FOTOS SÍLVIO BARRETO
01 de Novembro de 2014
A Cia. Cadências prepara-se para encontro nacional
Foto Sílvio Barreto
Dançar, seja nos palcos, nos bailes ou nas pistas, sempre foi uma atividade vinculada a vigor e disposição física, principalmente nas sociedades guiadas por um tecnicismo exacerbado que, entre outras consequências, dissemina o individualismo e incentiva a competitividade. E mesmo que haja tantas variáveis dessa linguagem artística, e tantas formas de vivenciar a dança, como profissão, terapia ou no viés educacional, todos os caminhos levam ao mesmo estereótipo de bailarino ou dançarino de formas irretocáveis.
“O acesso à dança ainda é associado ao ideário de corpo perfeito, um corpo eficiente e virtuoso que, para o senso comum, não é sinônimo de corpo com deficiência”, aponta a pernambucana Ana Cecília Soares, mestre em Dança pela Universidade Federal da Bahia, que, desde 2002, pesquisa sobre o tema Dança e pessoas com deficiência e, desde 2004, atua como professora em associações e projetos desse segmento específico.
Talvez esse entendimento de dança seja uma das principais barreiras para o desenvolvimento do que se convencionou chamar de dança inclusiva, um movimento que aumentou significativamente nas últimas três décadas, no país e no mundo. “Apesar de comumente utilizado, não há um consenso em relação ao termo. Muitos pesquisadores e artistas não acreditam na forma como a inclusão vem sendo feita e defendem que a utilização do termo é pejorativa e, em vez de ajudar, reforça ainda mais a ideia de exclusão. Assim como o professor Henrique Amoedo – que foi o primeiro a utilizar essa nomenclatura no Brasil –, eu uso, mas ressalvo que é uma dança temporariamente inclusiva, e que só existe quando atuam na mesma cena bailarinos/dançarinos com e sem deficiência”, explica Ana Cecília.
Em Pernambuco, os trabalhos e pesquisas de dança inclusiva são incipientes, a exceção fica por conta da Cia. Cadências, coordenada pela professora Liliana Martins, fundada em 2011, que trabalha com bailarinos cadeirantes e andantes, e está em processo de profissionalização. “Trabalhamos com danças de salão e esportiva (de salão internacional), mas também estamos investindo numa formação em danças populares do Nordeste e nos ritmos afro-brasileiros”, conta Liliana, que já atuava no circuito de salão há mais de 10 anos, quando resolveu iniciar um trabalho com cadeirantes.
Sobre a motivação para enveredar nesse campo, ela diz que “o desejo surgiu depois que conheci o casal baiano Anete e Cabral. Ela andante, ele cadeirante, campeões de dança esportiva sobre cadeira de rodas que vieram fazer uma espécie de intercâmbio na companhia em que eu atuava como bailarina-atleta e professora”. O elenco da Cia. Cadências foi se formando aos poucos e, talvez por se tratar de dança de salão, acabou atraindo casais (ainda que o fato de ter parceiro não seja pré-requisito para o ingresso no grupo) ou até servindo de estímulo para que novos pares surgissem no decorrer das aulas e ensaios, que costumam acontecer nas tardes de sábado, na quadra de uma escola pública no Bairro de Jardim São Paulo, zona sul do Recife.
Elaine Paz e Bruno Costa já eram casados, quando decidiram entrar na companhia. “A única experiência anterior dele foi quando fez parte de um grupo de hip hop ainda na sua cidade natal, Campina Grande. Eu adoro dança e já praticava também dança cigana, mesmo depois de ter me tornado tetraplégica, quando os sintomas da distrofia muscular degenerativa começaram a aparecer”, comenta Elaine, 33, funcionária da Prefeitura do Recife, que cursa graduação em Serviço Social, e encontra tempo para trabalhar como voluntária na Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência – CD, além de “dançar muito”.
BENEFÍCIOS
A prática da dança trouxe para Elaine, além de outros ganhos significativos na qualidade de vida, a recuperação de alguns movimentos de pescoço e tronco, que ela já havia perdido por causa do avanço da doença. “Os médicos diziam que era impossível qualquer tipo de recuperação, ficaram muito admirados.” Protagonista de uma história de amor incrível – que teve que vencer, entre outras dificuldades, a distância geográfica e as restrições religiosas da igreja evangélica Avivamento Bíblico, que Bruno frequentava e que não considerava uma mulher com deficiência digna de cumprir o papel de esposa –, o casal agora vive a expectativa de participar pela primeira vez de um evento de dança esportiva em cadeira de rodas, que vai acontecer em São Paulo, em dezembro. Bruno e Elaine vão apresentar uma coreografia na Mostra Livre.
Rogério Silva e Nina Souza vão competir na Categoria Estreante, na 13ª Mostra de Dança em Cadeiras de Rodas
Quem vai competir na Categoria Estreante pela Cia. Cadências é outro casal: Nina Souza e Rogério Silva. Ele, bailarino do grupo de dança afro Zambo Clã, do Ibura, foi convidado por Liliana Martins para dar aulas na Cia. Cadências. Lá chegando, rendeu-se completamente ao novo trabalho, e aos encantos da bailarina Nina. Quem a vê dançando, e fazendo evoluções sobre apenas uma das rodas da sua cadeira adaptada, não imagina que ela, que se diz muito tímida, nunca tinha andado de cadeira de rodas (usa um triciclo personalizado, construído pelo seu pai, para se locomover) até entrar na companhia. “Isso porque, como tenho a doença conhecida como ossos de vidro, morria de medo de cair.”
As quedas e os temores ficaram para trás, quando a dança se tornou também uma possibilidade profissional para Nina, que já trabalha como intérprete de libras e colabora como voluntária da FCD. A competição na 13ª Mostra de Dança em Cadeiras de Rodas está exigindo treinamento extra, três vezes por semana, para “melhorarmos o nível técnico e aprendermos as regras do campeonato”, dizem os participantes.
O professor Júlio Pascoal, Rilmar Barbosa, o pequeno José Cauã e sua mãe Márcia Cristina completam o elenco da Cia. Cadências, todos com histórias tocantes para contar e construir por meio da dança.
“Eu achava que nunca mais iria dançar, depois que sofri o acidente de carro e fiquei paraplégica. Agora sei que estamos só no começo e que a dança, além de nos dar força e alegria, pode ser também uma profissão para nós cadeirantes. Ela é a vida da alma”, afirma Rilmar Barbosa, uma das fundadoras da Cia. Cadências, que agora se apresenta em eventos como o Dançando na rua, e desenvolve atividades para arrecadar dinheiro que possa garantir a ida de toda a companhia para o campeonato nacional. “Mesmo os que não forem se apresentar vão para participar das oficinas, palestras e assistir à Mostra”, esclarece Rilmar.
AVALIAÇÃO
Seja em competições, festivais ou curadorias, quando pessoas com deficiência decidem dançar, surgem logo dúvidas acerca do processo de avaliação, até mesmo porque é comum que esse tipo de episódio provoque uma comoção generalizada, que pode interferir no resultado do processo.
Sobre isso, Ana Cecília opina: “A análise estética deve ser feita com os mesmos parâmetros de qualquer outra obra artística de dança. Porém, o trabalho deve ser considerado dentro da perspectiva em que foi desenvolvido, se na arte-educação, na arte-terapia ou como expressão artística de dança. A grande questão é não negar a deficiência, mas também não fazer dela a razão de ser do trabalho artístico”. Antes disso, é importante que público, críticos e até os próprios artistas com deficiência entendam que “o oposto de eficiência não é deficiência, isso é ineficiência”.
Fazendo um resgate da história da arte, a pesquisadora explica que “a presença de corpos com deficiência em cena esteve sempre ligada ao exótico, e a permissão para que esse corpo atuasse estava ligada a esse exotismo”. Para reverter esse quadro, os militantes do Movimento Inclusivista têm discutido e proposto, em encontros e congressos, atividades e elaboração de documentos oficiais que possam, num breve futuro, garantir que os artistas profissionais sejam vistos e analisados pela sua arte e não pela sua deficiência, alcançando autonomia e independência. “Muito já foi conquistado, mas ainda há muito o que pesquisar, conversar, vivenciar”, pontua Ana Cecília.
CHRISTIANE GALDINO, jornalista, professora e doutoranda em Antropologia pela UFPE.
SÍLVIO BARRETO, fotógrafo.