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Virginia de Medeiros

A verdade está no sentimento

TEXTO Luciana Veras

01 de Outubro de 2014

Entrevista com moradores de rua de Fortaleza gerou série de perfis fotográficos, 'Fábula do olhar'

Entrevista com moradores de rua de Fortaleza gerou série de perfis fotográficos, 'Fábula do olhar'

Imagem Virginia de Medeiros/Divulgação

Se fosse instada a completar a frase que serve de tema à 31ª Bienal de São PauloComo (…) coisas que não existem –, talvez a artista visual baiana Virginia de Medeiros optasse por um verbo de que lança mão com frequência: sentir. Porque a percepção é parte essencial em suas obras. Nelas, o público reconhece a travessia empreendida até a obtenção do resultado; em troca, recebe a partilha de algo vivenciado por Virginia e traduzido – com subtrações e adições inevitáveis – em uma fotografia, uma performance, um livro ou uma videoinstalação, a exemplo de Sérgio e Simone (2009-2014), registro audiovisual mostrado numa das salas do pavilhão desta edição da exposição no Parque do Ibirapuera.


Trabalho Sérgio e Simone está em exposição na 31ª Bienal de São Paulo. Foto: Pedro Ivo Trasferetti/Divulgação

Curioso é que sua trajetória de tecer narrativas em múltiplas linguagens começou num sítio na zona rural de Feira de Santana, a 117km de Salvador, onde ela morou até os 18 anos com os pais e dois dos sete irmãos. “Criava bicho, plantava, prestava atenção ao ciclo da semente”, relembra, “mas não pensava muito, apenas vivia intensamente”. No momento de escolher o que estudar, seu pai, um comerciante, sugeriu-lhe Arquitetura. “No período da inscrição para o vestibular, teve uma excursão para a Bienal do Recôncavo, em São Félix. Foi a primeira vez que vi uma mostra artística. Essa experiência definiu um caminho. Decidi: 'quero ser artista’”, conta.


A instalação Studio Butterfly resulta da convivência, durante dois anos, com travestis.
Foto: Virginia de Medeiros/Divulgação

Houve o prenúncio das constantes reinvenções às quais ela e seus personagens se submetem: em vez de Arquitetura, Virginia optou por Artes Plásticas e foi aprovada na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Confidenciou à mãe que não tinha coragem de contar ao pai. “Ela me respondeu: ‘minha filha, mentir para conquistar a liberdade não faz mal’. Ganhei a possibilidade de trabalhar num plano imaginário”, recorda a artista, radicada há seis anos em São Paulo, mas essencialmente uma andarilha em busca de vivências na região fronteiriça entre ficção e documentário.


Intimidade de uma velha prostituta norteia a obra Em torno dos meus marítimos, exposta no MAR. Foto: Virginia de Medeiros/Divulgação

“A rua é meu laboratório”, prossegue. Em Sérgio e Simone, por exemplo, ela passeava por uma área degradada no centro de Salvador, quando conheceu uma travesti que havia se proclamado guardiã de uma fonte. Passou a filmá-la com a mesma confiança e intimidade com que anos depois fotografaria Marinalva, a velha prostituta da série Em torno dos meus marítimos (2014), atualmente exposta no MAR - Museu de Arte do Rio. Quando seu interlocutor sofreu uma overdose e, na colisão com a finitude da vida, resolveu se converter, saiu Simone, ressurgiu Sérgio. Já como pastor evangélico, ele adotou a obra que Virginia realizou como "testemunho de fé" e prova de sua nova orientação sexual. “Nele há uma subjetividade complexa, que atua em um jogo de formação e dissolução de figuras. A montagem em três telas na Bienal é para potencializar o conflito”, explica.


Em Fala dos confins, Virginia remete-se às memórias do pai caminhoneiro e projecionista. Foto: Virginia de Medeiros/Divulgação

Virginia se interessa pelo outro de uma forma que descreve como “quase obsessiva”: “Há uma sensação de incompletude que o outro preenche; meu trabalho é também um processo de autoconhecimento”. Sua criação é um mergulho, um estado em que ela procura ampliar limites ou anular certezas. Em Studio Butterfly (2004-2006, presente na 27ª Bienal de São Paulo), foram dois anos de convivência com travestis, para dali nascer uma instalação, um livro de contos e um vídeo do qual ela afasta rasas tentativas de deliberação. “A verdade não está no fato, está no sentimento. Trabalho com a fabulação, com a liberdade da distorção. Posso distorcer a partir do que senti ao gravar o relato deles, por exemplo, mas, quando faço isso na edição, é para trazer a complexidade do personagem e não para cair na minha moral”, conceitua.


A performance Jardim das torturas surgiu a partir da imersão da artista em rituais sadomasoquistas. Foto: Henrique Lukas/Divulgação

Sua construção como artista se dá no “ao longo” da jornada. E sua inserção varia conforme os suportes a demarcar o escopo de uma determinada obra. Em Fala dos confins (2010), apropriou-se das lembranças do pai como caminhoneiro e projecionista de cinema e transformou uma kombi “no resgate de memória afetiva e da oralidade do sertanejo para escutar literatura na voz”. Para Fábula do olhar (2013), perguntou a moradores de rua de Fortaleza como se idealizariam, se essa chance lhes fosse dada. Fotografou-os em preto e branco e deu os originais a um famoso fotopinturista cearense, mestre Júlio Santos, que retocou as imagens, fundindo realidade e desejo de representação. Jardim das torturas (2012-2013), uma bolsa concedida pela Funarte, levou-a à Casa do Sol, outrora residência da escritora Hilda Hilst (1930-2004), onde Virginia desenvolveu uma série em que conviveu com uma família adepta dos rituais sadomasoquistas de dominação, dos quais ela participa com uma performance.


A obra Aphasia foi criada para o projeto Vídeo Guerrilha, exibido na fachada de prédio paulistano. Foto: Virginia de Medeiros/Divulgação

Suas referências são enumeradas na mesma velocidade com que discorre sobre seus projetos: Genet, Stendhal, Tolstói e Guimarães Rosa são escritores que cultua; Tarkóvski e Pedro Costa simbolizam o cinema que a cativa; e Isaac Julien, Nan Goldin e Cao Guimarães são artistas que admira. Virginia de Medeiros, 41, já foi ao Timor-Leste, ao Canadá, a Angola, a Nova York, e mais além, se contarem todas as suas exposições. “Mas, para falar a verdade, acho que a minha fortaleza está na minha infância, na roça... no sertão que carrego comigo.” 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente.

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