Para o jornalista, crítico de cinema e professor do curso Curta Metragem Brasileiro: Presente, passado e futuro, do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS), Marcelo Lyra, o costume de criar filmes que são “porta de entrada” para um longa-metragem ainda existe. Mas, por vezes, são mais bem-sucedidos na experimentação e no conteúdo do que as obras de maior extensão. “O caso mais emblemático seria o de O pátio (1959), de Glauber Rocha, que é bem mais ousado que o longa-metragem de estreia dele, Barravento (1962)”, situa.
DE DENTRO DO NAVIO
No início do século 20, e nos anos anteriores, as obras cinematográficas eram simplesmente filmes, sem distinções por duração. “No começo do cinema, os filmes eram todos curtos”, explica Lyra. “Veja os de Georges Méliès ou de Thomas Edison. Da década de 1910 para frente é que o formato longo se firmou, mas as comédias chamadas ‘de dois rolos’ – de Chaplin, Gordo e o Magro, Comedy Caper –, eram comuns. Os cinemas passavam vários filmes curtos em conjunto e os dois formatos conviviam.”
Vale dizer que o começo de tudo no Brasil – ao menos aquele que é comumente analisado nos livros de história de cinema – foi somente um: junho de 1898, na Baía de Guanabara, a bordo do navio francês Brésil, quando Afonso Segreto, italiano radicado nos trópicos, registra com tecnologia recém-adquirida na Europa navios de guerra e fortalezas. Apesar de já terem acontecido outras gravações (inclusive nesse mesmo local, como atestam os fotogramas de movimentos de ondas datados do ano anterior) e exibições (essas apenas para uma restritíssima elite), é no navio em que Segreto estava que está o começo do nosso cinema – e, por consequência, do curta-metragem também.
Nos anos seguintes, com uma melhora significativa no fornecimento de energia elétrica para São Paulo e o Rio de Janeiro, uma boa quantidade de salas de cinema é aberta, e a produção se aquece. Em relativa sintonia com o que acontecia no resto do mundo, as primeiras produções brasileiras eram chamadas de naturais e consistiam em registros de acontecimentos mundanos, que, na época, causavam espanto pela novidade e, hoje, revelam-se fascinantes com suas pessoas e construções monocromáticas.
Cena do filme Arraial do Cabo. Foto: Reprodução
Em seguida, houve uma guinada às ficções – vale ressaltar, aliás, o hábito dos donos da sala de exibição de produzir obras que relatavam crimes famosos, como O crime da mala (1908) e Noivado de sangue (1909) – e ao cinema cantado, com atores que dublavam a si mesmos ao vivo por trás das telas; e também às adaptações literárias. Cinejornais aparecem em seguida, num novo hábito que levava o público a assistir notícias semanais na tela grande, já nesse momento recebendo a pejorativa alcunha de “cavações”, por se tratar de material encomendado, misturando jornalismo e propaganda.
Jean-Claude Bernardet sentencia, no livro Cinema brasileiro, propostas para uma história, que é impossível entender qualquer situação da história cinematográfica do país sem se dar conta da “presença maciça e agressiva do mercado estrangeiro por aqui”. Certeiro: em 1911, o Rio de Janeiro recebe a visita de representantes do cinema estadunidense, e herda o Cinema Avenida, primeira sala de exibição em que apenas filmes de uma produtora estrangeira – a Vitagraph – poderiam ser exibidos.
INTERVENÇÃO DE GETÚLIO
A década de 1930 será marcada pela interferência do governo getulista na produção cinematográfica. Em 1932, foi instituída a “taxa cinematográfica para a educação popular”, que tornava obrigatória a exibição do “complemento nacional” nos cinemas do país – o que acabou impulsionado a produção de curtas-metragens.
Essa política se intensifica dois anos mais tarde, com a criação do Ince, que propiciaria a Linduarte Noronha a câmera emprestada e a Humberto Mauro suas centenas de obras documentais. “Mauro já era um diretor de longas-metragens de ficção consagrado, com filmes como Sangue mineiro e Ganga bruta, quando foi contratado, em 1936, pelo Ince”, ressalta Marcelo Lyra. “Seu estilo influenciou várias gerações de documentaristas brasileiros, dentro da clássica estrutura de um narrador que tudo sabe e explica aos espectadores.”
Entre os anos 1930 e a década de 1970, a maioria dos curtas-metragens produzidos no país era composta de cinejornais e documentários, com poucas fugas para ficção (como o divertido A velha a fiar, de Humberto Mauro, produzido no início de 1960).
Para Marcelo Lyra, o curta O pátio (1959), de Glauber Rocha, é mais ousado que o seu longa de estreia, Barravento (1962). Foto: Reprodução
Essa limitação estilística e temática do curta-metragem do período – que chegou a estigmatizar a bitola – só começou a se diversificar com a chegada de equipamentos mais leves, e pela influência estética e ideológica do Cinema Novo, marcado que foi pela luz estourada das filmagens no semiárido paraibano.
COMO NA POESIA
“Acho que não podemos pensar no curta-metragem como no passado. A maneira como as pessoas assistem e interagem com os filmes é diferente, essa geração que cresceu com a internet tem outros anseios e demandas”, opina Mauricio Osaki, cineasta paulista que dirigiu O caminhão do meu pai, curta-metragem que esteve entre os 10 pré-selecionados para o 87º prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, o Oscar. “Vejo um pouco como na poesia, em que a geração modernista conseguiu decifrar o que estava ocorrendo, e a poesia do Drummond, por exemplo, pode ser lida em algumas linhas, e ainda assim ter um impacto enorme. Não estou falando que os filmes precisam ser cada vez mais curtos, mas que ainda estamos decifrando como essa geração se relaciona com o cinema.” Maurício ressalta que as possibilidades de circulação para curtas nunca foram tão grandes e que há motivos para otimismo.
Esse panorama atual positivo, com festivais consagrados e novos, divulgação pela internet e uma imensa facilidade de produção, em comparação às décadas passadas, existe por causa das iniciativas do passado. Os pioneiros, por exemplo, foram o Festival de Cinema Amador, do Rio de Janeiro, e as Jornadas Brasileiras de Curtas-Metragens, em Salvador, iniciados em 1965 e 1972, respectivamente.
Foi em uma das Jornadas, inclusive, que Associação Brasileira de Documentaristas (ABD) tomou corpo (com esse nome herdado das consequências das medidas tomadas na década de 1930). O resultado mais importante da iniciativa foi uma assembleia em 1979, no Teatro Dulcina, no Rio: realizadores, associados e exibidores discutiram e decidiram – finalmente – fazer cumprir da Lei do Curta, que obrigava a exibição de um curta-metragem nacional antes dos longas estrangeiros. A medida foi regulada pelo Concine (Conselho Nacional de Cinema), órgão gestor do cinema nacional que, agregado à Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S/A), substituiu um vácuo deixado pelo Ince, em 1966.
LEI DO CURTA
Com a Lei do Curta estendida para todo o país, o curta-metragem brasileiro vive, no fim da década de 1980, o que ficou conhecido como a sua primavera: cada vez mais festivais abrigam o formato, obras aclamadas eram produzidas pelo país e os filmes exibidos antes das sessões possuíam, por um curto período, qualidade atestada por juri selecionado. O coroamento desses dias bons vem com o prêmio de melhor curta-metragem no Festival de Berlim para Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, possivelmente o mais conhecido curta brasileiro.
Mas, a partir da década de 1990, a lei não resiste às medidas do governo Collor, à fiscalização inoperante, nem às ambições financeiras dos donos das salas de cinema. “Como a lei permitia que os produtores dos curtas exibidos antes do longa ficassem com um percentual da bilheteria, muitos donos de cinema começaram a produzir curtas sem nenhum critério”, lembra o jornalista Marcelo Lyra, em referência aos 5% de lucro divididos entre distribuidor, produtor e exibidor. “Eles ligavam a câmera e filmavam qualquer coisa para exibir antes dos longas. Claro que o resultado eram filmes insuportáveis, que afastavam o público. Muita gente entrava atrasada nas sessões para perder ‘aquela coisa chata que passa antes’.”
A carência de recursos e subsídios estatais, com as medidas de Collor, provocou uma instabilidade grande nas produções profissionais: existiam poucos lugares de veiculação e a produção diminuiu muito, sendo mantida basicamente pelas escolas de cinema – USP, FAAP e UFF – que conseguiram produzir obras consistentes, como Juvenília (1994), de Paulo Sacramento.
Segundo a Enciclopédia do Cinema Brasileiro, de Fernão Ramos, no fim da década de 1990 eram produzidos uma média de 80 curtas por ano, enquanto na década anterior era de 120. Apesar da queda, um dos mais importantes difusores do formato é criado no início da crise: o Festival Internacional de Curtas de São Paulo. Ele foi embrionado na mostra 80 curtas dos anos 80, do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS), e ambas as mostras foram idealizadas pela produtora Zita Carvalhosa, uma das fundadoras da Cinematográfica Superfilmes e das principais divulgadoras do curta-metragem no Brasil.
O caminho do pai, obra do cineasta paulista Maurício Osaki, esteve entre os 10 pré-selecionados para o Oscar. Foto: Divulgação
“No ano em que o festival começou, houve a redução de atividades do cinema nacional”, lembra Zita. “A gente fez a primeira mostra e ousou fazer o festival; ele acabou se tornando um local de resistência numa época em que o cinema nacional estava desestruturado.” Mesmo com a produção em baixa, o público persistia: houve fila para entrar desde o primeiro ano, e rapidamente a demanda exigiu que parte da programação fosse realizada também fora do museu. “A recepção foi muito boa desde o começo. Nós fazíamos uma curadoria de filmes internacionais, mas exibíamos todos os curtas brasileiros produzidos no ano, desde que finalizados em película. A intenção era valorizar o curta-metragem e também fazer uma reserva de mercado que achávamos importante.” Somente com a abertura do cinema digital, o festival passou a realizar seleção, um processo árduo de fazer recortes e criar programações em sintonia com as produções inscritas. É possível ter uma ideia do crescimento contínuo das produções nacionais, ao verificar que somente na última, de 2014, foram inscritas cerca de 600 produções nacionais. “E a gente sabe que nem todo curta produzido no país naquele ano é inscrito no festival.”
JANELAS DE EXIBIÇÃO
O presente é sempre mais turvo para ser analisado, mas algo parece concreto: a quantidade de janelas alternativas de exibição transformou a produção brasileira, que não mais depende exclusivamente de uma abertura do mercado para ser fomentada. Por seus prováveis menores custos, o formato curto é também atrativo para o cinema universitário, que, durante a década de 1990, foi responsável por manter ativa a produção brasileira.
O estudante de cinema Txai Ferraz, que, junto aos amigos Amanda Beça, Vinícius Gouveia e Thaís Vidal, idealizou o MOV – Festival de Cinema Universitário de Pernambuco, diz que, mesmo com um circuito de festivais, canais de televisão e internet, o percurso de um curta acaba se encerrando num público restrito, salvo exceções.
“Seria desejável que o curta pudesse voltar ao circuito comercial, mas penso que as atuações das esferas estatais são mais interessantes, garantindo que a produção exista ao invés interferir na programação em si”, opina. “Existem curtas que possuem uma trajetória única, e acabam sendo assistidos por um público muito amplo, pois são bem-divulgados na internet e bem-pautados pelo jornalismo. Um caso interessante é o Eu não quero voltar sozinho (2010), que faz sucesso no YouTube e vira um longa premiado a partir disso. Mas isso é raro.”
De 1989, o curta Ilha das Flores, de Jorge Furtado, coroa um momento conhecido como "primavera" do curta nacional. Foto: Carlos Gerbase/Divulgação
Para Marcelo Lyra, a volta da exibição do formato curto antes dos longas poderia ser interessante, desde que realizado sob “um bom critério de seleção” (para evitar traumas no público semelhante ao ocorrido na década de 1980).
“No formato curto, é possível ser mais ousado que numa produção longa, que envolve mais custos e esforço. Mas também não dá para generalizar, há mais de mil curtas sendo feitos por ano no país, nos mais diferentes estilos, dos ousados e experimentais aos que costumo chamar de longuinhas – ou seja, curtas que já tem cara de longa, no sentido de contar um pedaço de uma história, todo certinho, careta até. Raramente vejo algo que gosto nos longuinhas. Se o cara não ousar no curta, vai ousar onde?”, questiona.
O cineasta Maurício Osaki lembra que as trajetórias de filmes longos enfrentam pressões e lógicas distintas, portanto, não devem ser medidos sob a mesma ótica. “Acho que o curta-metragem oferece muitas possibilidades, e, claro, com custos infinitamente menores, há uma produção maior e mais diversidade. Nesse universo, é possível encontrar de tudo. Um fato novo é que o longa-metragem não é um objetivo final, como acho que era no passado. Hoje, há muitas possibilidades para os realizadores se expressarem e viverem”, assegura, citando formatos como programas seriados e novas linguagens para a internet.
No Brasil, atualmente, existe o site Porta Curtas, com um vasto acervo de obras do país, e o canal Curta!, dedicado à exibição do formato, além de festivais ao longo do ano. “O Brasil tem uma extensa, diversa e forte produção de filmes em curta-metragem e é impressionante que, em números, não ficamos tão atrás de países como a França e mesmo os Estados Unidos. O que acontece, ainda, é que não temos uma indústria totalmente consolidada e organizada, de forma que a falta de continuidade e dificuldades de produção acabam minando muitas carreiras promissoras”, lamenta Osaki, que afirma, porém: “O curta-metragem continuará muito vivo. E diverso”. E cada vez mais difícil de categorizar.
LAÍS ARAÚJO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.