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O público colocado entre o confronto e a proteção

Coletivo Cartográfico apresenta o espetáculo 'Instruções para o colapso' entre transeuntes que, aos poucos, passam a interagir com a performance

TEXTO Guilherme Novelli

01 de Outubro de 2014

Foto Luciana Arcuri/Divulgação

Em nenhum momento, como em muitos trabalhos de rua, elas definem um território, uma arena em que anunciam o início do espetáculo. O trabalho vai se infiltrando no cotidiano da própria rua. Uma parte dos espectadores fica sem saber o que está acontecendo. “Existem reações, por parte do público, de incômodo com o nosso trabalho, como também de proteção, por sentirem que a gente faz coisas que envolvem estar no chão e são arriscadas, implicam um impacto com o asfalto. Há sempre esses dois extremos: confronto e proteção”, explica Mônica Lopes, que, juntamente com Fabiane Carneiro e Carolina Nóbrega, fundou o Coletivo Cartográfico de dança contemporânea. Elas apresentam o espetáculo Instruções para o colapso, dia 1º de novembro no Recife, na Praça do Diário, às 11h, compondo a programação do Festival Cena Cumplicidades 2014.

O trabalho foi ensaiado e estruturado para a rua, nas fronteiras entre dança contemporânea e performance. Elas não interpretam que estão caindo, colidindo com o asfalto: estão, de fato, caindo. O tempo todo dispõem o corpo a uma experiência real, permitindo que esse corpo chegue ao cansaço, à exaustão, ao colapso ao longo da atuação. Vão aos extremos da experiência física, num limite muito tênue entre vida e arte.

Nesse ambiente de risco e simultaneidade, que é a rua, a busca é um diálogo com a realidade cotidiana, interferindo e se deixando afetar pela atmosfera do espaço público. A pesquisa compreende a relação do corpo com a cidade: uma cidade que se transforma o tempo todo e que exige de seus habitantes estratégias diárias para a sobrevivência.

“Dependendo da cidade a que você vai, existe um sentido de vigilância muito distinto, mas todo espaço público passa por isso: por algum tipo de controle. O fato de fazermos uma coisa que é fora do cotidiano, o fato de uma mulher limpa se jogar no chão (e não um morador de rua) gera um deslocamento que quebra os padrões de limites estabelecidos, independentemente de serem policiais ou não. Na rua, há uma vigilância que os próprios membros da comunidade exercem em torno das normas que criam para a utilização dos espaços deles mesmos”, conta Carolina Nobre. Na visão do Coletivo Cartográfico, as pessoas têm de experimentar, apropriar-se da cidade, pois a constroem o tempo inteiro, seja realizando algo ou simplesmente circulando.

Os primeiros ensaios foram no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, passando depois para a Praça da Sé, centro geográfico da capital paulista. “Quando mudamos do Anhangabaú para a Sé, fizemos um reconhecimento do local e propusemos algumas ações para aprofundarmos a pesquisa. De imediato, quem se sentia o dono do território chegou até nós, querendo saber o que estávamos fazendo lá. Nesse momento, começamos a lidar com essa relação de poder, mas, quando nos desarmamos, e nós estamos completamente desarmadas – porque estamos numa situação de risco, frágil –, ganhamos a confiança dessa pessoa e recebemos as boas-vindas para estar naquele território”, conta Fabiane Carneiro, defendendo que a vigilância é uma questão territorial.


O corpo a corpo empreendido pelas três performers as leva ao chão e à transformação gerada  por essa exposição física. Foto: Renata Pires/Divulgação

TERRITÓRIO E SEGURANÇA
A pesquisa do coletivo passa também pela observação de como as pessoas permanecem no espaço público, já que todos precisam do apoio físico e psicológico das estruturas urbanas. “Recentemente, fizemos um exercício de observação de como aqueles que o ocupam se apoiam no espaço construído. Vimos que existem algumas tendências: eles não costumam se posicionar no centro; ficam mais nas periferias das praças, porque mantêm o controle do ambiente, conseguem observar tudo o que está acontecendo. Não ficam sem costas resguardadas, por uma questão de segurança”, argumenta Fabiane.

Da Sé paulistana, caótica, disputada por diversos atores sociais, o espetáculo migrou para o Alto da Sé olindense, relacionado a um imaginário turístico. As apresentações do coletivo em Olinda aconteceram no ano passado, no mesmo Cena Cumplicidades.

Do Alto da Sé, avista-se a cidade em constante uso, apropriação e transformação, a sua parte nova, usualmente não visitada pelos turistas. “A maioria das pessoas que circulam pelo Alto da Sé estabelecem com o local um vínculo instantâneo, de passagem. Não buscam modos de se apropriar de suas edificações. Para os turistas, são como fachadas ocas, sem interior”, defende Carolina Nóbrega, afirmando que a própria história do Alto da Sé, salvaguardada pela conservação desse espaço, desaparece, para dar lugar ao comércio de alimentos e artesanato. Essa atmosfera turística se sobrepõe à memória do local.

PONTOS ATRATORES
Parte do processo de criação consistiu numa abertura para a sensibilização da cidade. “Nosso primeiro momento foi de escuta, estar na rua com outro olhar, diferente daquele cotidiano, utilitarista, de trânsito, de trabalho. Estar lá e ficar lá, sem a preocupação de criar, levantar o espetáculo”, explica Carolina Nóbrega.


Foto: Val Lima/Divulgação

Pontos atratores no espaço público eram aqueles para onde convergia o olhar delas, durante o trabalho de sensibilização. Coisas que chamavam a atenção por alguma razão poética, política, estética, ou sem nenhum critério aparente. “O exercício foi criar um roteiro de deslocamento, um mapa acompanhado por um áudio com instruções a serem seguidas durante o percurso. Todas se submeteram aos roteiros umas das outras”, continua. Elas não combinaram nem discutiram nada antes. Nas trocas, depararam-se com pontos de vista em comum e, às vezes, com o olhar específico de cada uma.

Outro exercício foi construir ações performáticas a partir de programas. “Cada uma de nós criou pequenas ações para as outras realizarem. Como é alguém vivenciar um roteiro, um mapa de ações criado por outra pessoa? Existe a proposta de uma atravessar a outra com uma percepção específica”, define Mônica.

Escuro contrastando com o claro. Cinza ou preto, contrastando com bege ou branco. O escuro tem mais a ver com a concretude do espaço, a dureza do cimento urbano. O claro tem relação com a pele e, principalmente, foi escolhido para deixar visível para quem fosse assistir o quanto essa roupa iria se transformar, colapsar junto com o corpo, durante o espetáculo (elas começam limpas e terminam imundas). Há um desejo de não querer um corpo bonitinho, impecável. “O objetivo é que o público veja que esse corpo passou por uma experiência, uma transformação. Ele se funde com a cidade de alguma forma. Além disso, o figurino tem uns cortes em vermelho, representando essa ideia de uma matéria que permite ser atravessada por múltiplas questões, a qualquer momento: a presença visível de uma instabilidade”, comenta Carolina.

O figurino não é novo. Foi todo escolhido em brechós: também tem camadas de história. Uma das prerrogativas é que a roupa teria de vir com transformações já efetuadas pelos antigos donos: manchas, rasgos etc. Isso tem relação com a própria Praça da Sé paulistana, que também abriga várias camadas de história, de reformas e novos traçados, além de muitas e diferentes pessoas ocupando-a. Toda a simultaneidade e sincronicidade de vários tempos. “A gente pesquisa a relação de impacto do corpo com a cidade. Deixar visível esse impacto com alguma materialidade, que é perecível, vai desaparecer com o vento, com a chuva. Ela não está sendo impressa como uma tatuagem; ela é frágil, vai desaparecer, assim como a nossa presença”, conclui Mônica Lopes. 

GUILHERME NOVELLI, jornalista.

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