Uma greve de sopradores de vidros da empresa levou Jarbas Maciel a experimentar e a praticar por algum tempo o glass blowing, com resultados posteriores nefastos. “Eu me envenenei com silício, arsênico, bismuto, telúrio, índio, gálio... Vomitava sangue como um tuberculoso e fui para o hospital amarrado na cama”, detalha. Só veio a descobrir que tinha silicose após a volta ao Brasil, o mesmo problema que acomete os trabalhadores de gesso na Chapada do Araripe: “Até hoje, tenho vapor de silício nos pulmões”.
De novo no Recife, Jarbas trabalhou no Departamento de Medicina Tropical da UFPE, como secretário e intérprete, e depois reencontrou a professora Bernardete Pedrosa, que o estimulou a fazer mais um vestibular, agora para Filosofia. Passou novamente em primeiro lugar e, anos mais tarde, veio a ser professor do curso.
Na nova graduação, aproximou-se de Ariano Suassuna e participou da gênese do Movimento Armorial, em 1970. Sobre o amigo e escritor, enfatiza o tom profético: “Daqui a 100 anos, Ariano vai ser o cara mais pesquisado, mais lido, mais ‘tesado’ (transformado em tese) do Brasil. Ele conseguiu meter uma broca e furar o subsolo cultural, étnico e etnográfico do país. Foi ao petróleo da cultura brasileira”.
O violinista Guerra-Peixe foi o primeiro professor de composição de Jarbas Maciel.
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A adesão às concepções artísticas de Ariano e Guerra-Peixe implicam uma discordância de Jarbas Maciel com experiências estéticas mais racionalistas. Ele define o serialismo de Schönberg como “uma matemática de muito mau gosto”; diz que Camargo Guarnieri, com quem tentara estudar no final dos anos 1940, “corrompeu-se também” ao passar do nacionalismo ao serialismo nos anos 1960; e admira Marlos Nobre até Rhythmetron, escrita em 1968 para conjunto de percussão. Já o Stravinski dos balés russos não entra nas ressalvas do professor. Conta que Guerra-Peixe mandava que ele e Clóvis Pereira ouvissem A sagração da primavera, para tentar decorar e reproduzir as complicadas figurações rítmicas da peça, calcada no folclore russo.
De modo geral, Jarbas Maciel rechaça as correntes filosóficas e estéticas que não dialoguem com a tradição desde a Grécia Antiga. “O Modernismo e o Pós-Modernismo, eu deletei da minha vida. Esses filósofos são todos uma fraude, uma porcaria. Eles abandonaram o grande tronco da Filosofia.” Franceses do século 20, como Foucault e Derrida, também não recebem palavras amenas.
KARDECISMO
Filho do falecido escritor, professor, advogado e bancário Aurino Vieira de Araújo Maciel, membro das academias alagoana e pernambucana de Letras, Jarbas possui um timbre de voz semelhante ao de Ariano Suassuna, porém difere na fala mais pausada, pensada. Essa inclinação introspectiva faz com que o docente aposentado veja a unidade do conhecimento sob as diferentes manifestações do pensamento, daí seu interesse polimático por música, filosofia, estética, física, matemática e arquitetura.
As aulas que ministrou na UFPE, por outro lado, nunca se transformarão em apontamentos ou livros: “Eu não preparava aulas, eu lia os livros e me conectava com os filósofos”.
Ano passado, antes de completar os atuais 81 anos de idade, sentiu-se pronto para abraçar a doutrina kardecista. “Se a pessoa não está preparada, aí vai ser assaltada por tudo quanto é de ‘mundiça’ do outro mundo, porque há. Isso aqui é um mundo de expiação”, acredita.
Nos últimos tempos, além das leituras kardecistas, Jarbas Maciel empreendeu o que chama de “um mergulho no inferno” contra o ateísmo militante contemporâneo: “Eu vou ler todos os materialistas, racionalistas... tudo isso é muito pobre, é de uma pobreza extrema”. O cerne da questão, segundo o professor, encontra-se no próprio conceito de matéria: “Se eles são honestos, são competentes, então a ciência lhes mostra que nós não sabemos ainda o que é a matéria”.
Nos 15 minutos finais de conversa, voltamos a tratar de música, pois Jarbas haveria de almoçar e ainda não tínhamos falado sobre música armorial. Novamente lhe perguntei se nos encontraríamos depois, mas ele disse polidamente que se recolheria e não daria mais entrevistas, apenas receberia a fotógrafa enviada pela Continente.
Antes da despedida, uma mera palavra desencadeou uma confissão emblemática: “Koellreutter (introdutor do serialismo no Brasil) vem pra cá jogar essa... eu não digo lama porque Chico Science fez essa coisa genial que é Da lama ao caos. Lama agora é um negócio sério...”. Intervim logo e lembrei-lhe que, em nossa primeira entrevista (em 2002), ele havia chamado a música de Chico Science de “uma mixórdia para despistar a incrível pobreza do produto final”.
Então veio o inesperado mea culpa: “Eu estava totalmente errado... Totalmente errado...”. Após as duas frases pausadas, refletiu: “Aquilo foi muito mal. Praticamente o desmoralizamos (ele e Ariano Suassuna)... Fui muito superficial... Não examinei direito...”. Relembrou a origem do equívoco: “Eu tinha ouvido uma música dele e falei ‘não é por aí’, mas era”. E, antes de me conduzir ao elevador, humildemente admitiu: “Ariano, ao falar com ele, estava totalmente por fora; eu também”.
CARLOS EDUARDO AMARAL, crítico musical e mestre em Comunicação pela UFPE.