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Thiago Martins de Melo

Como se fosse um ebó pictórico

TEXTO Luciana Veras

01 de Abril de 2015

A obra 'Martírio' foi exibida na 31ª Bienal de São Paulo, em 2014

A obra 'Martírio' foi exibida na 31ª Bienal de São Paulo, em 2014

Foto Cortesia Mendes Wood DM São Paulo

Thiago Martins de Melo tem a idade de Cristo e loquacidade de um repentista. Possui diploma de graduação, título de mestre e um incompleto doutorado em Psicologia. Tem dois filhos, São Luís como lugar de nascença e Belém como a cidade que elegeu para sua “ontogenia” – uma das palavras curiosas que competem para traduzir seu pensamento veloz. Ouvir o jovem pintor maranhense é igual a encarar Martírio, obra sua presente na 31ª Bienal de São Paulo, em 2014: por ela não se passava incólume, dele não se sai imune.


Seus trabalhos unem elementos dos cultos africanos, do vodum caribenho e da mitologia tupinambá. Imagem: Cortesia Mendes Wood DM São Paulo

Além da pintura, descoberta da adolescência (“meu pai, Rogério, é pernambucano e artista plástico, nasci dentro do ateliê, aos 15 anos já sabia lidar com óleo e terebentina”), seu trabalho aglutina esculturas e materiais diversos – motoserra, pneus, ferro, entre outros – para compor uma “iconografia dos movimentos sociais”. “Meus heróis são aqueles que lutam por justiça social, no Nordeste e na Amazônia. Sou de um estado que é a terra mais rica e a mais pobre – a fronteira do capital. Lá, o Movimento dos Sem-Terra e os camponeses utilizam o termo ‘mártir’ para quem cai na luta pela terra. Eles são mártires para seus iguais. O trabalho me vem do martírio de São Pedro, das iconografias cristãs”, elucida Thiago.

Duas enormes telas, um pajé e quatro totens em que cabeças decepadas figuram como troféus coabitam o cenário artístico criado em Martírio, que condensa outros atributos perceptíveis nos quadros dele: o acúmulo de referências, a potência com que a tinta invade e ocupa seu espaço, a sobreposição de símbolos e alegorias, o peculiar retrato da violência e seu efeito sobre os corpos e o misticismo para o qual convergem credos distintos, como o apreço por orixás e ícones africanos, o vodum caribenho, que o artista tanto admira em São Luís, ou a mitologia tupinambá.


Imagem: Cortesia Mendes Wood DM São Paulo

Exu force power e O “ninguém” usa o god helmet e cega Polifemo sob o auxílio de Iemanjá, de 2012, A Rébis mestiça coroa a escadaria dos mártires indigentes (2013) e o mais recente Teatro nagô-cartesiano número 2: Flor do mangue (2015) concebido como uma animação stop motion e a noção de hibridismo para a itinerância da mostra Imagine Brazil, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo evidenciam esse explosivo jogo entre o que Thiago traz e o que persegue, jogo esse que, não por acaso, assemelha-se ao torrencial discurso de quem era “fissurado em histórias em quadrinhos e cinema” e foi buscar na arte uma forma de construir as próprias narrativas visuais.


Acúmulo de referências e sobreposição de símbolos e alegorias são recorrentes nas suas obras. Imagem: Cortesia Mendes Wood DM São Paulo

“A arte contemporânea é um território onde você pode fazer o que quiser, um universo onde tudo é livre e me sinto livre. Tudo nasce do desejo de contar histórias. Crio num processo de avalanche, sem parar para descansar, sem dissociar minha vida pessoal do meu trabalho. Pinto todo dia, não durmo, não tiro férias. Se deixo a pintura por dois dias, quando volto, sou um estranho”, diz o filho de Ogum, que até 2013 se colocava como personagem de suas pinturas, ora participando de rituais, ora furando o crânio de um político conterrâneo com uma britadeira.

Para Thiago, o artista não deve ser um “formalista alienado” nem covarde, para “não tomar posição”. “Quando pinto o nativo, o quilombola, o negro e os excluídos, coloco-os no seu lugar através do caráter mágico da arte, acima dos conservadores, dos grileiros, dos tucanos e da bancada ruralista. Dentro do Brasil, existe uma dificuldade de entender signos que são nossos, da nossa cosmogonia, como os mitos dos índios, os santos e os orixás como Exu, lidos de maneira errônea e maniqueísta por intelectuais. Mas é através deles, e não de porcas reduções capitalistas, que conseguimos falar com a África, com a Ásia e com a Europa”, opina.


A tela Kwaku Ananse... foi feita junto com outros dois trabalhos,  para a exposição francesa de 2013. Imagem: Cortesia Mendes Wood DM São Paulo

Em 2008, a série Sad goat redux, na qual reelaborava o nascimento do filho mergulhando na ancestralidade e na procura por sua identidade (busca que, ressalta, ainda se mantém), livrou-o de uma crise existencial e lhe rendeu o prêmio do 27º Salão Arte Pará. É tida por ele como um marco na sua trajetória – breve, porém intensa – de recriação do universo com signos a aferir a força dos conflitos. Em telas como Ouroboros do sebastianismo albino (2012), Kwaku Ananse conta a história da odisseia cubana de Carlota Lukumí que desce em África para abençoar as armas de Umkhonto We Sizwe (que o levou à Bienal de Lyon de 2013) e Dona Herondina e o descanso do guerreiro no jardim desenvolvimentista (2014), e para onde for, seja Inglaterra, África do Sul ou Noruega, seja São Luís e Campinas, por onde atualmente se divide, Thiago Martins de Melo carrega seus caboclos, pais de santo, caciques e mães espirituais. A eles pede benção e devolve proteção. “Quero que minha arte seja um ebó pictórico, um oráculo, uma mensagem”, resume, não sem antes cristalizar, no diálogo, as contradições – próprias do Maranhão, do Brasil, do mundo – que sua obra manifesta na essência: “Quando eu tiver 70 anos, talvez me entenda”. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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