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Web: O humor nos tempos da rede

A comicidade irrestrita, produzida, consumida e distribuída na internet, torna-se o maior vetor para a comunicação da atual geração, além de controverso veículo para a transmissão subliminar

TEXTO Débora Nascimento

01 de Dezembro de 2014

Ilustração Cau Gomez

Um garoto judeu, residente em São Paulo, está prestes a completar 13 anos e, como manda a tradição do seu povo, deve participar do bar mitzvah, cerimônia que marca a maioridade religiosa no judaísmo. Em comemoração à data, a família do adolescente prepara uma festa para 400 pessoas. Além do cardápio e da banda, os pais pensam em entreter os presentes com a exibição de um vídeo mostrando o cotidiano do filho. Procuram uma produtora. A empresa realiza, então, um clipe com imagens do adolescente, tendo como background montagens toscas e uma paródia de What makes you beautiful, hit da boy band One Direction. A “nova” letra ressalta que o menino é estudioso, organizado, simpático e adora viajar com o núcleo familiar. O videoclipe, claro, foi um sucesso no evento. Mas, para que outros familiares também o assistissem, o pai resolveu postá-lo no YouTube. Com isso, sem querer, transformou a produção audiovisual caseira num dos maiores memes da história recente da internet no Brasil.

Rapidamente, a brincadeira, que seria para poucos espectadores, alcançou milhares de acessos. Dois anos após aquela primeira postagem fatídica, uma busca do nome do garoto no site de vídeos traz mais de 9 mil registros, a maioria, arremedos. Fica difícil contabilizar os “espectadores”. Apenas um vídeo, cópia do original, possui mais de 700 mil visualizações. Estima-se que, ao todo, são cerca de 3 milhões. Não é um número tão grande, se comparado ao do mencionado clipe da música do One Direction, 500 milhões de visitas; mas, levando-se em conta que o jovem foi alvo de zombaria e não de tietagem, dá para fazer uma ideia do estrago que esse tipo de incidente pode causar na vida de qualquer pessoa, principalmente na de um adolescente. Ainda em 2012, seus pais entraram com um processo judicial para retirar do ar os vídeos e pedir R$ 30 mil reais como indenização por danos morais. No entanto, em agosto deste ano, perderam a ação para a Google, empresa que detém os direitos do YouTube.


O vídeo de Nissim Ourfali rendeu paródias e memes. Imagem: Reprodução

Ainda hoje, o garoto, que está com 15 anos, precisa conviver com o que é denominado de cyberbullying, intimidação virtual que se tornou prática crescente em todo o mundo e que está ligada a um componente bastante comum no universo virtual, a necessidade, a qualquer custo, do humor. Nunca fomos tão cercados por ele. Nunca fomos tão vítimas dele.

Em O riso – ensaio sobre a significação do cômico (obra de 1899), o filósofo francês Henri Bergson defendeu que, para haver comicidade, é preciso um distanciamento emocional entre a plateia e o objeto do riso: “O cômico exige algo como certa anestesia momentânea do coração para produzir todo o seu efeito. Ele se destina à inteligência pura”. Para o pensador, o humor pode também cumprir uma função de castigo, causando à vítima humilhação. Através da galhofa, a sociedade aplicaria sua vingança sobre aqueles que possam transgredir o senso comum. “O riso parece precisar de eco.”

SOCIEDADE HUMORÍSTICA
Quase um século depois, no final da década de 1980, outro filósofo francês, Gilles Lipovetsky, sentenciou que vivíamos em uma “sociedade humorística”: “Cada vez mais, a publicidade, as emissões de animação, os slogans das manifestações e a moda adotam um estilo humorístico. Até as publicações sérias se deixam influenciar em maior ou menor medida pela atmosfera da época: basta ler os títulos ou subtítulos dos diários, dos semanários e mesmo dos artigos científicos ou filosóficos. O tom universitário dá lugar a um estilo mais cômico, feito de piscadelas de olho e jogos de palavra”.


O filósofo Pierre Lévy acreditou numa ética na web. Foto: Divulgação

Com a era da internet, esse comportamento se intensificou. Nada mais escapa à artilharia da comicidade: das eleições, passando pelos problemas sociais, Copa do Mundo no Brasil e até mortes de celebridades, tudo acaba em piadinhas e memes.

O termo meme foi criado pelo biólogo Richard Dawkins, e difundido em seu livro O gene egoísta, de 1976: “Da mesma forma como os genes se propagam no ‘fundo’, pulando de corpo para corpo através dos espermatozoides ou dos óvulos, da mesma maneira os memes propagam-se no ‘fundo’ de memes, pulando de cérebro para cérebro por meio de um processo que pode ser chamado, no sentido amplo, de imitação. Se um cientista ouve ou lê uma ideia boa, ele a transmite a seus colegas e alunos. Ele a menciona em seus artigos e conferências. Se a ideia pegar, pode-se dizer que ela se propaga a si própria, espalhando-se de cérebro em cérebro”.

Sua teoria vingou com toda força nos 00, principalmente com a utilização do humor como vetor para transmitir ideias. Pode-se dizer que nunca se produziu tanto material humorístico no mundo. O cartunista Allan Sieber concorda e atribui essa explosão cômica à facilidade de acesso às tecnologias: “É que os meios ficaram bem mais baratos, como todo mundo sabe: câmeras, computadores etc. Mas tem um humor muito rasteiro por aí, tanto na internet, quanto na TV e no cinema”. Ou seja, as pessoas começaram a ter maior poder de compra, mas possivelmente não desenvolveram discernimento suficiente e princípios éticos diante de tanta liberdade para criar, consumir e distribuir humor.


Desenhista Allan Sieber questiona quais os interesses do humorista anônimo. 
Foto: Divulgação

Um agravante, no caso das vítimas do “humor da internet”, é que, em sua maioria, ele é anônimo. O garoto judeu do vídeo tem seu rosto estampado em diversos memes. Basta “dar um google” e ter acesso a vários deles. Esse é o lado perverso da graça que não tem assinatura: ela pode destruir reputações, caluniar, desinformar, humilhar e, ainda assim, deixar seu autor obscuro escapar ileso. Esse cenário a que assistimos é exatamente o inverso do que Pierre Lévy avaliou em 1999, quando lançou o livro Cibercultura.

Em resposta à questão “A cibercultura não é sinônimo de caos e confusão?”, o filósofo francês foi otimista: “É certo que nenhuma autoridade central garante o valor das informações disponíveis no conjunto da rede. Ainda assim, os sites são produzidos e mantidos por pessoas e instituições que assinam suas contribuições e defendem sua validade frente à comunidade dos internautas. As comunidades virtuais, fóruns eletrônicos ou newsgroups são frequentemente moderados por responsáveis que filtram as contribuições de acordo com sua qualidade ou pertinência. Esses operadores (de sistemas), que dispõem de um grande poder ‘regional’ no ciberespaço, podem eliminar dos servidores, sob sua responsabilidade, informações ou grupos de discussão contrários à ética da rede (a famosa netiqueta): calúnias, proxenetismo, disseminação sistemática de informações impertinentes etc. O que explica, por sinal, que haja tão poucas informações ou práticas desse tipo na rede”. Lévy preparou o terreno teórico para muito do que vemos hoje, mas só não contava com o advento dos blogs, das redes sociais, do YouTube e do Google.

PIADAS NAS REDES SOCIAIS
O Facebook apenas surgiria em 2004, cinco anos após o lançamento de Cibercultura, para causar uma revolução na forma como nos comunicamos e consumimos informação e entretenimento. Dez anos após a sua criação, o site, projetado por Mark Zuckerberg como meio de comunicação entre os alunos da Universidade de Harvard, ultrapassou 1 bilhão de usuários, uma parte considerável da população do planeta. No Brasil, são mais de 76 milhões de membros, curiosamente o mesmo número de brasileiros que têm acesso à internet com conexão doméstica. Fora isso, somos o segundo país com mais internautas que entram diariamente na rede social.


Alvo de zombaria, Beyoncé proibiu fotógrafos não autorizados em seus shows. 
Imagem: Divulgação

Muitos deles estão em busca de se relacionar com amigos e conhecer pessoas. Um estudo realizado pelo psicólogo Pedro Guimarães de Barros apontou que a maioria dos membros procura se divertir através de piadas e memes. “A frequente menção ao humor chamou bastante a minha atenção. Em suas respostas, vários dos entrevistados mencionaram o acesso regular a conteúdos de humor, ou a ‘coisas engraçadas’. A pergunta que serviu de ponto de partida para a dissertação foi: ‘De que estes jovens estão rindo online?’ Ou, formulada de outro modo: ‘Que humor é esse a que eles se referem?’”

A busca da palavra humor no Facebook leva a incontáveis páginas: Humor inteligente, Humor engraçado, Humor político, Humor da net, Humor sarcástico, Humor diário, Humor vintage. Isso sem contar com as que não são batizadas com o termo humor, como a do Bode Gaiato e do Chapolin Sincero, com 4,2 milhões e 5,5 milhões de seguidores, respectivamente.


Meme "ui" foi extraído do frame de uma entrevista do astrofísico Neil Degrasse. 
Imagem: Divulgação

O curioso é que o princípio do conteúdo humorístico dessas fanpages se firma exatamente no amadorismo deliberado: memes com design e fotografias mal-executados, desenhos toscos e ortografia errada. Muitas das imagens usadas são pescadas na própria internet, como a do anônimo motorista do “A que ponto chegamos?”, ou do senhor do “Ui”, cujo gesto das mãos levantadas foi extraído de um frame de uma entrevista do astrofísico Neil DeGrasse Tyson, apresentador do programa Cosmos. No exato momento, ele enumerava os feitos de Isaac Newton antes dos 26 anos. Nada a ver com a manipulação de sentido posterior.

Para tentar administrar o uso de suas imagens, alguns artistas já estão tomando providências. Beyoncé, por exemplo, passou a proibir fotógrafos não autorizados em seus shows. A medida foi imposta após ter visto a propagação de fotos em que aparece com expressões faciais que maculam sua beleza. Kate Bush, a compositora e cantora inglesa que passou 35 anos sem fazer espetáculos, ao anunciar seu retorno aos palcos, exigiu que absolutamente ninguém registrasse sua performance nas 22 datas em Londres. Não custa lembrar que, com o clipe do megasucesso Wuthering heights (1978), a garota-prodígio foi alvo de diversas paródias. Mas isso foi na época em que a massificação de sátiras ainda engatinhava. Imagine se Jimi Hendrix resolvesse estrear hoje sua nova forma de tocar guitarra (com os dentes e com o instrumento nas costas)? O que isso não renderia de piadas?


Foto de motorista de ônibus é uma das imagens, hoje, mais compartilhadas. 
Imagem: Divulgação

“Eventualmente, fico me perguntando quem faz isso e por que, já que é anônimo e não vai ganhar nem reconhecimento. Talvez seja o fetiche de ser replicado, vá saber. Tem uns simplesmente geniais, um primor de síntese, quase humor popular nível Mussum, muito bom. Já outros nascem datados ou são uma piada muito interna e cretina. Se pensarmos bem, as tiras do André Dahmer são feitas para serem memes, por exemplo: um slogan barato, uma palavra de ordem para ser colada em adesivo no carro de algum universitário – ou estamparem uma camiseta – e aquele desenhinho copy/paste sem alma. Falta ferocidade a tudo isso, acaba e morre no ‘fofo irritadinho’ (que não irrita ninguém)”, critica Allan Sieber.

“Acho bacana esse humor anônimo, mas estranho também. Quando comecei a botar quadrinhos em blogs, não era pago, só minha vaidade autoral era recompensada. A nova geração não faz questão nem disso, fico meio pasmo com tanto desapego. Mas algumas das coisas mais engraçadas que vi ultimamente vieram assim, sem assinatura”, afirma o quadrinista Arnaldo Branco, que agradece à internet por ampliar seus conhecimentos na área. “Graças a ela posso assistir a humorísticos do mundo todo e ver surgirem novas maneiras de fazer humor, que é uma arte mutável e perecível. Só os gênios do humor podem se dar ao luxo de não mudar nunca, trabalhadores braçais como eu estão sempre lutando contra a obsolescência.” 

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