Tequila, a 65 km de Guadalajara, é patrimônio da humanidade pela Unesco desde 2006 e um pueblo mágico – assim classificada pelo governo federal por manter a memória e o costume locais como ferramenta para catalisar a cadeia turística. “Jalisco foi o primeiro estado do México a ter cinco pueblos mágicos, que são Tequila, Mazamitla, Amatitan, San Sebastian del Oeste e Lagos de Moreno. De todos esses, Tequila é o que possui a maior força no turismo cultural, com seus passeios que saem pelos campos de agave para mostrar como a bebida é feita. Chegamos a receber mais de 5 mil turistas por mês”, explica Enrique Ramos, secretário estadual de Turismo de Jalisco.
À Continente, ele acrescenta que a indústria “do tequila” – lá, a bebida assume outro gênero para diferenciá-la da cidade e passa a ser tratada por el tequila – é a “mais crescente e mais importante” do estado. “Temos muitas empresas de tecnologia também e sete das mais importantes universidades, o que faz de Jalisco o ‘Sillicon Valley’ do México, mas é do tequila que vem cerca de 12 a 13% do PIB do estado”, detalha Enrique Ramos. Estados Unidos, Canadá e França são os países que mais enviam turistas para o Vale do Tequila. Os brasileiros têm se animado cada vez mais. “Em 2008, 77 mil brasileiros vieram ao México. Em 2014, esse número saltou para 309 mil. Ainda houve um aumento de 16% no fluxo de turistas brasileiros de 2013 para 2014. Percebemos que os brasileiros, embora sempre mais interessados nas praias, já buscam outros segmentos, como o turismo religioso, a arquitetura e a rota do tequila”, pontua Diana Pomar, do Conselho de Promoção Turística do México.
Empresas produtoras promovem a "rota da tequila".
Foto: Luciana Veras
Vivenciar a “rota da tequila” é compreender que os mexicanos se repartem entre a tradição que cultuam e cultivam e a necessidade de modernizar os processos para dar mais visibilidade (e, por conseguinte, extrair mais retorno financeiro) a essa tradição. Tome-se como exemplo a Jose Cuervo, uma das mais conhecidas fabricantes do destilado. Criada em 1758, ainda sob o domínio espanhol, recebeu, em 1795, a permissão para comercializar a tequila. Possui 48 mil hectares de terras e ainda subloca propriedades em estados vizinhos, de modo que 70% de sua produção decorrem dos seus campos de agave e, o restante, dos produtores independentes. Seu rótulo é uma grife, suas garrafas, um mimo mais caro. Se o visitante houver escolhido a experiência Mundo Cuervo, terá vindo de trem de Guadalajara – um expresso descrito pela própria empresa como “clássico e luxuoso” – e chegado a La Rojeña, a destilaria mais antiga da América Latina, em um ritual pomposo e elitizado.
O que, por sua vez, contrasta em tudo com a árdua colheita do agave, feita, na prática, não pelos simpáticos funcionários que recepcionam os turistas, mas por jimadores, como Ismael Gama. Há 48 anos empregado da Jose Cuervo – “Meu avô, meu papai e meus dois irmãos mais velhos eram jimadores, então cá estou” –, ele poderia ser confundido com um boiadeiro no Brasil. Maneja dois machetes – um menor, outro gigante – com destreza para desenterrar a pinha, a parte da planta que importa para a feitura da bebida. É um trabalho de força e delicadeza ao mesmo tempo, e de paciência também: somente após sete a 10 anos é que o agave pode ser colhido. O serviço de Ismael consiste em “deixar as pinhas livres das pencas”, como destaca Juan Pablo Ramirez, que atua como uma espécie de mestre de cerimônias, no campo e também na destilaria Jose Cuervo.
Jimadores desenterram a pinha do agave. Foto: CPTM/Ricardo Espinosa - Reo/Divulgação
Cada 7 kg de pinha rende um litro de tequila. “As pinhas geralmente têm entre 40 kg e 50 kg, o que dá aproximadamente sete litros da bebida”, situa Ramirez. Na Jose Cuervo, existem 140 jimadores; Ismael supervisiona uma equipe de 12 pessoas e encara uma jornada de oito horas diárias, mas não prova do líquido cuja fama ajuda a alastrar. “Não bebo, não tomei nunca”, diz. Não deixa de ser uma ironia, ainda mais quando se descobre que a La Rojeña produz até 50 mil litros de tequila por dia, em um roteiro que começa com a chegada das toneladas de pinhas cortadas pelos jimadores e levadas a um dos 16 fornos para a primeira etapa da fermentação. É quase como se fossem dois mundos distintos: Ismael, pai de 15 filhos, dos quais três já seguem sua profissão, e sua maestria na imensidão dos campos de agave, e a destilaria, onde o aspecto artesanal divide espaço com a indústria e o consumo.
La Rojeña recebe o visitante com corvos em todos os lugares. Óbvio que existe uma loja onde se vendem camisas, chaveiros, lápis e outros bibelôs com a marca do animal eternizado por Edgar Allan Poe – e onde se gasta dinheiro, pois isso também faz parte do ritual consumista. Mas o passeio guiado é bem interessante, não se pode negar. É curioso aprender, por exemplo, que o mezcal, outra bebida típica do México, nasce do agave verde na região de Oaxaca, que o processo de fermentação dura de 50 a 60 horas e que o líquido resultante da etapa inicial, a de fervura, é chamado de mosto. “O vinho do agave é fermentado duas vezes até se formar o tequila”, ensina Juan Pablo. Em seguida, há um novo processo de destilação, de onde surge a tequila blanco com impressionantes 55% de teor alcoólico. “Mas não podemos vendê-la no México, pois existe uma lei que proíbe a venda de tequila com mais de 45%. Essa é feita para exportação”, complementa o mestre de cerimônias da Jose Cuervo.
Barris de madeira armazenam as várias classes da bebida.
Foto: CPTM/Ricardo Espinosa - Reo/Divulgação
A lição se completa durante uma degustação em meio a centenas de barris de madeira. Existem duas categorias de tequila – uma que é 100% feita de agave e outra com “apenas” 51% da planta azul (o resto é preenchido com destilado de cana, ou seja, algo similar à cachaça tupiniquim), que é destinada para coquetelaria. Há também cinco classes – joven, blanco, reposado, añejo e extra-añejo. Joven é a mescla das duas categorias. Blanco é submetida a um período de 15 dias a um mês de maturação no barril; na reposado, esse tempo é de dois meses a um ano. Añejo fica até três anos em contato com o barril e a extra-añejo, de três a sete anos.
Melhor de tudo é perceber, depois de um dia em Tequila, que boa parte do que você ousava imaginar (e acreditava saber) sobre essa entidade etílica mexicana estava errada. Não há nada mais inadequado do que o arriba, abajo, al centro & adentro. A forma correta de degustar, ensinam os mestres da Jose Cuervo, é ir bebericando aos poucos, deixando o líquido acender as papilas gustativas da língua e escorrer para dar o calientito no estômago. De uma próxima vez, experimente assim. O perigo é não conseguir parar.
LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.