Em Moçambique, assim como na África em geral, a dança está presente no cotidiano. Ela tem uma dimensão épica: dialoga com a música, a narração, o teatro. As danças tradicionais, historicamente, começam a ser executadas a partir de um acontecimento e acabam permeando a tradição moçambicana. Elas fazem parte dos rituais de nascimento, iniciação, casamento e morte. As danças tradicionais também são uma forma de resistência cultural tribal contra a conversão aos costumes do colonizador, no caso, Portugal.
Entre matéria e memória foi composto a partir das danças das cerimônias fúnebres moçambicanas, misturadas à dança contemporânea, num trabalho composto por narração, canto, dança e música (em percussão, violão e flauta transversal), nos moldes do espetáculo épico africano. No centro de Moçambique, há uma dança fúnebre chamada utsi, em que as mulheres tocam percussão e abordam questões sociais. Depois do funeral, os parentes e amigos voltam para a casa do falecido e passam três, quatro, cinco dias tocando, dançando, para alegrar a família. “Eu conto a história do utsi porque é a dança da minha região. Exploro o repertório dessa dança para enriquecer meu trabalho, retratar a minha história, a perda da minha mãe, dar relevo a essa questão.”
Manuel Castomo criou o espetáculo para superar o luto da mãe e, ao mesmo tempo, o luto do pai, que ele não conheceu, pois faleceu em 1988, antes do seu nascimento, no mesmo ano. “Há esse universo de contato, apesar de não ter conhecido meu pai. Faço uma reflexão de maneira a atingir a catarse nesse movimento, nesse choro. A possibilidade da dança é a da própria cura. Se não fosse a dança, acredito que estaria hoje numa fase muito difícil. Ela me consolou, me libertou.”
A perda do pai também aparece de forma indireta, através da perda da mãe. “Quando meu pai faleceu, queimaram todos os seus pertences. Eu não tenho nenhuma memória física dele. Minha mãe sempre ficava chorando a morte do meu pai e eu me perguntava: ‘Como ela ficava a chorar, se tinham queimado tudo?’ Nada se perdeu, afinal de contas, porque ela tinha a memória espiritual dele. Eu não conheci meu pai, mas acredito que a gente tem um subconsciente da própria memória.”
O espetáculo Entre matéria e memória traz a possibilidade de aceitar o luto, a perda. “Isso é fundamental, porque a gente amadurece, lidando com isso, se torna melhor pessoa. Trago esse espetáculo para fortalecer cada um de nós, porque ‘O que a memória ama fica eterno’”, comenta o bailarino, citando trecho de Rubem Alves.
GUILHERME NOVELLI, jornalista, aessessor de comunicação do Coletivo Cartográfico.