Por outro lado, dentro de uma análise dos meios técnicos que marcam sua trajetória – para não usar o termo evolução –, podemos observar que a fatura adensada de sua paleta inicial, com quantidades de tinta que também são expressão e forma de suas paisagens, carretéis e abstrações, remetendo-nos à riqueza de luzes e cores dos nenúfares e catedrais de Monet, vai aos poucos se diluindo, refinando-se, quase se aquarelando, para alcançar a expressão mais pura de personagens dramaticamente solitários em ambientes misteriosamente vazios, onde a linha do horizonte ou a delimitação do espaço sucumbem sob a força absoluta daquelas figuras.
EXPRESSIONISMO
Um dos grandes méritos de Iberê no contexto da arte brasileira é a sua não adesão, ao longo de sua formação, aos movimentos pós-modernos e seus desdobramentos concretos, neoconcretos, construtivistas e suas filiações. Isso lhe permitiu, já na maturidade (década de 1980), estar em sintonia não apenas com a pintura das novas gerações, mas ser uma referência para jovens artistas que buscavam, em meio às ondas de cada momento, reconhecer em sua figuração expressionista um idioma da autenticidade.
Desde o seu começo como pintor, independentemente de uma defasagem temporal com os movimentos expressionistas europeus e americano, sua pincelada e seu olhar já eram assimétricos, estando à frente, se comparados à pintura realizada no Brasil. Mesmo assim, entre os mestres com quem aprendeu e de quem recebeu alguma influência, talvez Oswaldo Goeldi, Guignard e De Chirico – de quem foi aluno em Roma – tenham formado a tríade de seu arcabouço crítico e estético. Influências indiretas podem ser anotadas, principalmente de suas observações em museus europeus e nas aulas com André Lhote, em sua estada em Paris, ou ainda de pintores do pós-guerra, como Jean Dubuffet e Jean Fautrier. Embora o brasileiro Iberê não tivesse vivenciado a guerra, viveu a sua angústia, a distância. Da pintura americana, principalmente do que começava a ser exposto em grandes centros como Nova York, relações pontuais podem ser observadas entre Iberê, Pollock e De Kooning.
Iberê sempre foi um bom leitor – chegou a escrever contos e memórias –, e entre seus autores preferidos figuravam nomes como Dostoiévski, Camus, e clássicos da filosofia como Platão, Nietzsche, Heidegger e, principalmente, Kierkegaard, por quem tinha especial admiração. Gostava de Kafka. Quem sabe esse elenco de grandes criadores de universos incomuns tenham alimentado e encontrado em sua pintura o campo ideal para suas reverberações. Ou, talvez, o sentimento trágico de suas figuras, quase sempre num extremo de abandono e depressão, mesmo quando num banco de praça ou num passeio de bicicleta reflita, em muito, suas leituras filosóficas, cuja investigação do sentido trágico da existência incidia diretamente em seu gesto pictórico.
Figuras recorrentes em seus trabalhos, esses personagens fantasmagóricos trazem consigo um tom melancólico e angustiante. Foto: Fabio del Re/Divulgação
Mesmo tendo estudado formalmente com alguns dos melhores artistas-professores do seu tempo, e frequentado, mesmo por um breve tempo, as melhores escolas de arte, sua transgressão era manter-se longe de modismos e tendências, o que o deixava livre para a busca da própria linguagem, pensamento e filosofia. Um exemplo de sua afinidade com a literatura e com grandes escritores pode ser observado em 1971: homenageado com sala especial na XI Bienal de São Paulo, seu catálogo foi escrito pelo poeta Joaquim Cardozo.
Dos artistas brasileiros que conheceu ou com quem conviveu, como Portinari, Lasar Segall, Lívio Abramo, Guignard e Oswaldo Goeldi, desses dois últimos Iberê recebeu as principais influências em seu período de formação. Ambos, aliás, foram seus professores. Talvez por isso, vejo na ambiência escura dos carretéis dos anos 1960 relações com a gravura noturna de Goeldi: o próprio Iberê via nos escuros goeldianos “uma visão trágica e silenciosa dos homens e das coisas” – visão que, nas décadas seguintes, passaria a ser traduzida em suas pinturas. Não obstante, a figura humana será, a despeito de suas poucas e belas paisagens e de suas séries de carretéis e pinturas abstratas, o centro de sua obra pictórica – e aqui não relaciono a grande obra em gravura de Iberê, para a qual outros elementos também se prestavam como tema.
MOVIMENTO
Em sua pintura, desde os primeiros quadros (onde a paisagem é o tema), a solidão (ou o peso de uma ausência) é sempre o leitmotiv por trás das naturezas-mortas, nas ruas vazias de Santa Teresa – bairro do Rio onde morou –, como imagem de um silêncio sempre em tensão, primeiro e último registro de uma angústia latente – pintura como catarse, como revelação do que não se quer ou não se pode sentir. Em contraponto, a ideia ou sensação de movimento está presente em quase toda pintura de Iberê. Desde suas primeiras paisagens, mesmo diante do vazio das ruas, será o movimento da luz, a impressão do que fica ou passa sob esse ritmo, que predominará.
Seus carretéis e bicicletas, signos e símbolos do movimento e das brincadeiras da infância, assumem esse duplo valor: conduzir o homem até o menino, religar a angústia do adulto à angústia da infância ou de sua perda. Este será o seu principal item de investigação – principalmente em seus ciclistas fantasmáticos, que parecem buscar ou ultrapassar a atáxica demência dos idiotas sentados num banco de parque, onde a luz outra vez é o que faz desses quadros retratos de uma tensão na iminência do acontecimento. Tudo, na mais imóvel das figuras, será consequência da explosão dos núcleos de seus carretéis, do instante primordial do reconhecimento da dolorosa condição humana, de um big bang em direção ao fim.
Neste que é seu último quadro, apesar de haver mais de uma figura, há um grande vazio entre elas, deixando-as ainda mais sós. Foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti/Divulgação
Diante de uma pintura de Iberê, o sentido latente do silêncio, do isolamento e, finalmente, da solidão, é permanente. Mas, ali, o que há é o silêncio materializado em figuras e espaços, construção plástica de uma solitude que, por fim, ao ser também pensamento e reflexão sobre o mundo ao redor, nos faz companhia e nos convoca a decifrar o seu ascetismo como espelho ou janela de uma filosofia humanística. Em sua pintura da matéria, ou notadamente em suas pinturas de abstração expressionista, essa janela se abre sobre inquietações decorrentes também de sua busca por companhia, por figuras e espaços que são descobertos ora pela supressão do objeto, ora pela adição da matéria, desvelados pela ausência de qualquer formulação lírica, em que a dramaticidade do gesto e dos vazios, preenchidos amplamente pelo movimento expressivo da luz também é a passagem e o envelhecimento do tempo.
No campo de sua pintura dita abstrata – que em Iberê é consequência e desenvolvimento da dissolução dos seus carretéis – um paralelo, mesmo distante, poderia ser encontrado na pintura de Jorge Guinle, ainda que nos quadros de Guinle a angústia ou a alegria fossem traduzidas em explosões de cores, enquanto Iberê aprofunda a sua antítese numa fatura tão densa de camadas de tinta, que as cores parecem imersas ou em processo de submersão na escuridão de um espaço cósmico. Mesmo assim, habitando aquele outro polo da luz em sua abstração expressionista, Jorge Guinle ainda seria o único pintor brasileiro a trabalhar a superfície da pintura com a mesma violência, mesma carga emocional traduzida pelas massas espessas que Iberê Camargo usava naquela fase. Ainda: a partir da década de 1970, com seus carretéis (evolução de naturezas-mortas dos carretéis com laranjas), Iberê inicia o caminho para uma pintura abstrata muito particular – com filiações em Pollock, principalmente nas pinturas da série Núcleo em expansão – mesmo que sua abstração, como a de Pollock, fosse uma figuração da matéria, uma abstração como retratos da luz e dos contornos da forma em movimento, como nas fotografias em que mal percebemos imagens dissolvidas de carros em velocidade. Por isso também Iberê foi um mestre de um expressionismo abstrato que se esgotou em si mesmo – uma vez que ele voltou à figuração – e de um expressionismo figurativo no qual foi o mais puro Iberê: a sua assinatura plástica, reconhecível e inconfundível.
MELANCOLIA
A solidão, tema do último quadro, está presente em praticamente todas as pinturas dos anos 1990 – talvez, até, já nas primeiras paisagens e ruas vazias dos anos 1940 e 1950 – assim como em todos os estudos e desenhos dos últimos anos de vida. Em pinturas como A idiota, assim como nos cinco quadros da série Tudo te é falso e inútil, é clara a amplidão da melancolia, a espacialidade do pessimismo que induz à solidão, a mesma solidão profunda e definitiva de No vento e na terra I e II (1991), em que o abandono e a tristeza atravessam o dia e a noite, imóveis. Aprofundando uma investigação mais psicológica do que propriamente pictórica, mesmo nos quadros nos quais há mais de uma figura – como no último Solidão, de 1994 – é o vazio que está presente entre elas, o que justifica imaginarmos que, até por se perceberem existir, essas figuras estão ainda mais sós.
Não se pode explicar totalmente o conjunto de uma obra ou alcançar um sistema absoluto para decifração de fontes e justificações racionais de uma estética, uma vez que sua construção, de ordem muitas vezes subjetiva, é formada também – além de escolas e influências – pelas experiências pessoais, emocionais, intuitivas, elementos formadores de algo ainda mais subjetivo: o gênio íntimo, individual e imperscrutável de cada artista. Em nosso tempo, nesta segunda década do século 21, em que as cidades são a angústia paralisada das multidões e dos engarrafamentos, os ciclistas de Iberê, expostos e abertos ao mundo, nus como figuras plasmáticas ou fantasmagóricas, são o testamento deixado e prenunciado por uma angústia antiga que, de alguma forma, prediz o que sentimos. Os ciclistas de Iberê, desde então, são a nostalgia de um passado que reencontra o nosso presente – este futuro de hoje – e suas bicicletas são símbolos de uma harmonia ainda por vir.
WEYDSON BARROS LEAL, poeta, escritor e crítico de arte.
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