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Sem bébé

TEXTO José Cláudio

01 de Novembro de 2014

Abelardo da Hora na sua primeira exposição em que me deparei com a arte da escultura

Abelardo da Hora na sua primeira exposição em que me deparei com a arte da escultura

Foto Reprodução

“Porque sem Bébé”, la-ra-la-ra-ra-ra, “ninguém pode brincar”, dizia a música do clube carnavalesco Bébé Chorão: vou perguntar a Hugo Martins se não existe gravação. O “la-ra-la-ra” era a música que entrava, ouço na memória o som do violão, o que indica instrumentos de pau e corda, logo bloco, frevo-de-bloco. A gente cantava nas noites tranquilas da Praça Maciel Pinheiro. Quem puxava a cantiga era Ionaldo: “Vamos cair na folia/divertir no carnaval”. Em tempo: você, Bébé, se foi ontem; Ionaldo, Wellington, Ivan já tinham ido; Samico se foi há pouco; Marius não sei por onde anda, espero que esteja vivo no Rio de Janeiro: me deem notícias de Marius, gente! a gente está tão sozinho! parece que daquela primeira turma mesmo do implante, do primeiro aluguel na Rua da Soledade, só tem eu e tu, Wilton. E Antônio Heráclito? Tem Reynaldo Fonseca mas era mais um apoio moral, já pintor consumado naquela época, não ficava bestando feito nós na Praça Maciel Pinheiro, no bilhar de Seu Arnaldo, nem sentado, a bunda no meio-fio no Pátio da Santa Cruz. Na Maciel Pinheiro inda tinha banco, como tem, mas quem se arriscaria hoje de passar a noite sentado ali? Mozart Siqueira recitava Annabel Lee em inglês e ia traduzindo em português para a gente entender, usando uma tradução de Machado de Assis. Eu tinha arranjado um livrão de Diego Rivera em casa da mãe de Marinho, Rua Marquês do Herval, transversal à Concórdia, senhora que costurava para esposas de pilotos americanos, e deixaram esse livro lá. O Recife era cheio de americanos, acho que base naval americana desde a Segunda Guerra.

O livro, grosso, quase três dedos de grossura, capa dura e grossa revestida de tecido azul claro, escrito em inglês, tinha um buraco no meio da capa que o próprio Marinho me confessou ter feito para servir de castiçal, onde enfiava a vela, nas frequentes faltas de luz. Era um pessoal do Rio Grande do Norte. Gosto de dar esses detalhes não sei bem pra que, talvez identificar as pessoas. Marinho era parente de um meu colega de internato do Colégio Marista, João Batista, que ainda se escrevia “Baptista”, ótima pessoa, também do Rio Grande do Norte. Aliás, muitos anos depois, nosso amigo comum ex-colega do Marista João Olympio da Porciúncula, que seguiu carreira militar, servindo em Natal, foi visitado por João Batista, me contou, cego, vendendo enciclopédia, a última notícia que tive dessas pessoas. João Olympio faleceu no Rio de Janeiro há alguns anos.

O leitor se perguntará com razão se era hora de se gastar espaço com tantas minudências quando o foco deveria ser Abelardo da Hora mas é que não me preocupo pois sempre falei e continuarei falando de Abelardo da Hora pelo resto da vida até daqui para frente com menos pudor de elogiá-lo.

Levei o livro para o Atelier Coletivo, Abelardo aprovou, único dentre nós que tinha ouvido falar de Diego Rivera, e ficou sendo nossa bíblia, principalmente minha e de Wellington, Wellington Virgulino ou Virgolino, Letinho para os mais íntimos. Jamais perdi essa admiração por Diego Rivera, meu primeiro Miguel Ângelo.

Conheci Abelardo da Hora. Eu sempre gosto de botar Abelardo “da Hora” para não confundirem com outro grande Abelardo, Abelardo Rodrigues, mais conhecido quando saí daqui, início dos anos cinquenta, na Bahia e no Rio de Janeiro e São Paulo, do que Abelardo da Hora. Toda vez que eu dizia somente “Abelardo” achavam que era Rodrigues, também por influência do irmão, o desenhista, caricaturista, pintor Augusto Rodrigues. Conheci Abelardo da Hora, dizia, em sua exposição na Rua da Imperatriz, 1948, ano da minha descoberta do Recife, pois até então estivera interno no Colégio Marista. Mesmo ano da exposição de Cícero Dias na Faculdade de Direito. Engraçado que não junto uma com outra, não sei qual a primeira nem a segunda, duas cacetadas diferentes, não sabia que decidiriam minha vida. Flanando pela Rua da Imperatriz, entrei no salão dos Comerciários e simplesmente descobri que existia uma coisa que julgara extinta havia milênios: escultura. Escultura arte viva, falando, ou melhor, gritando, pois a primeira peça com que me deparei foi A Fome e o Brado. Hoje tenho certeza que tudo o mais que aconteceu na minha vida começou ali, indiscutivelmente, e se tivesse morrido por alguma causa, ai de mim que nunca tive fôlego para grandes alturas, teria sido por causa de A Fome e o Brado.

Mas ai de mim, ai da minha vida se não tivesse sido Abelardo da Hora. Não posso imaginá-la. Tenho até medo de imaginá-la. Acho que o que Abelardo me incutiu ali foi o sentimento de grandeza, essa coisa que só quem contagia é um santo, só quem contagia é um gênio, não sei, aconteceu comigo, deve ter sido isso, alguma coisa que chegou no momento oportuno, doença que passou ainda alguns anos incubada para depois explodir irreversivelmente, uma loucura mansa que me levou a atitudes ousadas, como abandonar tudo e sair de casa, mas quem sabe isso aconteça com todo mundo só que eu não julgava tal força existente em mim. Depois que acontece, esse tipo de especulação perde o interesse, são especulações de outra pessoa que não sou mais e não consigo saber como era, assim como não poderia imaginar, como disse, qual teria sido minha vida se não tivesse me topado com Ivan Carneiro por acaso, um ex-colega do Marista, e ele não tivesse perguntado: “Ainda gosta de desenhar?” Foi o meu tolle, lege (toma, lê), que precipitou a conversão de Santo Agostinho.

O que disse à repórter do Diario de Pernambuco resume bem: “Abelardo da Hora foi o meu pai artístico. Eu tenho um pai biológico que me trouxe ao mundo e Abelardo que me trouxe ao mundo artístico. Até hoje, a minha obra é influenciada pelos ensinamentos dele: uma arte para o povo, que possa ser compreendida por todos, que não dialogue apenas com a elite. Embora tenha passado por várias fases, o meu trabalho é sempre guiado pelo que aprendi com ele”. 

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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