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Um vento para volver artistas

Japonês Hayao Miyazaki, criador do Studio Ghibli, terá longas seus exibidos junto aos de seguidores

TEXTO Renato Contente

01 de Dezembro de 2014

'A viagem de Chihiro'

'A viagem de Chihiro'

Imagem Divulgação

Para driblar a ausência dos pais, duas irmãs encontram em um espírito da floresta o afeto e a amizade que lhes faltava. Uma bruxa, prestes a completar 13 anos, realiza entregas em sua vassoura, para sobreviver em uma cidade estranha. Um rapaz é ferido por um deus javali endemoniado e luta contra o tempo para não ser infectado pelo espírito mau. Uma garotinha vê os pais virarem porcos, após terem comido uma refeição destinada aos deuses e é escravizada para pagar a “dívida”.

Cada descrição acima carrega uma parte do vasto universo construído pelo cineasta japonês Hayao Miyazaki, criador do Studio Ghibli e responsável por uma animação autoral que se contrapunha aos padrões estabelecidos pela indústria massificada dos desenhos nipônicos. Com filmes como Meu vizinho Totoro (1988), O serviço de entregas da Kiki (1989), Princesa Mononoke (1997) e A viagem de Chihiro (2001), o diretor urdiu uma linguagem que conecta aspectos do fantástico a uma estética detalhista e delicada, em que as técnicas de animação tradicionais se sobrepõem a quaisquer artifícios da computação gráfica.

Contemplado no mês de novembro com um Oscar honorário pelo conjunto de sua obra, Miyazaki também será homenageado pela Academia no próximo ano, quando o Studio Ghibli completa três décadas de existência. No Recife, neste mês, o cineasta será o carro-chefe de uma mostra de filmes que tem como foco a animação japonesa autoral. Com 18 longas-metragens, debates e oficinas, a mostra O Universo de Miyazaki |Otomo |Kon acontece entre 2 e 13 de dezembro, na Caixa Cultural Recife. O evento ainda exibirá filmes de Katsuhiro Otomo e Satoshi Kon, diretores que seguiram a linha autoral consolidada pelo mestre.

Quando criou o Studio Ghibli, em 1985, ao lado de Isao Takahata, Miyazaki tinha como proposta fazer dos seus filmes “um vento que varresse a cabeça dos artistas”, ao explorar histórias originais e valorizá-las nas telas dos cinemas, o que subvertia a lógica televisiva à qual a animação japonesa de então estava subordinada. Ao invés do formato de séries de produção barateada, com pouco custo e grande alcance de público, Miyazaki propôs longas autorais e, muitas vezes, de abordagem crítica em relação a temas ecológicos, históricos e sociais.

No Japão, a partir dos anos 1950, a expressão anime (do inglês animation) passou a designar qualquer tipo de animação, independentemente do país de origem. Na década de 1980, o termo foi reprocessado por outras culturas e tornou-se sinônimo do estilo peculiar das animações japonesas, que costumam retratar personagens de olhos grandes, cabelos espetados e movimentos exagerados.


Miyazaki traz elementos de sua vida  para as obras, como a ausência da mãe em Meu vizinho Totoro. Imagem: Reprodução

De acordo com o animador Jansen Ravieira, um dos curadores da mostra, o anime, ou animê, virou sinônimo de um gênero de animação com produção limitada, prazos curtos e pequenos orçamentos, sempre na forma de séries televisivas. “Mas o mesmo processo industrial que desembocou nesse estilo gerou uma grande insatisfação em alguns artistas, que discordavam dessa maneira de produzir. Miyazaki foi pioneiro ao optar pela animação de características autorais em longas, ao invés da massacrante produção de séries para TV”, explicou.

Para Rodrigo Carreiro, professor de Cinema da UFPE, embora alguns seriados de animação japonesa dos anos 1960, como Speed Racer, possuíssem menos elementos autorais, já se mostravam distintos dos desenhos ocidentais. “Isso era visto no traço, na narrativa, no estilo de animar a ação física. Sobre filmes do Ghibli, como Nausicaä do Vale do Vento (1984) e A viagem de Chihiro, talvez sua maior característica seja um mergulho na história e mitologia do Japão, em vez de se basearem na arte ocidental. É esse mergulho na cultura do próprio país que diferencia esses desenhos dos concorrentes”, analisou.

FUTUROS SÓCIOS
Filho de um fabricante de peças para aviões e de uma dona de casa, Miyazaki, ao contrário da maior parte da população do Japão durante a Segunda Guerra, teve uma juventude relativamente confortável, apesar da sofrida luta de sua mãe contra uma tuberculose. Depois de ter cursado Ciências Políticas e Economia, período em que participou de um clube de pesquisa de literatura infantil, o artista se aproximou do universo da animação, a partir de um estágio no Toei Animation, megaestúdio de onde mais tarde sairiam séries como Dragon BallSailor Moon e Cavaleiros do Zodíaco.

O encontro entre Miyazaki e Isao Takahata, futuros fundadores do Ghibli, aconteceu no período do estágio, no início dos anos 1960. Em pouco tempo, a parceria dos dois tomaria corpo com uma proposta dos magnatas da Toei, que, já líderes na TV, desejavam ocupar as salas de cinema, cada vez mais esvaziadas, por conta de suas próprias séries. Assim, foi concebido o longa Hórus: o príncipe do sol (1968), animação sobre seres mitológicos nórdicos que pavimentaria o caminho para projetos como o média Panda e o filhote (1972) e o bem-sucedido O Castelo de Caliostro (1979), estreia individual de Miyazaki na direção de um longa.

“Acho que a produção desse tipo de animação fomenta e solidifica para o resto do mundo um estilo próprio que já vinha sendo constituído décadas antes, após a Segunda Guerra. A animação japonesa cria uma série de códigos gráficos e narrativos que são assimilados por outras cinematografias e se torna universal. Depois da guerra, ela teve de se reinventar. Os mangás, especialmente os de Osamu Tezuka, foram a principal fonte de inspiração”, defendeu Marcos Buccini, animador e professor de design experimental e animação da UFPE.


Hayao Myiazaki criou o Studio Ghibli em 1985, com foco na animação japonesa autoral.
Foto: Divulgação

Talvez seja possível afirmar que o primeiro longa de Miyazaki a aglutinar as principais características de sua proposta fílmica tenha sidoNausicaä do Vale do Vento, baseado em um mangá de sua autoria. A formalização do Ghibli como estúdio, em 1985, é creditada ao sucesso do longa, lançado no ano anterior. “A animação reuniu aspectos essenciais da obra de Miyazaki: mundos imaginários complexos, onde fantasia e realidade se confundem, abordando temas ecológicos através de personagens marcantes. Habitante de um mundo de vales verdes com insetos gigantes, Nausicaä é uma princesa guerreira que luta para proteger o ecossistema de seu planeta”, descreveu a publicitária Miriam Souto Maior, autora da monografia Ghibli: a consolidação do animê como produto global de consumo.

Entre os 15 longas dos quais assumiu a direção, sendo dois deles da fase pré-Ghibli, Miyazaki emprestou seu olhar a temas como o desmatamento, o horror da guerra, a violência dos regimes totalitários, a perda da inocência em nome do amadurecimento pessoal e o cultivo de valores como lealdade, gratidão, coragem, autossacrifício e amor. Como defende a pesquisadora Dani Cavallaro, no livro The animé art of Hayao Miyazaki (McFarland Publishers), o cineasta, “defensor convicto da sabedoria das crianças, encara com consistência assuntos difíceis de lidar, sem suavizar nem sentimentalizar seus significados ou apresentar soluções definitivas para os problemas de suas personagens”. O raciocínio e a serenidade para enfrentar problemas, sustenta o autor, são mais potentes do que desfechos idealizados.

De acordo com Dani Cavallaro, outro aspecto marcante na obra do artista é a sua preocupação em desenvolver, nas suas personagens, um senso de responsabilidade e autonomia numa idade precoce. Essa tendência se manifesta em praticamente todos os protagonistas criados por Miyazaki, em especial nas suas personagens femininas, retratadas como figuras fortes e destemidas, ao invés dos estereótipos sexualizados comuns ao universo dos animes e mangás. Assim são, por exemplo, Mononoke, princesa criada entre deuses-lobos e responsável por proteger o grande espírito da floresta da ganância humana, e Chihiro, uma menina mimada que tem o comportamento transformado, ao se deparar com o risco de perder os pais.

Como observado por Cavallaro, os filmes de Miyazaki são carregados de elementos biográficos, como a ausência da mãe, em Meu vizinho Totoro. A pesquisadora defende que o cineasta se torna uma espécie de advogado de princípios pacifistas e igualitários, ao mesmo tempo em que luta para conciliar certo sentimento de culpa por sua família ter sido, de alguma forma, conivente com a guerra, já que seu sustento vinha da fabricação de lemes para aviões utilizados no confronto. “Ele tem uma consciência aguda e, de certa maneira, envergonhada por conta da situação privilegiada da qual ele e sua família gozaram durante a guerra, quando tiveram condições de se mudar para o interior, distante de Tóquio, principal alvo dos ataques aéreos”, defende a pesquisadora.

Essa culpa sobre a qual a pesquisadora escreve se manifesta de maneira mais incisiva nos filmes “adultilizados” do autor, como Porco Rosso(1992) e Vidas ao vento (2013), anunciado por Miyazaki como o seu último longa-metragem. Situado na Itália dos anos 1920, Porco Rossonarra as desventuras de um piloto veterano da Primeira Guerra que, ao ser amaldiçoado, é transformado parcialmente em porco. Apesar da aparente leveza, o longa tece críticas mordazes aos absurdos da guerra e ao mito do herói nacional. Dramaticamente mais denso, Vidas ao vento traz à tona as contradições de um projetista de aviões que enfrenta o remorso, ao constatar que sua invenção foi utilizada como ferramenta para a morte de milhares.


Porco Rosso conta as desventuras de um piloto veterano da Primeira Guerra Mundial que, ao ser amaldiçoado, é transformado parcialmente em porco. Imagem: Reprodução

POPULARIZAÇÃO NO OCIDENTE
Se longas-metragens como Akira (1988), ficção científica cyberpunk de Katsuhiro Otomo, e O túmulo dos vagalumes (1988), de Isao Takahata, sobre dois irmãos que tentam sobreviver à guerra, abriram os olhos do Ocidente para essa safra japonesa autoral, pode-se dizer que a repercussão de Princesa Mononoke (1997) e A viagem de Chihiro (2001), que recebeu o Oscar de Melhor Animação em 2003, foram decisivos para a popularização e legitimação desse recorte do cinema asiático.

“Aos olhos ocidentais, acredito que a própria estranheza oriunda da mitologia nipônica – uma cultura muito diferente da nossa – fez com que esses trabalhos fossem consumidos mais pelos adultos, aqui no Ocidente. Então, acho que a produção japonesa acabou mostrando aos nossos animadores que havia um mercado importante entre o público adulto”, opinou Rodrigo Carreiro.

Um dos principais influenciados pela arte de Miyazaki, John Lasseter, chefe de criação da Pixar, não esconde a admiração pelo mestre, seja em homenagens discretas – como quando fez o cowboy Woody abraçar um boneco de Totoro em Toy Story 3 (2010) – ou em falas públicas elogiosas ao ídolo, como no anúncio do Oscar honorário a Miyazaki, no último mês. “Na Pixar, quando temos um impasse e não conseguimos resolvê-lo, vemos um filme de Miyazaki como fonte de inspiração. Essa tática sempre funciona – ficamos logo maravilhados e cheios de ideias. Toy Story tem um imenso débito de gratidão aos seus filmes”, revelou Lasseter, num texto para uma edição americana dos filmes do Ghibli.

De acordo com Rodrigo Carreiro, a influência da estética do Studio Ghibli sobre os filmes da Pixar vai além dos planos contemplativos e de uma abordagem mais complexa das relações humanas. “Acho que o que a Pixar tem feito com os filmes japoneses é algo muito parecido com o que a geração de Scorsese, Coppola e Spielberg fez com o pessoal da nouvelle vague (Godard, Truffaut): transportou as inovações em termos de estilo e narrativa para uma forma dramática mais rígida, mais ocidental, culturalmente próxima dos Estados Unidos”, defendeu.

Segundo Miyazaki, o nome Ghibli foi retirado de um livro antigo de aviação e diz respeito a um termo árabe adotado por pilotos italianos que significa “um vento quente e seco que sopra pelo Mediterrâneo a partir do Saara”. O nome serviu para reforçar sua proposta: a de ser um vento fresco que revolucionasse a cabeça dos artistas e varresse para longe os vícios mercadológicos que emperravam a animação nipônica. Aos 73 anos, o cineasta fez inúmeros anúncios recentes sobre sua aposentadoria, afirmando que “a era dos filmes feitos com lápis e papel está chegando ao fim”. Apesar disso, o artista trabalha diariamente, ainda que em ritmo reduzido, em um novo projeto de mangá. Aos admiradores, resta esperar que seus traços saiam mais uma vez do papel e voltem a levar aquela magia tão potente para as grandes telas. 

RENATO CONTENTE, jornalista.

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