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O escritor que seduz pelo enigma da vertigem

'O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação', novo romance do japonês Haruki Murakami após o best-seller '1Q84', traz olhar do personagem para o seu passado

TEXTO Luciana Veras

01 de Novembro de 2014

Haruki Murakami

Haruki Murakami

Foto Divulgação

Haruki Murakami é avesso a entrevistas. “Não temos autorização sequer para encaminhar pedidos”, responde a gerência de comunicação da Objetiva, que publica o autor japonês no Brasil pelo selo de ficção literária Alfaguara. Ante a perspectiva da chegada de O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação às livrarias, neste novembro, a Continente havia encaminhado uma solicitação – afinal, quem não gostaria de entrevistar o samurai nipônico? Ele, porém, aparenta ser sucinto, econômico nas palavras como seu novo protagonista, e “rigorosamente” contrário à ideia de partilhar um pouco do seu tempo com jornalistas, como enfatiza a porta-voz da editora. Em agosto, o jornal britânico The Guardian vaticinou: “Haruki Murakami é um homem difícil de rastrear. Mal aparece publicamente ou concede entrevistas”.

Eis que, nesse mesmo mês, o escritor foi ao Festival Internacional do Livro de Edinburgh, na Escócia, onde também participou de um evento patrocinado pelo periódico inglês e assinou cópias do seu mais recente livro. Descrito pelo The Guardian como o “mais popular escritor cult do mundo”, foi saudado por fãs que haviam passado 18 horas na fila, somente para vê-lo. No seu país natal, onde O incolor Tsukuru Tazaki… foi lançado em abril de 2013, as vendas superaram a marca de um milhão de exemplares, em menos de um mês. Lá, ele é estrela desde 1987, quando Norwegian wood, com seu título beatle e sua pungente narrativa de amor e perda adolescente, foi comercializado aos milhares. Em 2009, com o primeiro volume da trilogia 1Q84 nas livrarias japonesas, a epidemia Murakami, não mais uma condição insignificante, alastrou-se com força do Oriente ao Ocidente. Três anos depois, em Paris, quem estivesse no metrô só enxergava passageiros com diferentes versões dos três tomos no colo.

Mas, que há nesse autor de 13 romances – Caçando carneiros (1982), Minha querida Sputnik (1999), Kafka à beira-mar (2002) e Após o anoitecer (2004) são alguns deles, disponíveis no Brasil via Alfaguara – e outros tantos volumes de contos ou relatos autobiográficos, que cativa leitores ao redor do globo? O que leva Patti Smith, poeta, cantora, escritora e entidade pop, a produzir uma delicada e profunda resenha de O incolor Tsukuru Tazaki…, publicada no The New York Times? O que incita constantes rumores sobre o prêmio Nobel de Literatura – quem sabe agora em 2015?

“Não sou misterioso”, soltou o próprio, em recente conversa com um felizardo repórter do The Guardian. Contudo, seus livros são. Constituem narrativas em que à realidade são adicionados enigmas além da esfera do cotidiano, ora levando os protagonistas a jornadas nas quais o sobrenatural se entrelaça com todo e qualquer tipo de banalidade, ora fazendo-os mergulhar em situações distópicas que os confrontam com fantasmas e/ou duplas versões de si mesmos.

“Assim como ele tem uma ampla gama de leitores, o seu estilo é muito diverso. Por exemplo, 1Q84 é de uma dicção mais comercial, com duas histórias fantásticas correndo em paralelo. Ao mesmo tempo que tem qualidade literária, tem um senso de humor peculiar, muito curioso. Em outros livros, ele cita os clássicos, mas também passeia por várias camadas em que o pop ocidental e a cultura japonesa se fazem presentes. É uma literatura de qualidade alta, com apelo comercial, humor sutil e uma construção narrativa quase hipnótica, que vai levando o leitor, com habilidade, a um caminho em que se cruzam a ironia, o fantástico e várias referências literárias”, pontua Marcelo Ferroni, escritor e o editor responsável na Alfaguara pelas versões brasileiras de Murakami.

PENTAGRAMA EM COR
Em O incolor Tsukuru Tazaki…, outra obsessão do samurai, a música, torna-se um dos fios condutores da trama. A suíte para piano Os anos de peregrinação, considerada uma das obras-primas do compositor húngaro Franz Liszt (1811-1886), é ouvida por Tsukuru enquanto tenta compreender os acontecimentos que, 16 anos atrás, alteraram por completo sua vida. Quando era adolescente, em Nagoya, ele era a quinta ponta de um pentagrama composto por outros dois rapazes e duas garotas. “Em se tratando de condições de vida, os cinco tinham muito mais pontos em comum do que diferenças”, escreve Murakami, logo no início. Porém, o sobrenome dos outros quatro continham o nome de uma cor: Akamatsu e Ômi, os jovens, eram “pinheiro vermelho” e “mar azul”. As meninas Shirane e Kurono eram, respectivamente, “raiz branca” e “campo preto”.

Logo se tornaram Vermelho, Azul, Branca e Preta. Só ele não tinha sua alcunha cromática. “Como seria legal, se eu também tivesse um sobrenome colorido, várias vezes Tsukuru pensou, sério. Assim, tudo seria perfeito”, escreve Murakami. Entretanto, tudo era perfeito: entre os cinco amigos, havia “liga”, afeto e intimidade. E, mesmo sem um apelido, o protagonista seguia orgulhoso até do seu nome, que em japonês significa “construir” ou “fabricar” – não por acaso, ele é construtor de estações ferroviárias: “Tsukuru viu em alguma revista ou algum jornal a estatística de que cerca da metade das pessoas do mundo não está satisfeita com o próprio nome. Mas ele próprio pertencia à metade que tinha sorte. Pelo menos, não se lembrava de ter sentido insatisfação com o nome que recebera. Melhor dizendo, ele tinha dificuldades em se imaginar com outro nome, ou imaginar a vida que levaria com outro nome”, lê-se à página 12.



Imagem: Divulgação

Nada é o que aparenta ser nas construções literárias de Haruki Murakami. Assim, um dia, sem explicação alguma, Tsukuru é excluído do círculo colorido. Apartado daqueles que mais conferiam sentido à sua existência, pensa em se esvair. Anseia pela morte. Mas ela não vem e ele se reergue, não sem mágoa, que tranca em seu cofre emotivo. Anos depois, ao conhecer uma mulher com quem passa a se relacionar, é instigado por ela a investigar o que causou tal ruptura. Em O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação, há sonhos sexuais, trens, sensações inexplicáveis e longos solilóquios, em que a voz do narrador em terceira pessoa adentra a fragmentada mente do protagonista.

APOSTA EDITORIAL
O romance é a aposta da editora para o fim do ano. “É o livro comercialmente mais importante, que vem com uma campanha forte de divulgação. Murakami é um dos autores da Alfaguara que mais vendem, junto com Mario Vargas Llosa e Elizabeth Gilbert”, situa o editor Marcelo Ferroni. A tiragem do título será de 15 a 20 mil exemplares. Para se ter uma ideia do crescente status mercadológico do escritor, quando Kafka à beira-mar saiu no Brasil, em 2008, 3 mil cópias foram colocadas no mercado. “Ele vendia pouco, como normalmente vende um autor estrangeiro, e a gente não reimprimia. Quando foi lançado o primeiro volume de 1Q84, ele deu um salto. Foi o livro que mudou Murakami de patamar e marcou uma nova fase de publicação na editora. Agora, queremos publicar muitos títulos dele”, explica Ferroni. A trilogia 1Q84 vendeu cerca de 70 mil exemplares. Foi traduzida direto do japonês, assim como os outros, com exceção de Minha querida Sputnik e da autobiografia Do que falo quando falo de corrida (2007), vertidos do inglês.

Entre os leitores que se encantaram pelo samurai nipônico a partir da explosão de 1Q84, aventura em dois tempos, ambientada no mesmo ano do clássico de George Orwell, estão o designer Ceó Pontual e a servidora pública federal Janaína Góes. Membros de uma confraria literária criada por amigos no Recife, são fãs e difusores. “O primeiro que li foi 1Q84, que estava saindo em todas as listas dos mais vendidos. Comprei o primeiro achando que o terceiro já tinha saído, li o primeiro e o segundo e tive que esperar seis meses pelo último volume. Adorei a escrita dele e os personagens, sempre solitários e interessantes. Gostei tanto, que, depois, li Caçando carneiros. Quero ler outros”, diz Pontual.

Janaína se “iniciou” com South of the border, west of the sun (1992), ainda inédito no Brasil. “Foi indicação de uma amiga. Depois, no nosso grupo literário, ganhei de presente o primeiro volume de 1Q84”, conta. Ao irmão, que gosta de correr, deu Do que falo quando falo de corrida, no qual Murakami discorre sobre seus hábitos de maratonista com a mesma capacidade de sedução com que conta a bizarra história do Hotel Dolphin, em Dance dance dance (1994) – publicado no Brasil pela Estação Liberdade e já na lista dos futuros lançamentos da Alfaguara.

Para o bancário Bruno Garret, Murakami enfeitiça por não pensar no leitor como criança. “A literatura dele nos obriga a ir fundo e abrir mão do celular, das redes sociais, do Netflix, para sentir e absorver o universo que ele cria. Seus mundos distópicos e paralelos, cheios de vontades não resolvidas, são povoados por personagens que se movem na solidão. O melhor é que nada ganha explicação fácil”, argumenta Garret, que já leu cinco livros do autor e mantém a própria produção literária no blog O melhor nada do mundo. “Seus livros possuem leveza e graça mesmo nas cenas mais duras, e ele é um dos escritores que melhor falam sobre solidão. Os personagens, mesmo cercados por uma multidão, não têm ninguém por perto”, acrescenta.

É o que pode ser dito, por exemplo, a respeito de Toru Okada, o protagonista de The wind-up bird chronicle (1994-1995, publicado nos Estados Unidos em 1997), tido por muitos críticos como a quintessência da obra de Murakami. Com o sumiço do gato de estimação, Okada parte em uma peregrinação que inclui descidas a um poço seco numa casa abandonada na vizinhança, encontros estranhos com videntes com nomes de ilhas ou com militares veteranos que reavaliam o papel do Japão na Segunda Guerra Mundial, visitas a quartos de hotel em uma dimensão paralela e o desaparecimento da esposa. Tudo isso enquanto ele passa roupas (uma obsessão do escritor), cozinha espaguete, bebe cervejas, observa o jardim à luz do entardecer e ao som do pássaro do título.

The wind-up bird chronicle e as duas primeiras novelas Hear the wind sing (1979) e Pinball, 1973 (1980) vão ser traduzidos pela Alfaguara. Antes, porém, vêm as versões nacionais das compilações de contos The elephant vanishes (publicada em inglês, em 1993, e em japonês, em 2005) e Men without women (lançada neste ano e disponível apenas no mercado nipônico, ainda sem tradução para o inglês). O editor Marcelo Ferroni revela que inúmeros convites já foram feitos para que Haruki Murakami venha ao Brasil. Nenhum foi aceito. Talvez ele prefira se deslocar pouco de sua casa, nos arredores de Tóquio. Que venha sua obra, então. Costurada por fios detetivescos e contos de fadas às avessas, alinhavada com ficção científica, o trinômio amor/sexo/paixões intensas e situações kafkanianas, ela se constitui uma literatura tão surreal e indecifrável quanto trivial e corriqueira. Como a vida. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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