete o uso da máquina Rasselblad de grande formato, equipamento que ele dispunha em tripé na frente de seus temas e personagens. Os retratos expressam a disposição fixa do fotógrafo diante do seu tema, que, mediante o pacto estabelecido, deixa-se fotografar em pausa, daí a ausência de movimento, a apreensão intensa do olhar, dos gestos, objetos, cenários.

Estas são também imagens de intervalo, pois o fotógrafo conta que as realizou sempre entre trabalhos em curso. Era um tempo, recorda, quando se podia bater na porta das pessoas, pedir para entrar e fotografar e ainda ser convidado para um café. Nessas incursões, Mascaro fotografava os ambientes – cujas mobílias e arrumações estão carregadas de significado – e seus moradores, a partir de um cuidadoso exercício de observação.


Fotógrafo Nelson Kon começou sua carreira em 1985 e dedica-se ao registro
da arquitetura. Foto: Nelson Kon/Divulgação

Num excelente trabalho de edição, o arranjo das imagens neste livro – retratos e registros de ambientes internos, na maioria, embora haja belos planos gerais da cidade, sobretudo em fotos noturnas – resulta num percurso cadenciado, em que o leitor quase deixa escapar (ele é “salvo” pelas legendas) as distinções temporais e espaciais dos registros. Isso porque há unidade na linguagem fotográfica, seja na foto de uma sala de hotel de centro de cidade, de um vaso sobre uma mesa de casa simples, de um detalhe de corrimão ou da cortina esvoaçante de uma fazenda. As quebras ocorrem também placidamente, com a inserção de paisagens noturnas em neon, trens que cruzam a cidade, silhuetas de prédios, cortes e detalhes de monumentos, ruínas. É curioso: não há close-ups neste pequeno livro, escolha que denuncia o ponto de vista do fotógrafo.

Não é gratuita a sensação de desaparecimento experimentada pelo leitor diante desse recorte na obra de Mascaro, e isso não se deve apenas ao fato de muito do que está nas imagens ter envelhecido ou deixado de existir. Mas porque ele captou algumas dessas imagens, nos anos 1970 e 80, em momentos de transição da cidade, como foi o caso da documentação que empreendeu nos bairros do Bom Retiro (entorno da Estação da Luz e da Pinacoteca do Estado de São Paulo) e Brás, que teve trechos demolidos para a construção do metrô.

Lugares apagados. Ecoa novamente João Antônio: “Aposentaram os bondes, enlataram a cerveja, correram com o sambista, enquadraram até os poetas. Lanchonetaram os botequins de mesinhas e cadeiras; pasteurizaram os restaurantes sórdidos do Centro e as cantinas do Brás, mas restaurante que se prezava era de paredes sujas, velhas! Plastificaram as toalhas, os jarros, as flores; niquelaram pastelarias dos japoneses, meteram tamboretes nos restaurantes dos árabes. Formicaram as mesas e os balcões. Puseram ordem na vida largada e andeja dos engraxates”.

UM DISCÍPULO
Cristiano Mascaro foi professor universitário e, entre 1974 e 1988, coordenou o Laboratório de Recursos Audiovisuais da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, pelo qual passaram vários estudantes desse curso. Ali, eles desenvolviam projetos de pesquisa e documentação, e Cristiano conta que pôde formar vários bons fotógrafos de arquitetura. Um deles foi Nelson Kon, cujo título dentro da Coleção Ipsis de Fotografia foi lançado simultaneamente ao de Mascaro.

Assim, vistos em dupla, os livros de Kon e Mascaro são uma amostra de como aquela que se convencionou chamar de “fotografia de arquitetura” está bem-representada por gerações distintas e foge ao senso comum que associa essa atividade ao puro formalismo. O curador da coleção, Eder Chiodetto, escreve na apresentação ao livro de Nelson Kon que ele “é um inspirado cronista, que se vale da paisagem urbana, das formas de apropriação do solo e, claro, da arquitetura para narrar tensões existentes nestas equações”. Podemos tomar a imagem reproduzida na página 71, da Galeria Presidente (São Paulo, 2013), como exemplo das referidas “tensões”, observando que o grafismo significa uma situação urbana e não apenas uma boa composição.


Rigor e sensibilidade caracterizam o trabalho de Araquém Alcântara, "fotógrafo da natureza". Foto: Araquém Alcântara/Divulgação

A coleção em que se incluem estes dois produtos de qualidade foi iniciada em 2013, com o volume inaugural dedicado ao “fotógrafo de natureza” Araquém Alcântara, cujas imagens enaltecedoras de fauna e flora foram popularizadas até em cadernos escolares. Nesta seleção, a curadoria fugiu desse repertório por demais explorado e buscou um recorte mais complexo da obra de Alcântara.

A ideia do proprietário da Ipsis, Fernando Ullmann, é que esta coleção de livros de fotografia preste homenagem aos profissionais e seja a estreia da gráfica – reconhecida pela qualidade na impressão de livros de arte – como editora. Eder Chiodetto, que foi convidado para a curadoria da coleção, que deverá ter 10 títulos, diz que as escolhas recaem na obra de fotógrafos que contribuíram para a formação da fotografia documental no Brasil. Ele está preparando para este ano mais três volumes.

O próximo será dedicado a Thomaz Farkas (1924-2011), em cujo vasto espólio – sob a guarda do Instituto Moreira Salles (IMS) – Chiodetto está pesquisando. “Farkas tem um trabalho diverso, composto de várias fases. Gosto muito da experimental, mas, pelo recorte da coleção, ela está fora. Ainda estou trabalhando na seleção.” Ele também aguarda liberações por parte do IMS.

Um trabalho que está adiantado, segundo Chiodetto, é a edição do livro de Guy Veloso, que, junto com a também paraense Elza Lima, deverá ter lançamento em outubro ou novembro próximo. “Estamos com 50% do livro editado, trabalhamos com a ideia do transe, dentro da documentação que Guy faz das religiões brasileiras.”

Com relação a Elza Lima, o curador se felicita em poder divulgar o trabalho pouco conhecido da fotógrafa, do qual vai enfatizar ensaios com as populações ribeirinhas e a relação dos povos com as águas. “O olhar dela é tão particular quanto o de um Miguel Rio Branco, Mário Cravo Neto ou Tiago Santana. Ela nos leva aos extraquadros, a imaginar o que está fora da imagem”, aponta Chiodetto. Tanto ela quanto Guy Veloso terão nesta coleção seu primeiro livro solo. Embora não revele outros nomes que integrarão a coleção, o curador diz que gostaria muito de poder, com ela, publicar profissionais inéditos, além dos clássicos aqui mencionados. 

ADRIANA DÓRIA MATOS, editora-chefe da revista Continente.

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