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“O passado é uma arma muito valorizada”

Historiador e escritor argentino Felipe Pigna critica a manipulação e descontextualização do ensino dos fatos históricos, encapsulando a disciplina apenas como conteúdo do Ensino Fundamental

TEXTO Mariana Camaroti

01 de Março de 2015

Felipe Pigna

Felipe Pigna

Foto Mariana Camaroti

Há 10 anos, o historiador e escritor argentino Felipe Pigna, 55 anos, lançava o primeiro livro da série Los mitos de la história argentina e, com ele, começava a aproximar a História da população. Daí em diante, cada vez que ele lança um livro – a série está em seu quinto volume –, entra na lista dos mais vendidos, com destaque nas livrarias e mãos de leitores em transportes públicos. Um fenômeno. Os argentinos, conhecidos pela sua tradição de leitura, se voltaram à história do país depois da crise de 2001. O desconforto de Pigna pela maneira como os fatos nacionais foram manipulados o levou a uma abordagem diferente da narrativa oficial, desenvolvida para que pudesse chegar às pessoas, sobretudo através dos meios de comunicação. Pigna está à frente de programas de televisão – chegando a 25 pontos de audiência em horário nobre –, de rádio, histórias em quadrinhos, revista e uma página no Facebook com quase meio milhão de fãs. Entre seus best-sellers, figuram 1810 – la outra historia de nuestra revolución fundadora (2010), a biografia Evita – jirones de su vida (2012) e Mujeres tenían que ser – historias de nuestras desobedientes, incorrecias, rebeldes e luchadoras, desde los orígenes hasta 1930 (2012), afora a popularíssima série dos mitos locais citada anteriormente.

CONTINENTE Você foi além das salas de aula e aproximou a história argentina dos próprios argentinos, através de livros, programas de rádio e TV, e meios impressos como revistas e histórias em quadrinhos. Qual era o seu objetivo com a apropriação dessas mídias?
FELIPE PIGNA Como tenho muitos anos de ensino, sentia os déficits que havia no conhecimento da história argentina. Assim como acontece em muitos lugares da América Latina, a nossa história havia sido contada pelo poder, como uma garantia de continuidade do status quo. Uma ideia de que existiam seres sobrenaturais ou imaculados que controlavam a política e que o resto deveria estar subordinado a eles. Pouca contextualização, uma história política isolada, importando apenas o que acontecia no nível local, sem mostrar o que acontecia no mundo e na América Latina. Tudo isso provocava um tédio, afastando as pessoas da História, uma matéria sem graça e sem nenhuma utilidade. Por outro lado, havia a aceitação do presente a partir de um condicionamento do passado. Como dizia (George) Orwell, “quem controla o passado, controla o presente; quem controla o presente, controla o passado”. O passado é uma arma muito valorizada, é o relato justificatório do presente, portanto, em geral, os poderosos tiveram muito cuidado com a História, relatando-a como proprietários não apenas das terras e dos meios de produção, mas também do passado. Com famílias formadoras da nacionalidade, excluindo a chamada classe subalterna.

CONTINENTE Como se esses subalternos não houvessem participado da História.
FELIPE PIGNA Exatamente. Mas, então, por quem os exércitos estavam integrados? Quem realizou as obras que construíram os países? Por isso se diz que fulano construiu tal coisa, beltrano venceu tal batalha, sem reconhecer todo o componente humano que havia atrás disso. Então, meu objetivo foi dar visibilidade aos invisíveis e uma lógica à História, porque, na verdade, era uma narrativa totalmente sem lógica, sem explicar a razão de acontecimentos na América Latina. Por que o que aconteceu na região desencadeou um processo de independência ao redor de 1810? O que estava se passando na Europa? Sem esse contexto básico, não se entende o passado. Nesse sentido, havia muito para analisar e busquei aproximar esses acontecimentos remotos das pessoas, porque são patrimônio coletivo, não existe um dono da História. As pessoas devem saber o que lhes antecedeu.

CONTINENTE A História está malcontada, portanto.
FELIPE PIGNA Muito malcontada, por uma operação política, não por acidente. É um fenômeno que acontece no mundo todo. Os negros não existiram na história americana, uma história de brancos, na qual se diz muito sutilmente “foi decretada a igualdade de direitos entre as pessoas, com exceção de algumas…”, ou seja, dois milhões de escravos, que só vão ter gradualmente sua liberdade na década de 1860, num país fundado em 1776. Instala-se uma lógica de poder na qual as pessoas vão aceitando esses sinais da submissão e soa lógico que um país se declare independente e que transcorram quase 100 anos até que uma parte importantíssima da população possa ter seu direito mínimo, o de ser livre, que, com certeza, não é assim porque a liberdade outorgada aos escravos é de um nível de inferioridade tão grande, que eles continuarão sendo subordinados e pobres por gerações, como aconteceu no Brasil. Às vezes, toma-se a história declamatória como se a declamação e a proclamação provocassem uma imediata liberdade do povo. Como na Revolução Francesa, que foi puramente declamatória. O lema da “liberdade, igualdade e fraternidade” não teve um efeito imediato nos setores populares, porque a desigualdade está estabelecida quando a liberdade é proclamada. É quase uma armadilha que a burguesia lança, usando as classes chamadas subalternas para promover sua ascensão.

CONTINENTE Como no Brasil, quando o Imperador Dom Pedro I proclama a independência do país.
FELIPE PIGNA Isso, porque convinha a toda uma classe que o apoiava. Portanto, é fundamental a perda da inocência, que nós comecemos a perceber que a História é política, que a matéria-prima dessa área do conhecimento são a economia e a política e que, sendo assim, não pode haver inocência na sua leitura. Todo acontecimento é intencional, histórico e político; negociações, decisões que implicam pessoas que vão se salvar, outras que vão desaparecer, umas que estarão submetidas, outras que vão melhorar de vida. É a luta permanente da História, a base de sua dinâmica.


Foto: Divulgação

CONTINENTE Os latino-americanos se conhecem dentro dessa perspectiva?
FELIPE PIGNA Estamos começando a nos conhecer mais. A ascensão da esquerda praticamente em toda a América Latina no início do século 21 motivou as pessoas a buscarem esse conhecimento. A ideia de cidadania e de passar a fazer parte dela vem acompanhada da identidade e do desejo de responder à questão: Quem sou eu? A direita nunca se preocupou com que os indivíduos tomassem posse da própria história, mas que conhecessem a “história-poder”, que de alguma maneira garante a continuidade do status quo.

CONTINENTE Em que sentido a existência de democracias fraudulentas e ditaduras, como você se refere em seus livros, influenciaram a falta de conhecimento dessa história real?
FELIPE PIGNA Impressiona, quando a gente constata essa história construída pelas democracias fraudulentas e ditaduras. É uma falsificação. Mentiram descaradamente para nós e ocultaram documentos fundamentais, e ocultar é mentir. Com essa ideia de que se as pessoas não sabem, continuam vivendo numa espécie de limbo e, portanto, não conectam passado e presente. Parte do negócio das ditaduras era cortar a conexão entre passado e presente. Uma das obsessões da direita é cortar esses vínculos.

CONTINENTE Quais os prejuízos de desconhecer a história real?
FELIPE PIGNA Conhecer a verdade permite questionar.

CONTINENTE Na escola, as crianças aprendem a História baseada em datas, elites e heróis. Por que esse modelo se perpetua?
FELIPE PIGNA Ele só se sustenta se for acompanhado de uma lógica interna. Conhecer heróis em si não é um problema, mas é importante saber que a História não é feita de individualidades, que existem contextos, um país e um povo por trás. É preciso que o conhecimento dessa área deixe de remeter ao Ensino Fundamental, como acontece com muitos adultos hoje. Porque se trata da nossa vida, do nosso país, não se trata de algo que diz respeito à “escola”. Restringir a compreensão da História aos estudos que adquirimos nos primeiros anos de ensino é uma deturpação habilmente construída por essa história-poder. Tornar o assunto maçante e desinteressante, restrito quase às recordações infantis, encapsula esse campo à fase pueril da vida e faz com que associemos os fatos ocorridos aos contos de mocinho e bandido.

CONTINENTE A História se torna, assim, desvinculada da política?
FELIPE PIGNA Totalmente. Além do mais, acusam-nos de politizar a História. É ridículo. É como acusar alguém de matematizar a geometria. Óbvio, sem matemática não existe geometria; sem política não existe história. De que vou falar, se não falo de política quando se trata de história e se eu não der um sentido político a ela? Tudo foi política, do contrário não é História. Esvaziá-la da sua política é transformá-la em um conto estúpido.

CONTINENTE Você mantém programas em canais de televisão pública. De que maneira o atual governo argentino fomenta essa revisão da História?
FELIPE PIGNA Um exemplo desse esforço, creio, é o canal de documentários Encuentro, de alta qualidade, para o qual trabalho. Nele se produzem programas com uma visão local, falando do que nos importa. A América Latina precisa olhar para si mesma.

CONTINENTE Por que o Brasil sempre esteve mais afastado da América Latina?
FELIPE PIGNA Por vários fatores. O Brasil sempre acreditou ser uma potência e isso prejudicou sua conexão com a América Latina. Além disso, havia ameaças de invasões brasileiras aos países vizinhos. Situações muito diferentes. O Brasil não teve um processo independentista como o do restante da região. Não teve libertadores. Da própria questão portuguesa nascerá o Brasil, um caso endógamo, o que dificulta a integração.

CONTINENTE A esquerda que chegou ao poder na América Latina na década passada tem cumprido as expectativas ou traído as esperanças?
FELIPE PIGNA As esperanças são tão grandes, que é difícil cumprir todas as expectativas. São séculos de miséria e submissão e esses governos despertam nas pessoas o desejo de que todos os direitos sejam realizados. Cumprir todas as promessas é algo difícil, mas esses governos não podem falhar. Na Argentina, estamos julgando os criminosos da última ditadura, do franquismo. Algo inédito e admirável.

CONTINENTE De onde vem esse interesse dos argentinos pela História?
FELIPE PIGNA A Argentina chegou ao fundo do poço com a crise de 2001, o que não aconteceu com o Brasil, e começou a se perguntar por que quebrou, como chegou até ali. Três anos depois, saiu o primeiro livro da série Los mitos de la história argentina. Comecei a responder que isso não vinha da Era (Carlos) Menem (presidente de 1989 a 1999), vinha de muito antes; isso foi um divisor de águas. Depois o programa Algo habrán hecho teve um grande resultado (com 25 pontos de audiência no horário nobre de um canal privado) e despertou interesse nas pessoas pela área de conhecimento, incluindo os jovens.

CONTINENTE Qual é o seu próximo projeto?
FELIPE PIGNA Uma biografia sobre San Martín, para fazer justiça a esse homem (que, junto com Simón Bolívar, liderou a liberação da América do Sul) tratado tão injustamente, caluniado. Uma pessoa que entregou sua vida pelo país e viveu quase toda a existência no exílio. Depois disso, não tenho limites, há muita coisa que quero explorar, voltar à série Los mitos

MARIANA CAMAROTI, jornalista, radicada em Buenos Aires.

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