CONTINENTE Como voltou a O capital?
DAVID HARVEY Nunca havia lido Karl Marx até os 35 anos de idade, então posso dizer que comecei relativamente tarde. E a razão para ler foi por estar profundamente insatisfeito com a literatura das ciências sociais da época. Cheguei aos Estados Unidos no meio das rebeliões urbanas, após o assassinato de Martin Luther King. Era como se fosse uma grande explosão; a julgar pelos textos convencionais que eu estava lendo, aquele tipo de coisa não estava prevista. Porque o mercado estaria bem, e assim produziria os resultados necessários para todos. Mas estava claro, na cidade em que eu me encontrava, que o mercado falhava miseravelmente. Quem é que escreve sobre esses assuntos e diz que os mercados, na verdade, não são tão legais? Marx não é o único, mas é um dos que compõem esse time. Então comecei a ler sobre o que havia de errado com esse capitalismo do livre mercado e sobre como o mais rico país do mundo tinha uma pobreza incrível e uma gigantesca população marginalizada, na maioria afro-americanos. Conheci as ideias de Marx e, a princípio, não fiquei muito convencido.
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CONTINENTE Não? Por quê?
DAVID HARVEY Para falar a verdade, não. Mas isso mudou, quanto mais eu fui conhecendo sua obra. Ele possui conceitos muito simples e comecei a usar esses mesmos conceitos para explicar a natureza do problema a mim mesmo e a outras pessoas. São conceitos robustos e úteis. Frequentemente, eu me pegava em situações em que usava os conceitos de Marx diante de pessoas que não sabiam de onde aquilo vinha. E elas diziam: “Ah, isso é muito bom, uma ótima perspectiva”. E não tinham ideia de onde eu havia tirado aquilo.
CONTINENTE O senhor acredita que Marx tem o peso da pecha de “comunista”? Pelo menos no Brasil, ainda se fala em “medo do comunismo”.
DAVID HARVEY Bem, há dois aspectos com relação a isso. O primeiro: as pessoas provavelmente não diriam que não leriam O capital por Karl Marx ser comunista, mas porque não é, de verdade, um livro muito fácil. Não é fácil de compreender numa primeira leitura. Uma das coisas que tenho tentado fazer para torná-lo mais acessível a todo mundo é disponibilizar em transmissões na internet as minhas palestras sobre o livro, de modo que seja possível seguir o texto e minhas palestras. Há também as versões impressas delas, que, no Brasil, saíram agora pela Boitempo, nas quais tento ajudar os leitores a percorrer o texto e ter uma melhor compreensão. Porque acho que isso é extremamente importante. Costumo reclamar de alguns dos meus colegas acadêmicos por acreditar que eles passam muito tempo fazendo Marx mais complicado do que ele de fato é. Todos nós conhecemos sua filosofia, mas o que me interessa mais é a vida cotidiana na cidade. Há vários conceitos em Marx que nos ajudam a entender a vida urbana do jeito que é hoje. E há o segundo aspecto: Marx era muito bom em criticar o capitalismo, então, eu o utilizo para criticar a sociedade capitalista, mas não para que me diga que tipo de sociedade eu deveria construir ao longo do caminho. Quanto a essa noção recorrente do medo do comunismo, acho que há um mito de que ele tinha clareza do que o socialismo ou o comunismo seria. Ele não tinha.
CONTINENTE Era tudo teoria?
DAVID HARVEY Não, mas você consegue imaginar um monge medieval sendo requisitado para falar do capitalismo? Ele não saberia o que dizer. Estamos tão imbricados no capitalismo, que é muito difícil imaginar como seria qualquer alternativa. Nossa vida inteira é construída ao redor dele. Mas Marx tem um truque interessante. Ele nos ensina que, se houver uma sociedade diferente da atual, então os elementos já devem estar ao nosso redor. Em outras palavras, vamos olhar em nossa volta e constatar o que difere do mercado. Por exemplo, existe trabalho que fazemos para outras pessoas que não é através do mercado. Há voluntariado. Sobre isso, acredito que Marx diria se tratar de uma resposta a uma diferente noção de valor. Em tempos de crise, como tsunamis, sempre se vê ajuda e voluntariado. Quando houve o furacão em Nova York, muita gente se ofereceu de imediato para auxiliar de qualquer maneira. Então, é como se estivéssemos dizendo que a sociedade não se mexe apenas à base do mercado, e que existem áreas que não se alicerçam de forma alguma no mercado ou na troca de dinheiro.
CONTINENTE A história nos ensina a olhar o passado para vislumbrar o futuro. Nesse sentido, Marx e seu O capital seriam ferramentas essenciais para se entender o que acontece em um mundo globalizado e de cidades inchadas?
DAVID HARVEY E também para explicar por que as mudanças ocorreram como ocorreram. A última vez em que estive no Recife foi em 1973. É claro que essa é uma cidade completamente diferente. O capital chegou e ergueu uma cidade. Mas que tipo de cidade foi erguida? É uma cidade perfeita? Claramente, é muito boa para alguns, já para outros é péssima.
CONTINENTE Mas existe uma cidade perfeita?
DAVID HARVEY Não, mas há cidades melhores. E o Recife é uma cidade que o capital construiu. Acho bom que haja piscinas para quem puder pagar por elas. Mas em lugares como Brasília Teimosa e o Coque, que visitei rapidamente, percebi que a vida é bem diferente. Aí você indaga: quem não quer uma cidade onde todos possam ter boas oportunidades e chance de viver em casa e ambiente decentes? Mas ninguém vai ver o capital produzindo isso. Porque o capital se especializa em produzir esse tipo de arranha-céu para as pessoas que podem pagar. E o que acontece com aquelas pessoas que não possuem o dinheiro? São deixadas para trás. E o que se vê é cada vez mais pessoas, em várias grandes cidades do mundo, sendo deixadas para trás.
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CONTINENTE Quatro décadas depois, quais as suas outras impressões do Recife?
DAVID HARVEY Em primeiro lugar, é uma cidade maior. Em segundo, é nítida a infusão de investimento financeiro, do jeito típico e clássico do capitalismo. E isso é uma tragédia. Porque, de várias maneiras, a cidade se parece com quase todas as outras grandes cidades que conheço. Parece com Miami Beach, por exemplo. É possível dizer que o capital está destruindo a diversidade social e cultural local. Sim, ainda existe uma culinária regional deliciosa, mas em comparação ao que era… É uma pena, em todos os sentidos. E a desigualdade social é ainda tão grande como antes. Me lembro de andar um pouco pela orla e de observar as casas existentes à beira-mar. Agora, tudo foi empurrado até desaparecer e o que existem são edifícios altos que não servem nem para a classe média, mas, sim, para uma classe alta. Entretanto, há resistências, a exemplo do Ocupe Estelita. E onde existe a resistência, eu estou.
CONTINENTE O capitalismo tem um modo único de produzir e manter desigualdades sociais. Encontrar o equilíbrio é nosso maior desafio?
DAVID HARVEY Sim, esse é um dos nossos maiores desafios, ladeado pelo desafio da degradação ambiental, incluindo aí as alterações climáticas, a perda da biodiversidade e os problemas da poluição. E não se pode solucionar qualquer um desses problemas, se é que isso será algum dia possível, sem grandes intervenções na vida urbana. Essa é uma das razões pelas quais, como urbanista, insisto em que devemos prestar atenção ao modo como construímos nossas cidades. Em como perpetuamos a desigualdade e aprofundamos a degradação, ao insistir em transporte privado e na construção de estradas e shopping centers. Há um imenso trabalho a fazer para modificar a natureza do processo urbano e para mudar nossas cidades. E, após esses anos, minha conclusão é de que o capital não pode resolver esses problemas.
CONTINENTE Se o capital não resolve, e o capital governa o mundo, estamos condenados?
DAVID HARVEY Bem, milhões de pessoas serão afetadas, se não lidarmos com essas questões. O capital pode sobreviver até bem, mas, para isso, vai capturar o estado e os instrumentos de repressão estatal e assim reprimir todas as formas de divergência. Você pode até achar isso um conto distópico, mas me baseio nas respostas que a polícia tem dado, inclusive no Brasil, em 2013, e percebo uma indicação de como será o futuro. Basta olhar o que aconteceu na Turquia e na cidade norte-americana de Ferguson, onde um jovem negro foi executado a tiros e a polícia alegou legítima defesa. Uma coisa é a polícia dizer isso, a outra é que houve protestos na rua e os policiais agiram como se estivessem na guerra contra o Iraque, quando na verdade marchavam contra cidadãos nas ruas de um subúrbio americano. Isso é absurdo. Se esse é o mundo para onde vamos, não é o mundo onde quero viver.
CONTINENTE O que fazer para mudar isso?
DAVID HARVEY Tem que haver um movimento que reverta a militarização da vida urbana. E como há muita militarização secreta ocorrendo no cotidiano urbano, é preciso que essa reversão se dê no âmbito da política. Mas aí de novo temos a questão de quem controla o poder político, de quem licencia o equipamento militar para a polícia de Ferguson. Quem fez isso? Só porque há armamento militar sobrando da guerra do Iraque não significa que deva ser dado à polícia de Ferguson, uma tropa local, é bom lembrar.
LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.