Mas, segundo ele, para encarar a obra é preciso primeiramente afastar a ideia de influência e focar nas trocas entre culturas estrangeiras. “É impossível, mesmo nos processos de colonização, que uma cultura não seja influenciada por outra”, adverte Frederico. Essas três décadas (1900-1930) foram escolhidas porque, nesse período, cidades brasileiras como São Paulo, Belém do Pará e o Recife começavam a se inquietar com a necessidade de parecerem modernas, adotando intervenções urbanas com sotaque europeu.
E, ao contrário de outros grupos imigrantes no país, a discreta presença física de franceses no Brasil não impediu que sua influência fosse sentida nos mais diversos aspectos da sociedade brasileira. “Como a França sempre foi considerada uma hegemonia cultural, inclusive servindo como modelo de ‘belo’ para a corte portuguesa – nossos colonizadores –, esse francesismo foi absorvido com bastante naturalidade. Mais do que cidadãos, a França exportava principalmente cultura, arte, literatura, costumes, línguas e moda, bem como a sua alimentação”, lembra o gastrônomo.
FORA DE CASA
Em torno da comida, propriamente, essas mudanças foram acontecendo ao longo de décadas, mas tendo por trás um suporte conjuntural parisiense. “Para se ter uma ideia, o francês já era, no Recife, nos meados do século 19, a segunda língua mais falada. Dizer que algo era da França ou era francês sugeria uma superioridade”, pontua. Dividido em quatro capítulos, o livro indica essa influência, a partir do momento em que o próprio hábito de sair para comer fora de casa é posto como uma praxe francesa.
Frederico Toscano escreve que foi no Cais da Lingueta, em 1858, que se inaugurou o Restaurant Français. Foto: Reprodução
“Se, hoje, estamos em qualquer lugar do mundo dentro de um restaurante, servidos por garçons, comendo e conversando, devemos isso à França. Sair para comer é um hábito alimentar legitimado pelos franceses como uma atividade de lazer”, afirma Toscano, evidenciando a perspectiva do sociólogo italiano da alimentação Mássimo Montanari, quando diz que “nossa raiz está no outro”. Aliás, é por essa máxima que o mestre em História navega firmemente.
Segundo pesquisa de Toscano, essa invenção parisiense podia ser encontrada no Recife em meados do século 19, mais precisamente em 1858, trazida por um cozinheiro francês conhecido como Auguste, que abriu na capital pernambucana o seu Restaurant Français, no Cais da Lingueta (onde hoje está o Bairro do Recife), área da cidade que concentrava hotéis e casas de pasto francesas e inglesas. Mas foi com um ritmo mais intenso da europeização, leia-se afrancesamento da cidade, no início do século 20, que essa prática se tornou mais comum.
Um momento etnográfico, urbano e curioso registrado no livro é aquele no qual o Recife cresce e passa a criar periferias. A partir de então, as distâncias crescem, obrigando a população que fazia suas refeições em casa a buscar a alimentação fora do ambiente doméstico. “Surgiu a necessidade de apresentar o restaurante como um ambiente lícito, apropriado, não só para a circulação de amabilidade entre políticos e militares, mas também como um local que podia ser frequentado livremente por mulheres e famílias inteiras”, destaca.
Restaurante do chef Nicola Sultanum, Mingus é ancorado na haute cuisine francesa.
Foto: Divulgação
Outra herança luso-francesa foi a culinária de vísceras, que, como o próprio nome faz supor, está baseada no aproveitamento quase total do animal escolhido para o abate, incluindo-se aí os seus órgãos internos. “Sarapatel, dobradinha, galinha à cabidela, pratos defendidos como típicos, são derivações de receitas francesas”, diagnostica.
Mas por que o recifense defende o provincianismo dos seus temperos, enquanto se curva aos gritos culinários do mundo? “Ele tende a gostar do que é de fora. Como é um povo que teve várias semicolonizações – holandesa, judaica, francesa e portuguesa –, sua formação tende a estar atenta ao mundo, mas sempre conjugando com sua identidade”, sugere o autor.
CAFÉ
O fato de Pernambuco nunca ter sido uma referência no agronegócio cafeeiro, mas ter suas ruas tomadas por cafeterias, é uma dessas derivações. No livro A história do mundo em seis copos, o escritor estadunidense Tom Standage analisa os avanços da humanidade a partir de meia dúzia de bebidas que encheram muitos copos, de forma a definir o fluxo da história mundial. Entre elas, o café. Nem tanto como bebida de herança árabe. Mas como ele conseguiu construir metonimicamente, em Paris, um ambiente democrático para as discussões de filósofos, cientistas e homens de negócios.
O francesismo incorporado aos hábitos culinários do brasileiro incluem o cassoulet e a degustação de queijos e vinhos. Foto: Divulgação
No Recife do começo do século 20, era assim. Frederico Toscano registra que “o café recifense, o estabelecimento, não se limitaria a comercializar apenas a bebida que lhe emprestava o nome. O Café Chile, inaugurado em agosto de 1915, garantia, em anúncio publicado em jornal, a qualidade do seu estabelecimento, que contaria com um ‘serviço de copa, bebidas, bolinhos e comidas frias irrepreensíveis’”. Os cafés, afinal de contas, passariam a competir, cada vez mais, com espaços de sociabilidade diversos, como o próprio restaurante. Outro espaço de sociabilidade de DNA francês foram as sorveterias, isso porque, ainda naquele começo de século, o gelo atuaria como uma espécie de índice do grau de civilização.
CENÁRIO ATUAL
O Recife adotou o restaurante que, no princípio, era associado a uma incipiente definição de comida francesa. Algo que os comensais conseguiam identificar, mas nunca definir. Talvez por esse motivo, até o começo dos anos 2000, esse fazer gastronômico sempre foi executado como um arremedo da verdadeira cozinha bleu. “Até 2002, a culinária francesa era executada majoritariamente nos hotéis, mas sem uma preocupação técnica, 95% dos cozinheiros a executavam de forma malfeita. O que se entendia por molho branco, por exemplo, era uma tragédia”, diagnostica o chef Claudemir Barros, um dos primeiros nomes a movimentar a gastronomia que a capital pernambucana passou a vivenciar a partir do começo deste século – ainda com fôlego nos dias de hoje.
Foi em 2002, aliás, com a chegada do Restaurante Mingus (no princípio, em Piedade), pelas mãos do restaurateur Nicola Sultanum, o momento em que a cozinha de Carême foi eleita para ancorar o modelo perfeito de comida de restaurante. “Grande parte dos cozinheiros daqui conhecia a estética dessa gastronomia, mas não dominava as técnicas. Se, no Rio de Janeiro e em São Paulo, essa conjuntura já estava consolidada, pelas mãos e Claude Troisgros e Laurent Suaudeau, no Recife, só a partir dessa data começamos a evoluir nesse sentido”, destaca Nicola.
Foto: Divulgação
Ou seja: se temos todo um cenário conjuntural que favoreceu o Recife a se abrir, gastronomicamente, para outras culturas, não se pode desprezar a importância que os profissionais de cozinha que lideraram esse boom gastronômico dessa geração tiveram na propagação dela. Afinal, é também nessas circunstâncias que uma tradição é construída. “Se, nesse momento de explosão gastronômica na cidade, os chefs-líderes fossem japoneses, a estética nipônica poderia se sobrepor à mesa dos restaurantes nos dias de hoje”, pondera Hugo Prouvot, chef paulista, discípulo de Laurent Suaudeu que, naquele início dos 2000, veio ao Recife comandar a cozinha do Mingus.
De lá para cá, essa cozinha de acento francês mudou. Não se encontra na cidade um restaurante com moldes franceses legítimos. “Aqui, ela não se estabelece, se não for boa. Não é como naquele tempo. Os clientes já são melhor informados, conhecem os sabores verdadeiros. Se o molho estiver pesado, ele vai reclamar”, afiança Claudemir Barros, do restaurante Wiella Bistrô. “Aqui, a França sempre foi sinônimo da parte mais educada da gastronomia. A própria ordem de servir: entrada, prato principal e sobremesa. No entanto, o Recife tem sede de mudança, dialoga com o mercado global. E aí a cozinha, mesmo sendo adepta de bases francesas, vai conversar com a de outros lugares do mundo. A estética espanhola foi uma dessas assimilações”, observa Prouvot.
Os restaurantes Mingus, Prouvot cozinha.bar, Maison do Bonfim, Wiella Bistrô e Chez Brigitte são, atualmente, os endereços em que esse tipo de gastronomia se sobressai de forma mais acentuada na capital pernambucana. “É importante registrar que a herança está, sobretudo, na técnica-base e nos insumos. Eles podem até estar em outro contexto, mas sempre que você vir, e não é raro, aspargos, mexilhões, molho madeira, reduções, carré de cordeiro, purê de batatas, steak tartare, cassoulet, magret, queijos, crostas e cogumelos, é um pouco do que a cozinha francesa nos deixou de herança de forma tão natural, que é como se fosse nosso”, enumera Claudemir.
EDUARDO SENA, jornalista, atua como assessor de imprensa na Dupla Comunicação.