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Sanduíche: Despojamento gastronômico

Iguaria inventada na Inglaterra, no século 18, ganha novas versões, para além do fast food, ligadas ao universo gourmet

TEXTO Eduardo Sena

01 de Outubro de 2014

Sanduíches ganharam ingredientes requintados no cardápio do Barchef, como salmão e queijo brie

Sanduíches ganharam ingredientes requintados no cardápio do Barchef, como salmão e queijo brie

Foto André Nery

Não dá para dizer que a ideia de John Montagu, então conde de Kent, na Inglaterra, em 1762, foi original. Inane, depois de mais de 24 horas jogando bridge (famoso jogo de cartas inglês), ordenou que lhe servissem algo diferente (ao menos para a época): carne fria entre dois pedaços de pão. A intenção era comer sem deixar a mesa de jogo. A solução não foi inédita porque, ainda no Império Romano, alguns escravos eram alimentados por ração de peixe, enrolada em discos de massa de farinha de trigo com água cozida, e os hebreus se serviam de dois pedaços de pão ázimo com recheio de erva amarga.

Mas isso é o que se sabe hoje. “No distrito britânico de Sandwich, ao Sulde Kent, tornou-se a quintessência culinária aquele novo jeito de comer carne, dentro do pão, e não tardou para a nova proposta ser batizada como ‘pão de Sandwich’, mais tarde, apenas sandwich”, conta a pesquisadora gastronômica Maria Lecticia Cavalcanti. Fato é que a moda se espalhou pelo mundo e, com o tempo, foi se sofisticando e ganhando identidades de acordo com seu local de execução. Mas há um consenso que rege essas variantes: condição sine qua non para o preparo poder receber o nome de sanduíche é ter recheio entre duas bandas de pão. E só.

A partir daí, surgem mil possibilidades. Começando pelas variedades de pão. Branco, preto, de centeio, de forma, integral, sírio, bola, francês... O preenchimento varia mais ainda. Carnes, queijos, geleias, verduras, patês, bifes de carne moída (no caso do hambúrguer), salsichas (cachorro-quente). “Ao Brasil, chegaram no século 19, e já com todas essas variações”, registra a pesquisadora Márcia Algranti, no livro Pequeno dicionário da gula.

NACIONAL
A propósito, com selo “brasuca” de procedência, o que teve mais fama foi o bauru. Uma invenção de Casimiro Pinto Neto, mais conhecido como Bauru, por viver proclamando as inúmeras qualidades de sua terra natal, no interior de São Paulo. Frequentador do Bar Ponto Chic, na capital paulista, o estudante de Direito chegou faminto ao estabelecimento, buscando algo “substancioso e nutritivo”, contou ele mesmo ao historiador Luciano Dias Pires.

Como havia acabado de ler um livreto de alimentação para crianças, com informações nutritivas de uma refeição ideal, pediu ao cozinheiro que pusesse dentro de um pão francês, sem o miolo, queijo derretido, rosbife e tomate. Uma combinação de carboidrato, proteína e vitaminas. Os amigos foram chegando e pedindo “me dá um desses do Bauru”. Aos poucos, foi ganhando novos insumos, como presunto, orégano, fatias de pepino e mais tipos de queijos – aliás, a receita que foi transformada em lei municipal (nº4.314, de 24 de junho de 1998), de Bauru.

O medo, nesse caso, era do sanduba sofrer alterações na fórmula. Prática bastante recorrente no cenário gastronômico brasileiro, feita basilarmente de experimentos e reinvenções. O clássico americano, por exemplo, que conjuga pão de forma, queijo muçarela, ovo e presunto, no Recife, ganhou uma releitura que abandona o prosaico e ganha códigos de alta gastronomia. Está no menu do Barchef, em Casa Forte. Assinado pela chef Raline Aragão, o sanduíche traz o mesmo tipo de panificação e recheio da fórmula original, mas ingredientes e, sobretudo, métodos de fazer diferentes.


O Sansa apostou no tradicional cachorro-quente de carne moída, acrescendo o cream cheese. Foto: André Nery

Folhas de rúcula e mostarda amarela dão acento grave ao sabor. Já o pão é ensopado com uma mistura de creme de leite fresco condimentado com cardamomo, limão, fava de baunilha e empanado em farinha de rosca japonesa, para depois ganhar fritura em imersão. Quase uma rabanada salgada. Ainda no menu de sanduíches da casa, a técnica de cocção sem fogo do salmão gravlax também pode ser conferida numa versão despojada.

Lâminas do peixe são curadas a frio com sal grosso e açúcar mascavo, depois de desidratadas, portanto, com maior resistência aos dentes, recebe a companhia de queijo brie maçaricado em pão de leite. “A ideia é trazer a alta gastronomia para refeições mais rápidas e que estão rotuladas como algo de menor importância. Se os sanduíches sempre foram estigmatizados dentro do conceito de fast food, de procedência desconfiável, é urgente pegar a contramão, explorando novos conceitos e sabores”, sugere a cozinheira.

INOVAÇÃO
Afinal de contas, a gastronomia, bem como qualquer outra linguagem cultural, está o tempo todo sujeita a tomar rumos diferentes e seguir tendências. Muitos desses caminhos inexplorados acabam ganhando marcas tão próprias como se fossem assim desde sempre. Se não, veja o caso do cachorro-quente pernambucano. Sim, a receita de origem estadunidense tem uma versão local que se diferencia por ser feita com carne moída temperada com alho, cebola, coentro, pimentão, tomate e cominho.

“E aí tem uma questão léxica curiosa. Quando se chama de hot dog, é pão com salsicha, molho de tomate e acompanhamentos variados. E, quando se diz cachorro-quente, já se imagina a carne moída. Pernambuco é o único lugar do mundo em que isso é tratado dessa forma”, assegura Maria Lecticia. Especializado em sanduíches e saladas, o Sansa, no Bairro do Recife, é um dos poucos lugares da cidade que fazem questão de acrescentar o sobrenome gentílico ao “sanduba”. Muito embora a fórmula seja diferente daquela que conhecemos por ser acrescida de cream cheese.

E, já que tendências contemporâneas de gastronomia também estão caminhando para os sanduíches, vale falar na força que os critérios de “saudabilidade” estão sendo aplicados num prato que sempre carregou o estigma de não ser tão saudável assim. O menu de sandubas do Sansa aponta para essa diretriz, associando-o a pontualidades criativas, assinatura da chef-consultora Taciana Teti. O que traz baguette com tiras de filé, mais cogumelo shitake refogado, muçarela light, molho de duo de mostardas e salada, é a prova desse casamento.

Falando em alianças, a união entre cozinheiros profissionais e esse tipo de lanche parece que nem a morte separará. Os espaços destinados a eles estão entrando em consonância com rumos do universo gastronômico e adotando discursos para além do fast. E, se o mais pulsante deles na cozinha atualmente é o do “caipira”, “rústico”, “tropical” e “da terra”, então, assim seja, nas sanduicherias e afins. No Rio de Janeiro, a hamburgueria Reserva TT Burger, capitaneada por um dos chefs mais promissores da nova geração, Thomas Troisgros (o filho do Claude), traz a brasilidade para o ícone do fast food.


A hamburgueira carioca Reserva TT Burguer aposta em ingredientes brasileiros nas receitas. Foto: Divulgação

Pelas mãos dele, os rótulos da moda são compreendidos como o estímulo da cadeia produtora local e da valorização dos insumos típicos. Mesmo quando, em princípio e em determinada culinária (em que se situa o hambúrguer), eles não tenham o status de indispensáveis. Por lá, ele promove essas incursões, trazendo o disco de carne feito à base de cortes bovinos comuns no país (acém, fraldinha e contrafilé). O Brasil ainda aparece no picles de chuchu e no queijo meia-cura do interior do estado do Rio. Tudo montado dentro de um pão de batata-doce, produzido na Favela do Vidigal, sublinhando a tendência do contato direto com pequenos produtores.

SUBMARINOS
Se o assunto é tendência, há de se esbarrar na personificação do gosto. Imprimir sua personalidade e vontade às refeições fora de casa, associando a isso (quase sempre) hábitos saudáveis é um dos caminhos tomados pela alimentação. Não à toa, o conceito de “fast casual”, importado dos EUA, vem ganhando força em todo o mundo.

Na prática, trata-se de uma comida rápida feita à mão sob os olhos do cliente, com a sua participação efetiva no processo de composição do prato e com preços atrativos. É esse cenário que justifica o sucesso dos lanches submarinos no Brasil. O meio de transporte aquático é o nome dado aos sanduíches no pão baguete, naquele formato de 15cm ou 30cm, com várias opções de recheios. No Recife, não é preciso andar mais de 1km para esbarrar em uma famosa rede responsável pela proliferação do formato no mundo.

A Subway, além da lógica da personalização, traz entre os diferenciais a confecção própria dos pães. A rede, que mundialmente supera em número de unidades a McDonald’s, possui hoje mais de 1,5 mil unidades no Brasil, pretendendo chegar a 1,8 mil até o final deste ano. Há cinco anos, eram apenas 365 lojas. No Recife, já são 58 unidades. John Montagu não podia prever que o seu lanche iria tão longe.

ELE, O CACHORRO QUENTE
“Comer cachorro-quente lá no bar/ Por certo a moda vai pegar/ Por não ser vulgar.../ Comer/ Vai toda gente ao ‘quarteirão’/ Pois há linguiça em profusão/ Pra comer com pão.” Os versos da marchinha de Ary Barroso e Lamartine Babo eram cantados à exaustão naquele Carnaval de 1928, no Rio de Janeiro.

A composição entra em dissonância com o registro do pesquisador Câmara Cascudo que, no livro História da alimentação do Brasil, registra que o sanduíche só chegou ao Brasil em 1945, após a 2ª Guerra Mundial, por conta da influência norte-americana. Em tempo, os Estados Unidos e a Alemanha brigam pelo título de inventor de um dos sanduíches mais famosos do mundo. A salsicha, do tipo Frankfurt, de fato era alemã. Mas a ideia de servi-la dentro do pão é estadunidense.


Foto: Divulgação

Conta-se que um vendedor, Anton Feuchtwanger, comerciava o embutido quente e oferecia aos fregueses luvas de algodão, para que não queimassem as mãos. Passou a ter prejuízo, já que se esqueciam de devolver o artefato, e trocou por pão. Tornou-se lanche comum nos estádios de futebol americano e foi lá que recebeu o nome de hot dog. Como a salsicha tinha semelhança com um cachorro da raça dachshund, também conhecida como bassê, o cartunista Tad Dorgan desenhou o cão dentro de um pão, coberto de mostarda, e escreveu na legenda: “Pegue o seu cachorro-quente”. Hot dog até hoje. 

EDUARDO SENA, jornalista.

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