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Poesia: Sob a inspiração de Orfeu

Com foco em temática de rara abordagem, estudo do professor Fábio Andrade investiga a produção decadente e simbolista de autores pernambucanos

TEXTO Adriana Dória Matos

01 de Abril de 2015

Pintura simbolista do belga Jean DelVille interpreta o mito do herói grego, patrono da música e da poesia

Pintura simbolista do belga Jean DelVille interpreta o mito do herói grego, patrono da música e da poesia

Imagem Reprodução

Desde o período da graduação em Letras, estimulado pela escritora Luzilá Gonçalves Ferreira, na disciplina História da Literatura Pernambucana, Fábio Andrade vem pesquisando “papel amarelado”: revistas e jornais do final do século 19 e início do 20, nos quais garimpa histórias esquecidas. Um dos temas que mobiliza o professor de Letras, que também é poeta, é certa produção literária que ficou ofuscada, sobretudo pelo fulgor dos modernistas de gerações posteriores: a poesia decadente e simbolista de Pernambuco.

Cada vez que se deparava com autores hoje pouco conhecidos, Fábio se perguntava por que a formulação do conceito da poesia simbolista como precursora do modernismo era evidente na Europa e aqui no Brasil, não. Sua indagação o levou adiante na pesquisa, dessa vez, com a colaboração de alunos seus da UFRPE, de onde migrou para a UFPE, onde hoje leciona. Do material que reuniu ao longo de mais de uma década, ele apresenta agora a primeira publicação, O fauno nos trópicos – um panorama da poesia decadente e simbolista em Pernambuco (Cepe Editora), na qual figuram 17 poetas, sendo apenas uma mulher.

No livro, de pouco mais de 250 páginas, o organizador faz uma cuidadosa apresentação ao tema, na qual explica a motivação da pesquisa – justamente a consciência do ineditismo da proposta, pela escassez de registros do gênero – e a obra que lhe serviu de referência para o intento, o livro Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, publicado por Andrade Muricy, em 1952. Fábio destaca a importância irrecorrível dessa obra, observando, entretanto, que sua limitação é justamente a de enquadrar quase nada de Pernambuco, recorte a que Fábio se dedica. Comentando sobre outros trabalhos que busquem, no Nordeste, somar-se ao pioneirismo de Muricy, ele menciona a pesquisa realizada por Sânzio de Azevedo, em 1996, A Padaria Espiritual e o simbolismo no Ceará, como uma ótima referência.

Na mesma apresentação, além da explicação sobre sua motivação intelectual, Fábio Andrade faz uma síntese das origens do movimento literário, sobretudo destacando a influência francesa entre os autores brasileiros. (“No Nordeste, o Simbolismo foi muito mais forte em Pernambuco”, nos diz ele, “porque havia no Recife uma Livraria Francesa, e os poetas frequentavam o lugar”.) Além dos franceses, os portugueses inspiraram a produção nacional, e essa matriz é um dos motivos, defende Fábio, porque o movimento brasileiro não foi considerado precursor do modernismo posterior, como se deu na Europa. “Como havia, entre os modernos, a necessidade de afirmação da brasilidade e essa era uma influência vinda do ex-colonizador, a poesia simbolista foi ofuscada.”

Sobre uma “sensibilidade moderna” que teria sido antecipada pelo Simbolismo, pode-se pensar nas questões formais por ele propostas, na visão metafísica, no cultivo do feio e do horrendo, como enumera o pesquisador. Também vale lembrar aqui que as divisões entre movimentos literários, como se um sucedesse o outro de forma estanque, decorre mais de uma necessidade acadêmica e histórica de classificação e catalogação, já que as passagens, por exemplo, entre Romantismo, Realismo, Decadentismo, Simbolismo se intercruzam e embaralham.

Só para tomar o exemplo de O fauno nos trópicos, vários dos autores reunidos no livro passaram por diferentes fases literárias, ora mais decadentes, simbolistas e mesmo neoparnasianos, o que seria uma contradição, se tomássemos as características dos movimentos fixamente. Nos comentários que faz a cada um dos artistas, Fábio Andrade explica aproximações e relações que possam existir entre os 17 poetas que reuniu, cujo elemento em comum evidente é terem publicado quase toda a produção poética em jornais e revistas literárias, a maioria dessas publicações sendo de responsabilidade dos próprios autores, empenhados que estavam em divulgar de forma mais ágil as suas obras de dor e langor. O organizador também expressa a dificuldade que teve de encontrar várias das matrizes sobre as quais havia tido qualquer referência, papéis amarelados que se perderam pelo caminho.

Dos autores inseridos no Panorama, provavelmente os que tiveram mais proeminência foram Medeiros de Albuquerque, a quem se atribui a introdução do decadentismo no Brasil, e aqueles reunidos na revista Heliópolis, que teria sido a de maior longevidade do movimento, publicada entre 1914 e 1917. Fábio destaca a qualidade editorial e gráfica da revista, com clara influência art nouveau na sua diagramação. Embora mencione o espaço escasso que a literatura pernambucana tem nos cursos de Letras, o pesquisador entusiasma-se diante da perspectiva de ter material para continuar esse trabalho, no qual pretende publicar estudos sobre a prosa, a crítica, a análise e o debate em torno do decadentismo e do simbolismo locais.

Do ponto de vista da fruição da leitura, os que tiverem acesso a este panorama, encontrarão poemas afinadíssimos com o spleen decadentista e simbolista, em que tudo são impressões de morte e sensualismo, num ambiente cercado de sombras, até mesmo na mais alva das manhãs recifenses. 

ADRIANA DÓRIA MATOS, editora-chefe da revista Continente.

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