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Crítica: Uma relação de amor e ódio

Jornalista Gilles Pudlowski relata sua experiência enquanto aponta a profissionalização de chefs e comensais

TEXTO Renata do Amaral

01 de Setembro de 2014

Ilustração Hallina Beltrão

Para que serve um crítico gastronômico? A pergunta que compõe o título do livro de Gilles Pudlowski é uma provocação, ainda mais quando sabemos que se trata de uma obra escrita por um... crítico gastronômico. Com a escassez de bibliografia sobre o tema (não apenas no Brasil, diga-se de passagem), o livro do jornalista francês, lançado pela recém-criada editora Tapioca, vem a calhar tanto para quem pensa em ingressar na profissão quanto para quem costuma ler esse gênero jornalístico, que ocupa cada vez mais espaço nos cadernos de cultura e suplementos de gastronomia. Ao relembrar sua carreira, Pudlowski desfaz alguns mitos e conta anedotas curiosas sobre os bastidores do ofício.


O crítico Gilles Pudlowski colabora com revistas e jornais franceses, além de ter o próprio guia. Foto: Reprodução

“Quando eu era jovem, em início de carreira, ser crítico de gastronomia não era um motivo de orgulho. Christian Millau e Henri Gault, meus gloriosos antecessores, levantaram o nível, sem dúvida. Sob o comando deles, não se tratava mais de louvar o ‘delicioso Fernand e sua amável Germaine’, mas de criticar cruamente um molho ou um prato, denunciar as flambagens abusivas, os molhos miseráveis, os cozimentos insistentes e os produtos de baixa qualidade. Em suma, não era apenas fazer elogios do gênero, mas atuar como os Zorros da profissão. E foi com eles que fiz minha estreia”, lembra. Hoje, Pudlowski tem seu próprio guia, o Pudlo, e colabora com revistas e jornais franceses.

Foi justamente Christian Millau quem lhe contou o segredo de ser crítico gastronômico: “Nessa profissão, as pessoas sabem comer ou escrever, raramente as duas, às vezes nenhuma delas. Se você souber fazer as duas, certamente terá sucesso”. O ofício estava longe de ser incensado por seu pretenso glamour, como atualmente. “Essa profissão de louco é muito mais fácil de ser praticada hoje do que na década de 1980, quando a qualidade era ainda uma promessa, a nova cozinha (nouvelle cuisine) estava em seus primórdios, de cozimentos rápidos, caldos reduzidos, molhos leves, legumes e peixes frescos, aves rotuladas e cozinha de mercado”, afirma Pudlowski.


Christian Millau - assim como Henri Gault - foi um dos responsáveis por elevar o nível da crítica na área. Foto: Reprodução

Adorado (e às vezes invejado) pelos leitores e odiado pelos chefs e restaurateurs, cabe ao crítico situar as pessoas sobre o cenário gastronômico. Nesse contexto, sempre haverá os melhores e os piores. “Ser crítico e estabelecer hierarquias é uma concomitância. E isso, evidentemente, não agrada a todo mundo. Mas serve principalmente ao leitor, para esclarecer suas escolhas”, avisa. Responsável pelo prefácio do livro, o editor de gastronomia da Veja São Paulo, Arnaldo Lourençato, completa: “Há algo insubstituível no trabalho do crítico profissional: a intimidade proporcionada com a rotina do trabalho. Essa repetição sistemática de visitas permite observar a evolução de um restaurante, sua ascensão ou queda”.

Um dos temas mais polêmicos, quando se fala de crítica gastronômica, é o anonimato. Ao contrário de outros produtos culturais, como um livro ou show, a refeição pode ser alterada (leia-se melhorada) pela presença de um avaliador no local. É o que defende, por exemplo, o Manual da Redação da Folha de S.Paulo, que recomenda que o profissional não se identifique. Pudlowski discorda: “O incógnito, falemos disso! Naturalmente, se ele existe, julgará o restaurante com uma discrição exemplar. Se ninguém o reconhece, ele será servido ‘como todo mundo’, sem privilégios e talvez numa mesa ruim. (...) Mas a cozinha será a mesma, e o chef não se revestirá de um talento súbito, caso o crítico seja reconhecido”. De todo modo, os veículos para os quais trabalha pagam sua conta.


Henri Gault. Foto: Reprodução

Para ele, até mesmo o contrário às vezes acontece: em vez de melhorar o prato, o chef entra em pânico e não consegue cozinhar a contento. “Aliás, a visita de um crítico gastronômico a um restaurante poderia ser comparada à de um diretor escolar a uma classe com seu professor e alunos”, diz. O que importa é que o crítico nunca esqueça sua missão: “Encontrar a fórmula ou as fórmulas que duram, que desaparecem, permanecem ou voltam, mas sobretudo que permitem identificar as vontades de uma época – esse é o papel de pedagogo que desapareceu no crítico gastronômico. Ele deve permitir ao cliente identificar seu desejo”. Se a crítica atual vem cumprindo seu papel, são outros quinhentos.

TIPOS
Além das críticas textuais, há as críticas numéricas, baseadas em notas ou estrelas, acompanhadas ou não de informações por escrito. O sociólogo americano Grant Blank, no livro Critics, ratings and society: the sociology of reviews, distingue dois tipos de resenhas: de procedimento (procedural review) e de conhecimento (connoisseurial review). A primeira é uma avaliação institucional que se caracteriza pela aplicação mecânica de um procedimento, cujos métodos devem ser transparentes para os leitores. Já a segunda é baseada nas escolhas pessoais do autor da crítica, que deve ser um especialista no assunto. Além de analisar o produto em si, busca contextualizá-lo.


Guia Michelin se caracteriza pela sínteses em suas
críticas. Imagem: Reprodução

Lançado em 1972, na França, o guia Gault&Millau é uma mistura dos dois tipos. Enquanto o guia Michelin concede de uma a três estrelas, o Gault&Millau dá notas até 20 para a comida. Mas a grande diferença é que a dupla sempre caprichou nas críticas, enquanto o “guia vermelho” até pouco tempo não trazia comentário algum (e ainda hoje se destaca pela síntese). A influência deles tem sido tão grande, que inventaram a expressão nouvelle cuisine. Isso por meio de um artigo de 1973 que definia seus 10 mandamentos, tais como não cozinhar demais os alimentos, usar produtos frescos e de qualidade, evitar molhos gordurosos, cuidar da apresentação dos pratos e ser inventivos.

O guia Michelin, porém, foi o primeiro a avaliar sistematicamente os restaurantes, em vez de apenas mencioná-los ou descrevê-los como seus antecessores. Criado em 1900, é considerado até hoje o mais influente guia gastronômico europeu. De acordo com a empresa, a rotina de avaliação se baseia em quatro princípios desde seu lançamento: as visitas aos estabelecimentos são anônimas, a seleção de casas atende a todas as categorias de preço e conforto, o pagamento das contas garante a independência dos inspetores e existe atualização anual para assegurar a exatidão das informações. O destaque, porém, vai para os restaurantes que recebem de uma a três estrelas por sua excelência.


O guia Gault&Millau traz textos mais aprofundados em suas
críticas. Imagem: Reprodução

Uma lista bem mais recente, criada em 2002, vem ganhando relevância nos últimos anos: os 50 melhores do mundo, divulgados pela revista britânica Restaurant. Os números da votação impressionam: eles dividiram o mundo em 26 regiões, cada uma com um júri de 36 membros, entre críticos, chefs, restaurateurs e foodies. No total, são 936 votantes com direito a sete votos cada um – ou seja, nada menos que 6.552 votos. Não há critérios predefinidos: os jurados podem escolher qual quiserem, desde que tenham visitado o local nos 18 meses anteriores. Três dos sete votos devem ser de fora da região do jurado. A lista é divulgada na edição de abril da revista e também em um guia anual.

Em breve, os foodies brasileiros vão poder ir a um três estrelas sem sair do país: o Michelin começa a circular no Brasil em 2015, incluindo as capitais Rio de Janeiro e São Paulo. Os restaurantes DOM e Maní, respectivamente 7º e 36º na lista dos 50 melhores do mundo, devem receber estrelas. Mas, para quê, mesmo, serve tudo isso? Deixemos a palavra final aos veteranos Gault e Millau, em seu livro Gault et Millau se mettent à table: “Restaurateurs e hoteleiros, por razões que ainda nos escapam, julgam-se imunes à crítica, à exceção da complacência; eles se apoiam na lei divina e acreditam não ter defeitos ou fraquezas”, diz a dupla. Para se contrapor a isso, serve a crítica gastronômica. 

RENATA DO AMARAL, jornalista e doutoranda em Comunicação pela UFPE.

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