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Primórdios do design no acervo da biblioteca

A partir de pesquisa em acervo público, designer Sebastião Cavalcante registra em livro parte (quase) desconhecida da produção pernambucana do período entre 1875 e 1939

TEXTO Laís Araújo

01 de Setembro de 2014

Na primeira metade do século 20, já se observava a contratação de artistas para a criação de ilustrações

Na primeira metade do século 20, já se observava a contratação de artistas para a criação de ilustrações

Imagem Reprodução

Foi ao lado do Parque 13 de Maio, numa edificação-símbolo da arquitetura moderna local, que um importante resgate da memória gráfica pernambucana começou a ganhar corpo. Durante sua pesquisa de mestrado, o designer Sebastião Cavalcante teve a atenção tomada pelas obras raras e os periódicos pernambucanos presentes no acervo da Biblioteca Pública do Estado (BPE). O conteúdo gráfico ali era extenso, valioso e – talvez o adjetivo mais importante neste caso – praticamente desconhecido. Observar a relevância do material encontrado para a história da arte e do design brasileiros foi a motivação para a construção do livro Ilustrações e artes gráficas –periódicos da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco (1875-1939), pesquisa incentivada pelo Funcultura, com selo da Editora Blucher. A redescoberta do acervo explicita certa cegueira anterior, ao mesmo tempo em que abre caminhos e possibilidades quanto ao legado visual do estado.


Imagem: Reprodução

O recorte temporal feito revela o medo que a Coroa Portuguesa tinha das consequências da palavra escrita e da informação, atrasando em séculos o início da produção gráfica brasileira (oficial, ao menos), que somente em 1808 recebeu seus dois rudimentares primeiros prelos e suas 28 caixas de tipos. Demorou mais sete anos para estrutura semelhante ser montada em Pernambuco. Portanto, a produção do primeiro impresso no estado ocorreu apenas em 1817, com a publicação de O Preciso, feito pelos entusiastas da revolução emancipacionista daquele ano.

O início foi tardio (em outros países da América colonizada, como México e Peru, existem indícios de sedes de tipografia já no século 17), mas a produção, intensa e progressiva, com o número de publicações multiplicado com os anos.


Manoel Bandeira, homônimo do poeta, foi colaborador frequente
dos periódicos com caricaturas e cartuns. Imagem: Reprodução

A Biblioteca Pública de Pernambuco, peça-chave na reunião dos periódicos, surge em 1852, sendo instalada em diferentes sedes antes de fixar-se em Santo Amaro. “O protagonismo é, definitivamente, do acervo”, pontua Sebastião Cavalcante, o Sebba, explicando que a quantidade de material disponível a ser estudado renderia diversas pesquisas. “Ainda não conhecemos aquele acervo de periódicos como memória gráfica, e fazer isso é essencial para criar uma linha do tempo, preencher lacunas na história do design. É uma memória afetiva e coletiva que é recuperada através dessa pesquisa, principalmente com a parte das propagandas, muito fortes visualmente.”


Tipos gráficos encontrados pela pesquisa serviram da referência para
a criação da fonte
mauriceia, usada no livro. Imagem: Reprodução

A coleção é dividida em seis temas: inicia com Rumo ao século 20, mostrando a riqueza de detalhes e das cores durante a utilização do processo litográfico, técnica de impressão à pedra, que seria substituída por outras, nos anos posteriores; Caricaturas e charges, com destaque especial para as interpretações dos diferentes typos de gente encontrados no cotidiano do período; Capas; Composições com imagem fotográfica; Composições com tipos móveis e letreiramento, e, por último, Propagandas.

Segundo Sebba, as capas buscavam impactar, capturar um momento perfeito, sintetizar ideias. “Nelas, a gente encontra designs muito bem-resolvidos, com o uso de ilustrações de artistas da época e também com fotografias. As composições com imagens fotográficas apresentam o artista gráfico no início do uso da foto, onde ela era revelada e a complementação, feita à mão.”


Graças ao clichê, as publicações jornalísticas - fartas em sátira - puderam ser impresssas com mais rapidez. Imagem: Reprodução

CLICHÊ
Foi somente com o início do uso do clichê como matriz que fotografia e texto puderam ser impressos juntos, otimizando o tempo e proporcionando o início do fotojornalismo. “Essa mudança foi muito importante para a imprensa. Já na propaganda, a gente percebe que, desde aquela época, havia uma valorização do que é de fora. Isso, assim como pontos como a diagramação e as composições de páginas, dialoga com o que ainda vemos hoje em dia: a estética estrangeira sempre foi desejada no setor de publicidade.”


Imagem: Reprodução

Na redescoberta dos tipos e letras antigas que resulta da pesquisa, vemos um trabalho minucioso, com construções trabalhadíssimas de página, apesar das dificuldades da técnica. Há publicações diagramadas de forma semelhante a poesias concretas, décadas antes dos anos 1960, quando a corrente vanguardista foi popularizada. Os títulos também recebiam atenção especial, com fontes criadas para propósitos exclusivos, como a do texto Malassombrado, de Joaquim Cardozo, publicado em 1930 na Revista de Garanhuns, e criada a partir de tipos móveis, num trabalho minucioso e bem-realizado.

Sebba detalha o processo, explicando que o texto era montado letra a letra sobre o prelo, dentro do sistema de impressão tipográfica, enquanto a página era composta pelos elementos de suporte: linhas, traços, pequenos adornos. “O processo de composição nessa técnica é totalmente manual. Os resultados gráficos encontrados demonstram um alto grau de domínio sobre o processo técnico, associado a doses de criatividade e experimentalismo, já que, em vez de compor com letras, estas páginas foram compostas com estes elementos.” Após o término da montagem de cada peça, a matriz era entintada e rebatida sobre as folhas de papel com o sistema de prensa. O trabalho era árduo, o que torna os resultados mais impressionantes.


Pesquisador observa que na publicidade,
ontem como hoje, predomina
o gosto pela estética estrangeira.
Imagem: Reprodução

Com o mesmo cuidado, mas sem tantas dificuldades técnicas, Ilustrações e artes gráficas – periódicos da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco (1875-1939) também possui fonte própria: mauriceia, projetada pelo designer gráfico Matheus Barbosa, e inspirada nas letras encontradas nos periódicos pesquisados. O nome de batismo é oriundo das publicações da época, que costumavam usar o termo herdado de Maurício de Nassau para se referir à cidade.


Imagem: Reprodução

ARTISTAS GRÁFICOS
Apesar das evidências de que o design gráfico tem uma história longa na capital pernambucana (e nos outros polos gráficos do Brasil), ainda é comum a ideia de que a atividade surgiu no país como “profissão” apenas na década de 1960. Chamados antes de artistas gráficos, esses profissionais são pouco lembrados. Falta, por exemplo, conhecimento sobre a obra de Manoel Bandeira (homônimo e conterrâneo do poeta, mas voltado para as artes visuais), cujo trabalho se estendia muito bem entre o sintético e o detalhado.


Imagem: Reprodução

“O conjunto de sua obra, em colaboração para a indústria gráfica, representa um elo importante para a memória do design em Pernambuco. Técnica apurada, versatilidade de estilos, capacidade de estabelecer diálogo entre diversas linguagens e habilidade de solucionar limitações técnicas com maestria são algumas das características de seu trabalho”, conta Sebba. Outros nomes importantes da memória gráfica no estado são Vicente do Rego Monteiro e Lula Cardoso Ayres, que, famosos por suas produções artísticas, foram também designers. “Parece normal que pessoas sejam conhecidas e reconhecidas por outros tipos de arte, mas não pelas artes gráficas”, observa o autor.


Imagem: Reprodução

Um passo para o reconhecimento dessa vertente artística, porém, é a reunião de sua história, que parece agora pronta para se desenvolver: a intenção do livro é tornar-se um catálogo ampliado e esmiuçado por entusiastas e acadêmicos do campo das artes gráficas. A organização do acervo de Ilustrações e artes gráficas insere Pernambuco na (ainda em construção) linha do tempo brasileira do design, tímida, mas já suficiente para a desconstrução de mitos que privilegiavam a produção e a herança estrangeiras.


Imagem: Reprodução

“Apenas com o surgimento da primeira escola de desenho industrial do Brasil, nos anos 1960, basicamente inspirada na Bauhaus e no funcionalismo, idealiza-se a conformação do campo no Brasil. Mas temos uma história própria e antiga do design gráfico, que estava sendo deixada de lado, pouco observada e fadada ao esquecimento. Nunca olhávamos para as artes gráficas nacionais com o conceito de integração. Não víamos o passado e, por isso, não se construía junto nem se criava nada sólido”, situa o pesquisador. Considerada a atenção cada vez maior dada à reconstrução da memória e a proliferação de pesquisas como esta, há cada vez menos chance de que esse comportamento se repita. 

LAÍS ARAÚJO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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