Era um mundo em que, por exemplo, não circulava dinheiro. Os camponeses trabalhavam em troca de alimentos, adquiridos no barracão da usina. Muitos morreram sem nunca colocar uma moeda no bolso. Sobre essa realidade, diz outro entrevistado do Palavra acesa, o economista e fundador da Liga Camponesa de Sapé, Francisco de Assis Lemos, preso e torturado depois do golpe militar de 1964: “A luta das Ligas Camponesas era para tirar o campo do sistema feudal para o capitalista. Mas os grandes proprietários de terra viviam dizendo que as ligas eram a favor do comunismo”.
Essa realidade impedia a cidade de crescer, gravitando eternamente ao redor dos interesses dos latifundiários, que, devido à extensão de suas terras, viviam em verdadeiros feudos e, da mesma forma que os senhores feudais, possuíam exércitos particulares, formados por capangas. Foi contra esse mundo que Elizabeth e João Pedro, apesar da grande desigualdade de forças, começaram a lutar. Um dos objetivos era a extinção do “cambão”, que no período medieval chamava-se “corveia” e consistia em dias de trabalho gratuitos nas terras do patrão. Outros alvos eram os instrumentos de tortura, como o “cobocó”, um tanque de água fria nos porões das usinas, responsável pela morte de muitos camponeses.
A arma escolhida para a luta foi a Associação dos Lavradores Agrícolas de Sapé, que ficaria conhecida como Liga Camponesa, em alusão à Liga do Engenho Galileia, de Vitória de Santo Antão, Pernambuco, fundada em 1955 e que, devido às conquistas obtidas, incentivou a criação de entidades em várias partes do país. Em 1959, estavam em 13 estados e, como este era o ano da Revolução Cubana, os camponeses brasileiros se viram no centro da Guerra Fria – o choque entre o capitalismo e o comunismo. Sintomáticas foram as idas de Edward Kennedy, irmão do presidente Kennedy, ao Engenho Galileia, e de Célia Guevara, mãe de Che Guevara, a Sapé.
Como Pernambuco e Paraíba foram os estados em que os camponeses mais se mobilizaram, nesses lugares a repressão foi mais radical. Quem falasse, por exemplo, em salário-mínimo e jornada de trabalho era comunista. Uma das primeiras vítimas foi João Pedro Teixeira, morto em emboscada, quando voltava para casa, depois de comprar livros para os filhos. O episódio teve repercussão internacional e virou tema do mais premiado documentário brasileiro, Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho.
Depois disso, a vida de Elizabeth – que, pela capacidade de superar adversidades, ganhou a denominação “mulher marcada para viver” – se tornou uma sucessão de tragédias. Deprimida com a morte do pai, uma filha se suicidou. Para intimidar sua ação sindical, capangas atiraram na cabeça de um filho de cinco anos, que ficou com problemas mentais. A violência contra ela e seus 11 filhos, que moravam na casa onde hoje funciona o Memorial da Liga Camponesa de Sapé, pode ser sintetizada num trecho da entrevista de uma filha, Maria José, ao Palavra acesa: “Os policiais chegaram a me colocar e as outras crianças numa fila para tocar fogo”.
O pior é que não existia a quem recorrer. Assim como a polícia, a imprensa e os poderes executivo, legislativo e judiciário – e até a igreja – integravam um sistema de forças voltado para servir aos poderosos. A situação piorou ainda mais com o golpe de 1964. Depois de ser presa e passar por uma série de perigos, ela se refugiou em São Rafael, Rio Grande do Norte, onde atuou como professora, sob o nome falso Marta Maria da Costa. Durante os 17 anos em que esteve escondida, os familiares, amigos e… inimigos pensaram que ela havia morrido.
Foi encontrada por Eduardo Coutinho, depois de muita procura, e reiniciaram, em 1984, as filmagens de Cabra marcado…, interrompidas pelos militares. Hoje, morando em João Pessoa, numa casa presenteada pelo cineasta, ela não perde oportunidade de retomar a velha luta, defendendo os direitos dos camponeses.
GILSON OLIVEIRA, jornalista, assessor de comunicação da Companhia Editora de Pernambuco.