Arquivo

Elizabeth Teixeira: Uma mulher corajosa

Viúva do trabalhador rural João Pedro Teixeira e protagonista do documentário 'Cabra marcado para morrer', de Eduardo Coutinho, ela é, hoje, símbolo da luta pela terra e pelos direitos humanos

TEXTO Gilson Oliveira

01 de Março de 2015

Elizabeth Teixeira

Elizabeth Teixeira

Foto Ivana Borges

Quem conheceu as atividades sindicais de Elizabeth Teixeira, que completou 90 anos em fevereiro, não tinha dúvida: assim como o marido, João Pedro Teixeira – dirigente da Liga Camponesa de Sapé, Paraíba, assassinado em 2 de abril de 1962 –, ela era uma pessoa marcada para morrer. A situação se agravou quando, pouco depois do crime, assumiu a presidência da entidade dos trabalhadores. Cumpria a promessa feita a João Pedro, diante de seu corpo ensanguentado: continuar a luta a favor dos camponeses que, durante séculos, viveram num regime de semiescravidão.

Nascida em Sapé, na Fazenda Anta do Sono, em 13 de fevereiro de 1925, Elizabeth veio ao mundo em “berço de ouro”, principalmente se comparada sua realidade com a dos filhos dos camponeses que moravam nos sítios das usinas, os quais, devido à situação de miséria, exploração e repressão em que viviam, muitas vezes se alimentavam apenas de farinha com água e, já na infância, tinham os corpos envelhecidos e magérrimos, com as vértebras aparecendo.

Muitas dessas crianças tiveram como berço a chamada “palha da cana”. É que suas mães, mesmo na iminência de parir, eram obrigadas a trabalhar e, na hora do parto, terminavam dando à luz em cima das folhas cortadas da cana-de-açúcar, às vezes ouvindo de um capanga da usina, montado em um cavalo e armado de rifle, frases do tipo: “Levanta, preguiçosa!”.

Filha de Emanuel Justino da Costa, grande proprietário de terras e comerciante, e Altina da Costa, um dos poucos problemas que Elizabeth enfrentava era o fato de o pai, analfabeto, achar que mulher aprender a ler e a escrever só tinha uma utilidade: fazer cartas para o namorado. As questões sociais, políticas e econômicas só a incomodariam tempos depois.

“Estudei apenas até a quarta série. Tirei o primeiro lugar e pedi para meu pai alugar uma casa em João Pessoa, para continuar estudando e me formar. Mas ele não fez, achava que eu já sabia o suficiente”, diz Elizabeth, na entrevista ao livro-DVD Palavra acesa – memórias da luta camponesa, organizado pelo autor deste texto e pelo jornalista Evaldo Costa. A obra também traz depoimentos de duas filhas e uma neta de Elizabeth, revelando experiências, opiniões e traumas de três gerações da família sobre episódios da história recente ainda pouco investigados.

Seu Emanuel aproveitou a matemática e o português da filha – mas, no “barracão”, o mercadinho da fazenda. Por ironia do destino, foi lá que ela começou a escrever cartas para o namorado. “João Pedro trabalhava numa pedreira, fazia a feira no barracão e começamos a namorar através de cartas. Um dia, ele me pediu em casamento, meu pai não aceitou de jeito nenhum e disse: ‘Minha filha casar com pobre, trabalhador de pedreira!’. Ele queria que eu casasse com um rapaz rico, e que fosse branco, não um negro”, relembra a sindicalista.

A solução foi fugir de casa, trocando, aos 17 anos, uma vida de conforto por outra, de necessidades e perigos. Depois de casar, sem o consentimento dos pais, Elizabeth e João Pedro foram morar em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco. Aí, ela, que sempre teve empregada, aprendeu, com o próprio marido, a fazer café, cozinhar e lavar roupa.

Empregado novamente em uma pedreira, João Pedro se revoltou com as injustiças sofridas pelos trabalhadores e fundou um sindicato, do qual foi o primeiro presidente. Logo foi demitido e, como as portas de todas as pedreiras se fecharam para ele, a família, já composta de vários filhos, começou a passar fome. Por insistência de um irmão de Elizabeth, voltaram a Sapé, para tomar conta de um sítio do seu pai.

Ela, na verdade, nunca mais voltou a Sapé, pelo menos à Sapé que conhecera, porque, pelo que já havia vivido e sofrido, mudara a forma de sentir e ver o mundo. Havia, inclusive, fortalecido a sensibilidade social e o senso de justiça. E o município, como toda a zona rural brasileira, parecia viver, em pleno século 20, na Idade Média europeia, com as relações sociais, as estruturas econômicas e de poder assemelhadas às do feudalismo.


Sindicalista guarda fotografia em que aparece ao lado de Eduardo Coutinho.
Foto: Ivana Borges

Era um mundo em que, por exemplo, não circulava dinheiro. Os camponeses trabalhavam em troca de alimentos, adquiridos no barracão da usina. Muitos morreram sem nunca colocar uma moeda no bolso. Sobre essa realidade, diz outro entrevistado do Palavra acesa, o economista e fundador da Liga Camponesa de Sapé, Francisco de Assis Lemos, preso e torturado depois do golpe militar de 1964: “A luta das Ligas Camponesas era para tirar o campo do sistema feudal para o capitalista. Mas os grandes proprietários de terra viviam dizendo que as ligas eram a favor do comunismo”.

Essa realidade impedia a cidade de crescer, gravitando eternamente ao redor dos interesses dos latifundiários, que, devido à extensão de suas terras, viviam em verdadeiros feudos e, da mesma forma que os senhores feudais, possuíam exércitos particulares, formados por capangas. Foi contra esse mundo que Elizabeth e João Pedro, apesar da grande desigualdade de forças, começaram a lutar. Um dos objetivos era a extinção do “cambão”, que no período medieval chamava-se “corveia” e consistia em dias de trabalho gratuitos nas terras do patrão. Outros alvos eram os instrumentos de tortura, como o “cobocó”, um tanque de água fria nos porões das usinas, responsável pela morte de muitos camponeses.

A arma escolhida para a luta foi a Associação dos Lavradores Agrícolas de Sapé, que ficaria conhecida como Liga Camponesa, em alusão à Liga do Engenho Galileia, de Vitória de Santo Antão, Pernambuco, fundada em 1955 e que, devido às conquistas obtidas, incentivou a criação de entidades em várias partes do país. Em 1959, estavam em 13 estados e, como este era o ano da Revolução Cubana, os camponeses brasileiros se viram no centro da Guerra Fria – o choque entre o capitalismo e o comunismo. Sintomáticas foram as idas de Edward Kennedy, irmão do presidente Kennedy, ao Engenho Galileia, e de Célia Guevara, mãe de Che Guevara, a Sapé.

Como Pernambuco e Paraíba foram os estados em que os camponeses mais se mobilizaram, nesses lugares a repressão foi mais radical. Quem falasse, por exemplo, em salário-mínimo e jornada de trabalho era comunista. Uma das primeiras vítimas foi João Pedro Teixeira, morto em emboscada, quando voltava para casa, depois de comprar livros para os filhos. O episódio teve repercussão internacional e virou tema do mais premiado documentário brasileiro, Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho.

Depois disso, a vida de Elizabeth – que, pela capacidade de superar adversidades, ganhou a denominação “mulher marcada para viver” – se tornou uma sucessão de tragédias. Deprimida com a morte do pai, uma filha se suicidou. Para intimidar sua ação sindical, capangas atiraram na cabeça de um filho de cinco anos, que ficou com problemas mentais. A violência contra ela e seus 11 filhos, que moravam na casa onde hoje funciona o Memorial da Liga Camponesa de Sapé, pode ser sintetizada num trecho da entrevista de uma filha, Maria José, ao Palavra acesa: “Os policiais chegaram a me colocar e as outras crianças numa fila para tocar fogo”.

O pior é que não existia a quem recorrer. Assim como a polícia, a imprensa e os poderes executivo, legislativo e judiciário – e até a igreja – integravam um sistema de forças voltado para servir aos poderosos. A situação piorou ainda mais com o golpe de 1964. Depois de ser presa e passar por uma série de perigos, ela se refugiou em São Rafael, Rio Grande do Norte, onde atuou como professora, sob o nome falso Marta Maria da Costa. Durante os 17 anos em que esteve escondida, os familiares, amigos e… inimigos pensaram que ela havia morrido.

Foi encontrada por Eduardo Coutinho, depois de muita procura, e reiniciaram, em 1984, as filmagens de Cabra marcado…, interrompidas pelos militares. Hoje, morando em João Pessoa, numa casa presenteada pelo cineasta, ela não perde oportunidade de retomar a velha luta, defendendo os direitos dos camponeses. 

GILSON OLIVEIRA, jornalista, assessor de comunicação da Companhia Editora de Pernambuco.

veja também

Artes cênicas: Uma rede que traga mais público

Intimidade e guerrilha em um teatro de portas abertas

O que sobrou da política de boa vizinhança