TERRITÓRIO E SEGURANÇA
A pesquisa do coletivo passa também pela observação de como as pessoas permanecem no espaço público, já que todos precisam do apoio físico e psicológico das estruturas urbanas. “Recentemente, fizemos um exercício de observação de como aqueles que o ocupam se apoiam no espaço construído. Vimos que existem algumas tendências: eles não costumam se posicionar no centro; ficam mais nas periferias das praças, porque mantêm o controle do ambiente, conseguem observar tudo o que está acontecendo. Não ficam sem costas resguardadas, por uma questão de segurança”, argumenta Fabiane.
Da Sé paulistana, caótica, disputada por diversos atores sociais, o espetáculo migrou para o Alto da Sé olindense, relacionado a um imaginário turístico. As apresentações do coletivo em Olinda aconteceram no ano passado, no mesmo Cena Cumplicidades.
Do Alto da Sé, avista-se a cidade em constante uso, apropriação e transformação, a sua parte nova, usualmente não visitada pelos turistas. “A maioria das pessoas que circulam pelo Alto da Sé estabelecem com o local um vínculo instantâneo, de passagem. Não buscam modos de se apropriar de suas edificações. Para os turistas, são como fachadas ocas, sem interior”, defende Carolina Nóbrega, afirmando que a própria história do Alto da Sé, salvaguardada pela conservação desse espaço, desaparece, para dar lugar ao comércio de alimentos e artesanato. Essa atmosfera turística se sobrepõe à memória do local.
PONTOS ATRATORES
Parte do processo de criação consistiu numa abertura para a sensibilização da cidade. “Nosso primeiro momento foi de escuta, estar na rua com outro olhar, diferente daquele cotidiano, utilitarista, de trânsito, de trabalho. Estar lá e ficar lá, sem a preocupação de criar, levantar o espetáculo”, explica Carolina Nóbrega.
Foto: Val Lima/Divulgação
Pontos atratores no espaço público eram aqueles para onde convergia o olhar delas, durante o trabalho de sensibilização. Coisas que chamavam a atenção por alguma razão poética, política, estética, ou sem nenhum critério aparente. “O exercício foi criar um roteiro de deslocamento, um mapa acompanhado por um áudio com instruções a serem seguidas durante o percurso. Todas se submeteram aos roteiros umas das outras”, continua. Elas não combinaram nem discutiram nada antes. Nas trocas, depararam-se com pontos de vista em comum e, às vezes, com o olhar específico de cada uma.
Outro exercício foi construir ações performáticas a partir de programas. “Cada uma de nós criou pequenas ações para as outras realizarem. Como é alguém vivenciar um roteiro, um mapa de ações criado por outra pessoa? Existe a proposta de uma atravessar a outra com uma percepção específica”, define Mônica.
Escuro contrastando com o claro. Cinza ou preto, contrastando com bege ou branco. O escuro tem mais a ver com a concretude do espaço, a dureza do cimento urbano. O claro tem relação com a pele e, principalmente, foi escolhido para deixar visível para quem fosse assistir o quanto essa roupa iria se transformar, colapsar junto com o corpo, durante o espetáculo (elas começam limpas e terminam imundas). Há um desejo de não querer um corpo bonitinho, impecável. “O objetivo é que o público veja que esse corpo passou por uma experiência, uma transformação. Ele se funde com a cidade de alguma forma. Além disso, o figurino tem uns cortes em vermelho, representando essa ideia de uma matéria que permite ser atravessada por múltiplas questões, a qualquer momento: a presença visível de uma instabilidade”, comenta Carolina.
O figurino não é novo. Foi todo escolhido em brechós: também tem camadas de história. Uma das prerrogativas é que a roupa teria de vir com transformações já efetuadas pelos antigos donos: manchas, rasgos etc. Isso tem relação com a própria Praça da Sé paulistana, que também abriga várias camadas de história, de reformas e novos traçados, além de muitas e diferentes pessoas ocupando-a. Toda a simultaneidade e sincronicidade de vários tempos. “A gente pesquisa a relação de impacto do corpo com a cidade. Deixar visível esse impacto com alguma materialidade, que é perecível, vai desaparecer com o vento, com a chuva. Ela não está sendo impressa como uma tatuagem; ela é frágil, vai desaparecer, assim como a nossa presença”, conclui Mônica Lopes.
GUILHERME NOVELLI, jornalista.