Combinação certeira e harmoniosa entre texto e ilustrações (assinadas pela designer pernambucana Hallina Beltrão), A menina da lagoa de cristal, da jornalista e escritora carioca Claudia Lins, alinha o cotidiano difícil da personagem principal, Maria, e sua aguçada capacidade de criar histórias fabulosas. A garota mora numa casa precária, junto com a mãe e cinco irmãos. A família faz parte da vila que se formou ao redor de uma lagoa, área afastada do centro urbano, mas também longe do interior, de que Maria sente falta. Na antiga cidade, ela morava em casa de tijolos e frequentava a escola.
As patuscadas (...) busca discutir a importância dos livros.
Imagem: Simone Mendes/Divuglação
a ideia da narrativa. “O argumento para o livro vivia dando voltas no meu pensamento há muito tempo. Como jornalista, minha escrita, muitas vezes, tem um olhar atento ao mundo real. A menina da lagoa de cristal vem de uma antiga inquietação que sinto com a realidade que tanta gente parece ignorar. Desejei escrever uma história que emocionasse as pessoas. Pensei nas crianças que, das janelas de seus carros, passam todos os dias pela lagoa ‘cartão-postal’ de Maceió, sem se darem conta de como é difícil o dia a dia das pessoas que vivem ali. Eu queria contar essa história, de quem mergulha em apneia por horas, para catar no fundo da lama as conchinhas cortantes de sururu, mas também falar dessa menina que não perde a esperança de construir um futuro melhor para si e sua família.”
A protagonista, então, funciona entre duas composições de personagem: a redonda ou esférica — classificação destinada àquelas que apresentam densidade psicológica e podem evoluir ao longo da história — e a personagem-tipo, aquela que representa um grupo social. A partir desse centro focado em Maria, a jornalista oferece ao leitor uma eficaz fusão: a realidade (coletiva x pessoal) e o imaginário, descrito sempre com paixão pela garota.
Assim como muitos autores de literatura infantil e infantojuvenil, Claudia está envolvida em projetos para incentivar e promover a leitura. Sobre a sua trajetória como escritora, ela conta: “Em 2007, publiquei meu primeiro título infantojuvenil (Os Três Porquinhos do Agreste), pelo Selo Passarada (AL). Esse selo não é uma editora comercial, mas uma iniciativa de produção literária independente. Foi criado por mim e mais dois amigos autores alagoanos, três apaixonados por literatura infantil, gente que tira grana do próprio bolso para custear o sonho de fazer livros para crianças”.
Além do selo, a jornalista coordena um portal chamado Mundo Leitura e o projeto Programa Leitura Viva Espaço Educar, realizado em escolas de Maceió. “Acredito que uma boa história não tem idade, por isso escrevo para um leitor com sede de descobrir o mundo na perspectiva de uma criança, que quer olhar tudo com encantamento e curiosidade”, afirma a carioca.
Em Plin porompim plof, pluft!, Cecy Fernandes Assis cria universo fantástico e linguístico. Imagem: Ana Raquel/Divulgação
LIVRO, TECNOLOGIA, BRINQUEDO
Em As patuscadas de um livro infantil (…patuscadas?), o leitor é convidado a observar, através da perspectiva dos livros, a rotina do Menino, uma criança que não gostava de ler e, aos poucos, apaixona-se pela leitura. O Livro Infantil, que mora na prateleira de uma livraria e observa, com tristeza, poucas crianças interessadas em suas histórias, chega à casa do garoto tímido. Aos poucos, faz amizade com outros livros coloridos e com os brinquedos, os queridinhos da atenção do Menino naquele ponto da narrativa. Assinada pela escritora paranaense e especialista em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa Lilian Deise de Andrade Guinski, a publicação encontrou uma ótima interpretação visual da ilustradora pernambucana Simone Mendes.
“Quando recebi o texto de Lilian, a primeira ideia que tive foi a de fazer os desenhos a partir da ótica do personagem principal, o Livro Infantil. O intuito é que a criança leitora se coloque também nesse ângulo, os desenhos que criei são elementos que estão ao redor do livro”, explica.
No texto, aparecem como dois fortes aspectos as referências a elementos contemporâneos como robôs, Star Wars e Harry Potter, e as constantes interferências narrativas que remetem à palavra, como a presença do Dicionário, um parceiro do Menino na compreensão dos significados. “Seguindo essas correspondências, entendi como era importante também colocar nas imagens uma série de alusões a outros livros, autores, artistas. No universo que criei com uma paleta supercolorida, mas com predominância de cores primárias, o leitor poderá encontrar obras de artistas como Mondrian e Van Gogh, por exemplo”, observa a ilustradora.
O desenvolvimento narrativo de As patuscadas de um livro infantil
(...patuscadas?) culmina em um dos principais tópicos de discussão entre pais e filhos: o relacionamento com a tecnologia. Com um clima saudosista entrelaçado à amizade que a criança pode construir com a leitura, Lilian consegue transmitir ao leitor uma sólida ideia da importância dos livros, muito além da formação escolar.
VALOROSAS LEMBRANÇAS
Confabulando em cordel, da pernambucana Lêda Sellaro, e Plin porompim plof, puft!, da mato-grossense Cecy Fernandes Assis, trazem temáticas e modelos narrativos conhecidos tanto por adultos quanto por crianças: fábulas e a rotina (real e fantasiosa) de uma aldeia indígena. Além de divertido e repleto de inteligentes, poéticos insights (como no trecho “Ah, os ventos, fiu vêmm vuuvão. Elemento que nasceu com DNA com preferência por exteriores. Na aldeia o vento não geme. Canta. Ópera. Viajante vaidoso! Viaja sem vacilar, desfiando e desafiando o penteado das claras e aniladas nuvens. Faz ventosos ensaios e nunca esquece que é professor emérito das flautas”), o livro de Cecy atende aos quatro elementos que servem como base de sustentação para a literatura infantil, de acordo com Sosa: o caráter imaginoso, o dramatismo, a linguagem e a técnica de desenvolvimento.
Ao trazer Isaac Newton, Darwin, Disney, novas palavras, onomatopeias e espécies de peixes brasileiros para o mesmo texto, Cecy cria um universo dramático, fantástico e linguístico.
No livro Confabulando em cordel, Lêda Sellaro reflete sobre relacionamentos humanos. Imagem: Jarbas Domingos/Divulgação
Já Confabulando em cordel — mais um exemplo da coleção que acertou em cheio nas ilustrações, assinadas por Jarbas Domingos — foca o universo imaginativo, para disseminar reflexões sobre os relacionamentos humanos. Em seu livro, Lêda busca o valor terapêutico e catártico da literatura, defendido pela antropóloga francesa Michèle Petit, atributo também comum às demais publicações.
Em suas conferências, em 1980, o escritor argentino Julio Cortázar falava sobre determinadas leituras que continuam “ressonando” na cabeça dos leitores. A musicalidade, para ele, era presença essencial na literatura infantil. Cortázar disserta sobre como a organização das sintaxes, feita pelos escritores, pode acrescentar à narrativa novas atmosferas, “um conteúdo que nada tem a ver com a mensagem em si, mas que enriquece o texto, amplifica e, muitas vezes, aprofunda”. Os livros da nova coleção infantil e infantojuvenil da Cepe Editora estão nessa categoria melódica e ressoam com capricho nos ouvidos de crianças e adultos.
PRISCILLA CAMPOS, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.