CONTINENTE Há uma afirmação peremptória logo no início do livro: Mário de Andrade seria a figura central na vida intelectual do país entre os anos de 1917 e 1937. Uma declaração assim chama a atenção porque “vida intelectual” vai além dos limites do pensamento estético e artístico. O alcance e a influência da Semana de Arte Moderna é o que justificaria essa centralidade?
EDUARDO JARDIM Não apenas a influência da Semana. Mário de Andrade foi o vulto intelectual mais importante do Brasil no século 20. Ele morreu muito cedo, com 51 anos, mas é impressionante a gama de suas atividades. Ele é um escritor plural, escreveu em todos os gêneros, para públicos diferentes; é um intérprete do Brasil. Seu retrato dessa terra comporta múltiplos aspectos, com destaque para o cultural. Ele tinha um plano de construção do país que passava pela reforma da cultura. Essa reforma exigia levar em conta a contribuição de todos os setores da sociedade – os letrados e iletrados, a cultura escolar tradicional e a popular, os traços nacionais e não nacionais. Sua visão do Brasil era poliédrica, com elementos contrastantes. Esse projeto se frustrou – foi vencido por uma orientação autoritária muito mais forte.
CONTINENTE Qual foi a relação de Mário com Graça Aranha e como se deu a substituição de liderança dentro do movimento?
EDUARDO JARDIM Graça Aranha publicou, em 1921, A estética da vida. Sua importância para o Modernismo tem várias facetas. Foi um animador da Semana e das primeiras publicações do movimento. Mereceu a consideração do grupo paulista até 1924. A virada nacionalista de 1924 teve um sentido muito próximo do que defendeu o escritor no capítulo A metafísica brasileira, do livro de 1921. Todos defendiam que modernizar significava afirmar o caráter nacional e, com isso, assegurava-se a entrada no universo moderno. A disputa de Mário de Andrade com Graça Aranha pela liderança foi vencida pelo primeiro. Desde então, a contribuição de Graça tem sido subestimada, o que é uma pena. A consideração da figura desse autor deverá situar o Modernismo em uma linhagem do pensamento brasileiro que se iniciou no século 19. Graça Aranha foi um defensor de uma abordagem intuitiva e sentida da realidade, da mesma forma como foram Oswald de Andrade e a chamada ala direita modernista.
Mário de Andrade. Imagem: Reprodução
CONTINENTE É possível afirmar que Mário de Andrade construiu uma filosofia da arte ou um pensamento estético próprio?
EDUARDO JARDIM Próprio, porque muito pessoal. Mas o pensamento estético de Mário tem muitas fontes: as vanguardas do início do século em diversas direções, a antropologia de orientação evolucionista, os estudos de folclore, um vago conhecimento da sociologia, o pensamento dos filósofos católicos, como Jacques Maritain. Mário de Andrade valorizava a cultura filosófica e procurou ler muita coisa de filosofia e história da arte. No final dos anos 1930, teve oportunidade de intensificar seus estudos, quando foi professor da Universidade do Distrito Federal. Ele fazia críticas à insuficiência da formação teórica dos escritores. Essa foi uma batalha que travou em vários momentos.
CONTINENTE Em seu livro, a complexa personalidade artística e intelectual de Mário de Andrade é desenhada a partir de jogos de contrários: impulso lírico vs. inteligência crítica, nacional vs. universal, erudito vs. popular, arte social vs. individualismo romântico, sensual vs. espiritual etc. Estaria nessa complexidade e nas contradições do seu temperamento a riqueza maior da sua obra e de sua experiência vital?
EDUARDO JARDIM Certamente. Toda a riqueza da obra e a força da personalidade de Mário de Andrade se devem a esse convívio intenso com tendências em confronto. O confronto teve várias formas, desde suas ideias sobre estética e sobre o conceito de arte social até o drama existencial. Nesse aspecto, Mário se via dividido entre a vida de baixo – sensual e instintiva – e a vida de cima, com suas exigências intelectuais e morais. O único momento em que Mário parece ter “resolvido” seus dilemas foi nos anos 1940, ao adotar uma posição sectária do ponto de vista político, em um exacerbado ativismo. Mas nunca fez nada de relevante nessa direção, nem mesmo se manteve nessa posição, já que seu verdadeiro testamento é o poema A meditação sobre o Tietê, marcado por todo tipo de contradições.
CONTINENTE Mário de Andrade teria sido quem, em sua opinião, melhor formulou a doutrina moderna no país. Contudo, ele sentiu uma profunda angústia por ver o movimento afastado da função social da arte. Qual o lugar da política e da ideologia na vida e no pensamento do escritor?
EDUARDO JARDIM Ele sempre deu muita importância à dimensão social da arte. Antes mesmo de formular uma doutrina a esse respeito, já nos textos dos anos 1920, era claro para ele que a arte tinha que servir a um interesse coletivo. Também isso era vivido por ele de forma contraditória, já que havia ao mesmo tempo um individualismo feroz em sua personalidade. Mário pôs suas ideias em prática, na vida pública, quando ocupou o cargo de diretor do Departamento de Cultura, de 1935 a 1938. Formulou, então, um plano de reforma cultural com um sentido antiautoritário, centrado no conceito de expansão cultural. Esse plano foi interrompido pelo Estado Novo. O golpe que Mário de Andrade sofreu foi enorme e dele o escritor não se recuperou. Nos anos seguintes, desde a ida para o Rio, ele radicalizou suas posições políticas. Isso se deveu, em parte, à proximidade com os jovens amigos cariocas ligados ao comunismo. Mas é mais importante lembrar que esse radicalismo correspondeu à frustração com a saída do Departamento, quando um projeto com um sentido social foi barrado pela ditadura.
Gilberto Freyre. Foto: Reprodução
CONTINENTE Apesar do interesse geral no Brasil e no tema da identidade nacional, o Mário que emerge de sua obra é fortemente “paulistocêntrico”. Você concorda com isso?
EDUARDO JARDIM Gostei de “paulistocêntrico”, vou adotar o termo e rejeitar sua opinião. Acho que o movimento modernista só poderia ter mesmo eclodido em São Paulo, como, aliás, o próprio Mário sublinhou na conferência de 1942, O movimento modernista. Do ponto de vista doutrinário, ele nunca concordou com a ideia de uma superioridade de São Paulo ou de qualquer parte do Brasil sobre as outras. Ele tinha uma visão do país diversificado, porém unido, e sempre brigou por essa ideia. Para o Modernismo, superar as barreiras regionais ou outras era um princípio de que não se podia abrir mão. Daí também a divergência com Gilberto Freyre e seu regionalismo. Como carioca, divirto-me muito com a implicância de Mário com minha cidade. Ele achava que os cariocas não tinham consistência moral e que o inferno era o Rio de Janeiro, não com seu um milhão de cariocas, mas com 10 milhões de cariocas!
CONTINENTE Por que o escritor fracassou em seu projeto principal?
EDUARDO JARDIM Mário de Andrade passou os primeiros anos da década de 1930, quando completou 40 anos, muito infeliz e desorientado. Quando foi chamado para ser diretor do Departamento de Cultura, viu nisso a realização da sua vocação intelectual. Para ele, não era preciso apenas pensar a arte com toda sua força vital e coletiva. A arte deveria efetivamente ser transformada em elemento constitutivo da existência de cada um. Esse sonho de Mário de Andrade nunca se realizou e ele experimentou seu fracasso. É verdade que o “fracasso” do seu projeto não foi só dele, mas de um movimento que, de dentro do Modernismo, questionava as suas próprias bases. Quem hoje em dia aposta ainda nessas ideias?
CONTINENTE Segundo você, “A beleza da obra de Mário permanece, mas já não somos seus contemporâneos”. Depois de 70 anos do seu desaparecimento, o que fica da obra artística e do pensamento de Mário de Andrade?
EDUARDO JARDIM Todo mundo ainda se comove com a leitura de Macunaíma, que já inspirou tanta coisa – teatro, cinema e até escola de samba. Os contos de Mário de Andrade são dos melhores da nossa literatura. Mesmo sua poesia, tão pouco considerada, tem momentos especiais, como Rito do irmão pequeno, poema dedicado ao amigo Manuel Bandeira. Também os ensaios têm observações atualíssimas, como o que fez sobre o Aleijadinho. Porém, do ponto de vista do projeto mais amplo, o Modernismo se encerrou. Nosso horizonte histórico é muito diferente do seu. Mesmo conceitos como os de nacional e de povo ou a visão do papel vanguardista do intelectual perderam sentido nos nossos dias. O último momento em que o Modernismo ainda foi uma força viva foi nos anos 1960, com o Tropicalismo, o Teatro Oficina, Terra em transe, de Glauber Rocha. Hoje, já vemos o Modernismo a certa distância, e isso possivelmente sustenta nossa apreciação do movimento. Por esse motivo, acho que toda tentativa de fazer “reviver” Mário de Andrade ou o Modernismo é bastante equivocada. Temos que medir a distância que nos separa desse movimento. Ele continua sendo nossa mais importante referência na história intelectual do país, mas devemos avaliá-lo criticamente.
EDUARDO CÉSAR MAIA, jornalista, doutor em Teoria da Literatura.