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Cura e superação através da dança

'Entre matéria e memória', espetáculo do bailarino Manuel Castomo, une danças das cerimônias fúnebres de Moçambique à contemporânea

TEXTO Guilherme Novelli

01 de Dezembro de 2014

Manuel Castomo

Manuel Castomo

Foto Divulgação

"E longos carros fúnebres, sem música nem tambor, desfilam lentamente na minha alma. A esperança inteira chora, a angústia atroz desfralda a dor.” Esse trecho de Charles Baudelaire, integrante do espetáculo Entre matéria e memória, a ser apresentado nos dias 15 e 20 de dezembro no Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife, pode sintetizar o momento que o bailarino Manuel Castomo atravessou no período de luto e depressão em decorrência da perda de sua mãe, em 2012, na Cidade de Beira, Moçambique, sua terra natal. “Eu montei o espetáculo em homenagem a ela, lembrando todos os momentos em que estivemos juntos, da sua roupa, da esteira em que se deitava…”

Em Moçambique, há um ritual muito peculiar: quando alguém morre, seus parentes queimam toda a roupa, fotografias e outros pertences. “Depois disso, nós não temos mais a memória física do ente querido, mas eu relembro tudo no espetáculo, inclusive, uso um vestido para representar minha mãe e, simbolicamente, queimo o vestido no palco, o que também significa a superação do meu luto.” Quando os moçambicanos queimam os pertences, estão libertando o espírito do falecido. “No outro plano, o espírito precisa ficar em paz. Se permanecermos com as roupas ou com as fotografias, acabamos lamentando a perda e, em decorrência, o espírito não fica em paz.” Eles queimam tudo para emanar luz ao espírito, mas a memória do ente querido e do corpo permanece.

Logo após o falecimento de sua mãe, naquele ano, Manuel Castomo veio ao Recife, num intercâmbio internacional em parceria com a ONG Pé no Chão. Trabalhou como educador social, coreógrafo e professor de percussão para crianças que moram em comunidades carentes, numa continuação do trabalho que desenvolvia em Moçambique pela Fundação Terre des Hommes (Suíça).

Terminado o projeto, voltou a Moçambique, mas, encantado pelo polo artístico-cultural pernambucano, resolveu vir para cá novamente. “Eu disse que não seria uma empreitada fácil. O mercado brasileiro, de uma maneira geral, é muito concorrido e o Recife tem dificuldades particulares”, conta Arnaldo Siqueira, coreógrafo, produtor e curador. “Isso é muito comum por aqui. Depois da crise na Europa, artistas, sobretudo europeus, me procuram pedindo aconselhamento profissional”, continua.

Desde então, Arnaldo tem sido como um padrinho do bailarino moçambicano. “Manuel tem uma presença cênica muito forte, uma característica genuinamente africana que ele carrega, um tipo de célula coreográfica bastante original, inusitada, bem diferente do que estamos acostumados a ver aqui no Nordeste, nessa profusão de danças afro-brasileiras com padrões de movimentos um tanto repetitivos.”

Em Entre matéria e memória, o bailarino faz o público vivenciar essa outra África que não é a nossa afro-brasileira. “Chamei-o para participar da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém, no fim de abril deste ano, apresentando outro solo, criado por mim a partir do repertório dele. Era na cena do Bacanal de Herodes, interpretando um escravo africano. Essa outra África que ele traz impressionou todo mundo.”

DANÇA E RITUAL
Em Moçambique, assim como na África em geral, a dança está presente no cotidiano. Ela tem uma dimensão épica: dialoga com a música, a narração, o teatro. As danças tradicionais, historicamente, começam a ser executadas a partir de um acontecimento e acabam permeando a tradição moçambicana. Elas fazem parte dos rituais de nascimento, iniciação, casamento e morte. As danças tradicionais também são uma forma de resistência cultural tribal contra a conversão aos costumes do colonizador, no caso, Portugal.

Entre matéria e memória foi composto a partir das danças das cerimônias fúnebres moçambicanas, misturadas à dança contemporânea, num trabalho composto por narração, canto, dança e música (em percussão, violão e flauta transversal), nos moldes do espetáculo épico africano. No centro de Moçambique, há uma dança fúnebre chamada utsi, em que as mulheres tocam percussão e abordam questões sociais. Depois do funeral, os parentes e amigos voltam para a casa do falecido e passam três, quatro, cinco dias tocando, dançando, para alegrar a família. “Eu conto a história do utsi porque é a dança da minha região. Exploro o repertório dessa dança para enriquecer meu trabalho, retratar a minha história, a perda da minha mãe, dar relevo a essa questão.”

Manuel Castomo criou o espetáculo para superar o luto da mãe e, ao mesmo tempo, o luto do pai, que ele não conheceu, pois faleceu em 1988, antes do seu nascimento, no mesmo ano. “Há esse universo de contato, apesar de não ter conhecido meu pai. Faço uma reflexão de maneira a atingir a catarse nesse movimento, nesse choro. A possibilidade da dança é a da própria cura. Se não fosse a dança, acredito que estaria hoje numa fase muito difícil. Ela me consolou, me libertou.”

A perda do pai também aparece de forma indireta, através da perda da mãe. “Quando meu pai faleceu, queimaram todos os seus pertences. Eu não tenho nenhuma memória física dele. Minha mãe sempre ficava chorando a morte do meu pai e eu me perguntava: ‘Como ela ficava a chorar, se tinham queimado tudo?’ Nada se perdeu, afinal de contas, porque ela tinha a memória espiritual dele. Eu não conheci meu pai, mas acredito que a gente tem um subconsciente da própria memória.”

O espetáculo Entre matéria e memória traz a possibilidade de aceitar o luto, a perda. “Isso é fundamental, porque a gente amadurece, lidando com isso, se torna melhor pessoa. Trago esse espetáculo para fortalecer cada um de nós, porque ‘O que a memória ama fica eterno’”, comenta o bailarino, citando trecho de Rubem Alves. 

GUILHERME NOVELLI, jornalista, aessessor de comunicação do Coletivo Cartográfico.

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