Curioso é que sua trajetória de tecer narrativas em múltiplas linguagens começou num sítio na zona rural de Feira de Santana, a 117km de Salvador, onde ela morou até os 18 anos com os pais e dois dos sete irmãos. “Criava bicho, plantava, prestava atenção ao ciclo da semente”, relembra, “mas não pensava muito, apenas vivia intensamente”. No momento de escolher o que estudar, seu pai, um comerciante, sugeriu-lhe Arquitetura. “No período da inscrição para o vestibular, teve uma excursão para a Bienal do Recôncavo, em São Félix. Foi a primeira vez que vi uma mostra artística. Essa experiência definiu um caminho. Decidi: 'quero ser artista’”, conta.
A instalação Studio Butterfly resulta da convivência, durante dois anos, com travestis.
Foto: Virginia de Medeiros/Divulgação
Houve o prenúncio das constantes reinvenções às quais ela e seus personagens se submetem: em vez de Arquitetura, Virginia optou por Artes Plásticas e foi aprovada na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Confidenciou à mãe que não tinha coragem de contar ao pai. “Ela me respondeu: ‘minha filha, mentir para conquistar a liberdade não faz mal’. Ganhei a possibilidade de trabalhar num plano imaginário”, recorda a artista, radicada há seis anos em São Paulo, mas essencialmente uma andarilha em busca de vivências na região fronteiriça entre ficção e documentário.
Intimidade de uma velha prostituta norteia a obra Em torno dos meus marítimos, exposta no MAR. Foto: Virginia de Medeiros/Divulgação
“A rua é meu laboratório”, prossegue. Em Sérgio e Simone, por exemplo, ela passeava por uma área degradada no centro de Salvador, quando conheceu uma travesti que havia se proclamado guardiã de uma fonte. Passou a filmá-la com a mesma confiança e intimidade com que anos depois fotografaria Marinalva, a velha prostituta da série Em torno dos meus marítimos (2014), atualmente exposta no MAR - Museu de Arte do Rio. Quando seu interlocutor sofreu uma overdose e, na colisão com a finitude da vida, resolveu se converter, saiu Simone, ressurgiu Sérgio. Já como pastor evangélico, ele adotou a obra que Virginia realizou como "testemunho de fé" e prova de sua nova orientação sexual. “Nele há uma subjetividade complexa, que atua em um jogo de formação e dissolução de figuras. A montagem em três telas na Bienal é para potencializar o conflito”, explica.
Em Fala dos confins, Virginia remete-se às memórias do pai caminhoneiro e projecionista. Foto: Virginia de Medeiros/Divulgação
Virginia se interessa pelo outro de uma forma que descreve como “quase obsessiva”: “Há uma sensação de incompletude que o outro preenche; meu trabalho é também um processo de autoconhecimento”. Sua criação é um mergulho, um estado em que ela procura ampliar limites ou anular certezas. Em Studio Butterfly (2004-2006, presente na 27ª Bienal de São Paulo), foram dois anos de convivência com travestis, para dali nascer uma instalação, um livro de contos e um vídeo do qual ela afasta rasas tentativas de deliberação. “A verdade não está no fato, está no sentimento. Trabalho com a fabulação, com a liberdade da distorção. Posso distorcer a partir do que senti ao gravar o relato deles, por exemplo, mas, quando faço isso na edição, é para trazer a complexidade do personagem e não para cair na minha moral”, conceitua.
A performance Jardim das torturas surgiu a partir da imersão da artista em rituais sadomasoquistas. Foto: Henrique Lukas/Divulgação
Sua construção como artista se dá no “ao longo” da jornada. E sua inserção varia conforme os suportes a demarcar o escopo de uma determinada obra. Em Fala dos confins (2010), apropriou-se das lembranças do pai como caminhoneiro e projecionista de cinema e transformou uma kombi “no resgate de memória afetiva e da oralidade do sertanejo para escutar literatura na voz”. Para Fábula do olhar (2013), perguntou a moradores de rua de Fortaleza como se idealizariam, se essa chance lhes fosse dada. Fotografou-os em preto e branco e deu os originais a um famoso fotopinturista cearense, mestre Júlio Santos, que retocou as imagens, fundindo realidade e desejo de representação. Jardim das torturas (2012-2013), uma bolsa concedida pela Funarte, levou-a à Casa do Sol, outrora residência da escritora Hilda Hilst (1930-2004), onde Virginia desenvolveu uma série em que conviveu com uma família adepta dos rituais sadomasoquistas de dominação, dos quais ela participa com uma performance.
A obra Aphasia foi criada para o projeto Vídeo Guerrilha, exibido na fachada de prédio paulistano. Foto: Virginia de Medeiros/Divulgação
Suas referências são enumeradas na mesma velocidade com que discorre sobre seus projetos: Genet, Stendhal, Tolstói e Guimarães Rosa são escritores que cultua; Tarkóvski e Pedro Costa simbolizam o cinema que a cativa; e Isaac Julien, Nan Goldin e Cao Guimarães são artistas que admira. Virginia de Medeiros, 41, já foi ao Timor-Leste, ao Canadá, a Angola, a Nova York, e mais além, se contarem todas as suas exposições. “Mas, para falar a verdade, acho que a minha fortaleza está na minha infância, na roça... no sertão que carrego comigo.”
LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.