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"O caminho é tocar as músicas com virtuosismo"

Especialista em música antiga, Jordi Savall é responsável por devolver relevância ao repertório renascentista espanhol e despertar o interesse de jovens alunos pelas composições do período

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

01 de Setembro de 2014

Jordi Savall

Jordi Savall

Foto Toni Peñarroya/Divulgação

Para muitos fãs, a fama de Jordi Savall – professor da mais renomada instituição de ensino de música antiga da Europa há 40 anos, a Schola Cantorum Basiliensis, da Basileia (Suíça) – veio com a seleção e interpretação da trilha sonora do filme Todas as manhãs do mundo (1991), de Alain Corneau, baseada especificamente em compositores do barroco seiscentista francês (Lully, Marin Marais, Sainte Colombe e Couperin). No entanto, Savall acumula em seu currículo ao menos três distinções de primeira grandeza, que dão ideia de sua magnitude profissional: um Grammy de melhor performance de grupo de câmara, em 2011, a Legião de Honra do governo francês e, sobretudo, o prêmio Léonie Sonning, considerado o Nobel da Música, que confere ao agraciado um cheque de 125 mil dólares e só contempla gênios do quilate de Igor Stravinsky, Leonard Bernstein, Miles Davis e Keith Jarrett.

O músico catalão se apresenta no dia 5 de setembro na Igreja da Sé, em Olinda, dentro da programação do Mimo 2015, e traz consigo dois integrantes com os quais trabalhou em um dos grupos que dirige, o Hespèrion XXI: o britânico Andrew Lawrence-King, que toca harpa e saltério, e o espanhol Enrike Solinís, na tiorba. Graças às pesquisas de Savall, a música renascentista espanhola voltou a ter relevância em meio às tradições musicais da Europa Ocidental, e a viola da gamba, instrumento típico dos seculos 16 e 17, passou a despertar mais interesse de jovens alunos de música antiga. Mais do que isso, a importância que ele deu à prática da improvisação, quando a interpretação da música antiga no século 20 ainda estava viciada pela execução rigorosa e quadrática dominante do Classicismo para frente, teve impacto amplo nas novas gerações de musicólogos.

Não bastasse ser um músico dito “completo”, que toca, rege e compõe, Savall ainda é dono do próprio selo musical, a Alia Vox, coordena outros dois conjuntos que fundou com sua esposa (a falecida soprano Montserrat Figueiras), La Capella Reial de Catalunya e Le Concert des Nations, e continua a se dedicar – quando a rotina de concertos permite – ao ensino e à pesquisa. Com mais de 200 CDs lançados, incluindo álbuns autorais, compilações e participações, Savall reservou um dia em agosto para atender a imprensa pernambucana via Skype e respondeu, com exclusividade, à Continente, a perguntas elaboradas por estudantes e fãs de música antiga acerca de temas como: fontes de pesquisa, o lugar da improvisação e os respectivos limites nesse gênero de interpretação, as competências de um diretor orquestral, a conquista do público jovem e o download gratuito de músicas.

CONTINENTE Qual o atrativo principal do programa que será apresentado no Mimo?
JORDI SAVALL É um programa que traça uma linha de diálogo entre músicas antigas do Oriente e do Ocidente. Haverá canções sefarditas, otomanas, turcas e, especialmente na parte mais antiga, haverá canções de Diego Ortíz, Antonio de Cabezón, Santiago de Murcia, músicas da tradição dos ostinati e das variações sobre a folia.

CONTINENTE E quais serão os instrumentos utilizados no concerto?
JORDI SAVALL Enrike tocará uma cópia de guitarra barroca (não sei a data de construção dela) e Andrew tocará uma harpa cruzada e um saltério – este, feito de uma cópia de um instrumento do século 13 ou 14. Eu tocarei uma viola da gamba soprano de 1500, do Renascimento italiano, e uma viola da gamba baixo de 1697, construída por Barak Norman.


Foto: Divulgação

CONTINENTE A descoberta da música antiga parece nunca ter fim, e seus trabalhos como músico são a prova de que há muitos tesouros a serem descobertos. Como se dá a sua pesquisa de repertório?
JORDI SAVALL Meu trabalho, como você disse, nunca tem fim porque há sempre alguma maravilha escondida, por descobrir. Creio que essa é a graça da música antiga: podemos descobrir coisas admiráveis de outras épocas, das quais não tínhamos nem ideia que podiam existir. Sons de instrumentos que foram esquecidos, músicas primorosas, a nobreza da arte da improvisação... Isso é muito importante. E creio que necessitamos disso hoje, porque não existe em nossa época esse tipo de música, é importante conhecer toda a vitalidade das músicas antigas.

CONTINENTE E onde você procura as partituras, os registros, as melodias...?
JORDI SAVALL Há muitas formas de se procurar os registros. Há os repertórios de compositores que conhecemos pouco, como Diego Ortiz, Antonio de Cabezón, Marin Marais, e de compositores que conhecemos bem, como Bach e outros – e há muitas músicas nesses repertórios que não estão conhecidas. Tenho muitos microfilmes e manuscritos de várias coleções, a partir dos quais faço minhas investigações.

CONTINENTE Em seu CD Lachrimae Caravaggio, temas de compositores como Gesualdo e Monteverdi são tratados sob livres improvisações, algo que hoje é associado comumente ao jazz. Em que grau a improvisação tem espaço na música antiga?
JORDI SAVALL Creio que hoje em dia essa parte da música – no universo do jazz e em outros tipos de música no Ocidente, como o folk, as músicas celtas, essas coisas – é como na música antiga. Improvisaremos sobre várias coisas nesse programa que vamos fazer em Olinda: sobre as folias, a guaracha... e também sobre canções sefarditas, andaluzas... Penso que é uma das riquezas que estamos incorporando de novo no mundo da música clássica através da música antiga, porque isso não existe na música clássica. No seu universo, praticamente não há nenhum intérprete que improvise em um concerto. Na tradição oral do mundo oriental, dos Bálcãs, do Marrocos, a improvisação é fundamental.

CONTINENTE Ainda levando em conta Lachrimae Caravaggio, sabemos que a música antiga permite essa série de adaptações, arranjos e formações instrumentais diversas. Até onde pode ir essa criatividade sem que haja abusos?
JORDI SAVALL Essas questões são muito relativas. Um abuso seria deformar tanto uma música, que já não se reconhecesse como ela seria originalmente. Uma deformação seria, pois, uma transformação na música sem se ter conhecimento do tempo, do pulso... se a tocassem excessivamente lenta ou excessivamente rápida e, assim, transformando-a de forma arbitrária.


Foto: Divulgação

CONTINENTE Em sua opinião, os melhores maestros são (ou foram) grandes instrumentistas ou só lhes basta a liderança e o senso de estilo?
JORDI SAVALL Nas épocas antigas, o diretor de orquestra era sempre um músico que tocava órgão, clavicêmbalo ou violino. Para se chegar à figura do diretor que é somente diretor, foi preciso esperar até o século 19, com o Romantismo. Antes, um Félix Mendelssohn-Bartholdy era compositor, era um músico excelente e também dirigia. Então, sempre foi assim e, atualmente, se alguém pode fazer a carreira somente de maestro é porque também há muito mais orquestras e os maestros têm sido muito demandados. Penso que o músico completo é capaz de ser um bom instrumentista, de dirigir um conjunto, de criar, de compor, de investigar, de todas essas possibilidades. E de ensinar também...

CONTINENTE As interpretações com instrumentos originais ainda são tratadas com reservas, mas elas influenciaram inclusive quem hoje as rejeita – é só ver como Bach era tocado há 50 anos e como é agora pelas orquestras modernas. Em sua opinião, quais os rumos da interpretação de música antiga?
JORDI SAVALL Creio que a música antiga chegou a um nível igual ao da música clássica. O caminho é tocar as músicas mais velhas com o máximo de virtuosismo, de emoção, de fidelidade... Esse é o caminho, tocar o melhor possível a música, conhecendo bem a época, as técnicas... E a partir daqui eu quero que chegue o momento em que não haja diferença entre um instrumento antigo e um instrumento moderno. Imagine agora que tivéssemos Pablo Casals e Jordi Savall. Seria o mesmo. Casals passou 10 anos estudando as suítes de Bach, antes de tocá-las, e Jordi Savall passou 10 anos estudando as suítes de Marin Marais, antes de tocá-las. É o mesmo processo: chegar-se a aprofundar e a estar atento à música, para que ela possa falar por si mesma. Quando você conhece a fundo a música, ela lhe diz o que você tem de ser. Tocando-a, a música se expressa. Quando você inventa que interpretar é fazer mais coisas (“aqui mais lento, aqui mais rápido”), então você se arrisca a deformar a música.

CONTINENTE Como a música antiga poderia ser melhor difundida entre os jovens?
JORDI SAVALL Bem, eu creio que é como todos os tipos de música. O principal problema é que na escola não se faz música o suficiente, e fazer música é uma coisa muito divertida: onde há música, há dança e participação. Acho que se fôssemos capazes de dar aos jovens a experiência de fazer música desde pequenos, de cantar, a música seria algo fundamental. Se os concertos fossem mais baratos ou gratuitos, haveria muito mais gente jovem. Quem pode pagar hoje em dia 60 dólares para assistir a um concerto? Não sei quanto é no Brasil, mas passei uns dias em Salzburgo e uma entrada de concerto valia 100 euros. Que jovem pode pagar essa quantia por um concerto? Esses dias estive em Edimburgo e os concertos, que eram no meio da rua, estavam cheios de jovens, enquanto os que eram em salas de concerto, cujos ingressos custam muito dinheiro, tinham majoritariamente gente mais velha.

CONTINENTE Como você encara o fenômeno dos blogs de música antiga que permitem download gratuito, incluindo suas peças e discos?
JORDI SAVALL É algo lastimável porque penso que um artista que investe sua vida nesse processo criativo tem direito a recuperar um pouco do tempo investido. Creio que esses blogs que difundem gratuitamente as coisas são algo muito grave, porque se não se pode recuperar um pouco do que é investido, chega-se a um ponto em que não se pode fazer mais projetos. Isso é a morte da criação. Isso é como se eu pudesse comprar um carro sem pagar nada, as fábricas de carro não poderiam existir.

CONTINENTE Uma dúvida de muitos estudantes de música antiga: como realizar o baixo contínuo? Há algum livro que você tenha usado como referência?
JORDI SAVALL Há muitos livros importantes de baixo contínuo. Creio que o melhor para se estudar o baixo contínuo é buscar as fontes da época. Há um livro que talvez seja o de melhor acesso a qualquer estudante, que é o de Manfred Bukofzer, Música na era barroca, esse livro traz muita informação. Aqui mesmo (folheando), traz muita informação sobre os tratados da época e muitos compositores que deram regras de como fazer o contínuo. 

CARLOS EDUARDO AMARAL, crítico musical e mestre em Comunicação pela UFPE.

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