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Ouvido absoluto: Quando qualquer som é uma nota musical

A superaudição, que permite ao portador discernir os exatos componentes sonoros em qualquer ruído, ainda é um atributo indecifrável para a ciência

TEXTO Fernando Athayde

01 de Julho de 2014

Aula do compositor alemão Mozart, que teria a capacidade de reconhecer tons nos barulhos desde os 7 anos

Aula do compositor alemão Mozart, que teria a capacidade de reconhecer tons nos barulhos desde os 7 anos

Imagem Aquarela de Carmontelle/Reprodução

Primeira das sete artes, a música surgiu na pré-história, há cerca de 50 mil anos, e veio a ser um símbolo tão humano quanto a infinita busca pela felicidade. Profundamente transformada ao longo do tempo, ela só atingiu seu nível máximo de complexidade com a chegada do século 20. Bombardeada pela expansão tecnológica e pelas profundas transformações socioculturais que se alastraram pelo mundo a partir daí, acabou se tornando um legítimo e fascinante objeto de estudo da ciência.

Entre comunicação, física e neurologia, podemos citar diversas questões responsáveis por elevar a música a um eixo fundamental da cultura. Ainda assim, é possível que nada seja mais intrigante que a percepção musical isolada de cada indivíduo. A figura do próprio músico, que, a bem da verdade, submete seu corpo a uma transformação fisiológica a fim de compreender o que são, de fato, os sons, é um exemplo do poder que tem a música sobre o ser humano.

Para o músico, antes mesmo do instrumento, a ferramenta máxima de trabalho é o ouvido. É preciso aprender a ouvir. É preciso desenvolver a capacidade de escutar o som e conseguir destrinchá-lo em ritmo, harmonia e melodia. Alguém que nunca se submeteu à educação musical, por exemplo, pode não perceber a desafinação de uma guitarra, algo improvável para um músico. Nesse ponto, estão inseridos os conceitos de “ouvido absoluto” e “ouvido relativo”, formas distintas de perceber o som e cujas origens até hoje permanecem ocultas.

De forma simples, considera-se portador do “ouvido relativo” aquele que consegue identificar os intervalos melódicos entre duas ou mais notas musicais. Por exemplo, se alguém senta ao piano e toca um fá natural seguido de um sol natural, o portador do “ouvido relativo” vai identificar que houve ali um intervalo de um tom entre os sons, mas não vai saber identificar quais notas foram tocadas. Essa condição é comum à grande maioria dos músicos, sendo adquirida através do estudo constante e da prática da música.

Já aquele que detém o “ouvido absoluto” consegue perceber isoladamente qualquer nota musical. Algo como identificar que a sirene do carro da polícia é um dó, o latido de determinado cão é um fá ou até a própria respiração é uma variação entre sol e sol sustenido. Essa condição, porém, não tem uma explicação científica definitiva, sendo até hoje discutida se sua origem é natural ou induzida.

SUPERPODER
Comprovadamente, o “ouvido absoluto” se manifesta na primeira década de vida. Atuando quase que como um “superpoder”, porém, essa condição não tem uma origem esclarecida. Pesquisadores como a psicóloga britânica Diana Deutsch e o geneticista americano Peter Gregersen, por exemplo, realizaram diversos estudos sobre o aparecimento da condição e encontraram resultados quase diametralmente opostos.


Dono de ouvido absoluto, o músico Brian Wilson não dava sossego aos Beach Boys, até que a execução de uma música estivesse perfeita. Foto: Reprodução

Em seu artigo mais recente Absolute pitch exhibits phenotypic and genetic overlap with synesthesia, de 2013, Gregersen aponta uma relação genética entre o aparecimento do “ouvido absoluto” e a sinestesia, que é a capacidade de relacionar determinado som a uma cor, situação, cheiro ou objeto. Para o pesquisador, essas são características hereditárias, que não podem ser modificadas ou adquiridas, amalgamadas numa forma bastante particular de perceber os sons que se relacionam intimamente com a história de vida do portador. Dessa forma, segundo o geneticista, essa característica, ainda que conhecida por intermédio da música, não tem nenhuma relação direta com a educação musical.

Já Diana Deutsch encontrou nas línguas tonais uma explicação para o surgimento do “ouvido absoluto”. Vertendo a condição numa característica totalmente humana, ela crê que todo indivíduo pode desenvolver essa habilidade, desde que seja influenciado de forma correta.

Dita tonal é aquela língua em que a altura com que se pronuncia as sílabas interfere no significado delas. Ou seja, o que legitima o valor de cada fragmento silábico é o quão grave ou o quão agudo ele é. Um bom exemplo disso é o mandarim, língua mais falada no mundo e que tem o sentido das palavras ditado pelas notas musicais com que se pronuncia cada verbete. Esse tipo de idioma é frequentemente confundido com outro, o sensível ao peso silábico, onde o tempo rege a interpretação. No japonês, por exemplo, o que define cada palavra é a duração de cada sílaba pronunciada.

No artigo Absolute pitch among American and Chinese conservatory students: prevalence differences, and evidence for a speech-related critical period, de 2005, Deutsch comparou o aparecimento da característica em dois grupos de estudantes de música, um em Nova York, e o outro em Pequim. Os resultados mostraram uma predominância de casos nos asiáticos, em que 60% das crianças chinesas conseguiram desenvolver a habilidade contra 14% das americanas. Ainda assim, para a realização do estudo, nenhuma característica genética foi levada em consideração.

TENDÊNCIA ERUDITA
A partir do século 20, com a dinamização dos processos criativos em virtude do avanço tecnológico, a desafinação dos instrumentos, tanto quanto a própria afinação, foi elevada a um novo patamar e se tornou recurso de linguagem. O próprio grupo de heavy metal Black Sabbath, em seu disco de estreia homônimo, de 1970, gravou todos os instrumentos afinados a partir de uma frequência referencial diferente do padrão mundial, que é o lá 3 obtido em 440hz.

Dessa forma, chega a ser compreensível que a maioria dos músicos portadores do “ouvido absoluto” tende a seguir o caminho da música erudita. Para eles, que percebem toda e qualquer nuance tonal dos sons, a desafinação pode vir a ser algo incômodo, a quebra do equilíbrio harmônico. Uma história curiosa é a que se conta sobre Wolfgang Amadeus Mozart, que aos sete anos de idade já saía pela rua identificando o tom de todo tipo de barulho que encontrava. Do som dos passos dos pedestres ao sino da igreja.


Em Beat it, é possível observar a preocupação de Michael Jackson e
Quincy Jones com a afinação precisa dos instrumentos. Foto: Reprodução

Justamente por perceber as frequências isoladas, um indivíduo cujo ouvido é absoluto não ouve a música como um fluxo homogêneo, mas, sim, como uma série de instrumentos soando isoladamente, ao mesmo tempo. Apesar disso, a música popular tem seus expoentes dotados dessa condição, o que geralmente vem atrelado a algum caso curioso.

Um deles é o do disco Pet sounds (1966), do Beach Boys. Encabeçada pelo genioso e genial Brian Wilson, a banda era posta à exaustão durante os ensaios, quando tudo era feito e refeito até atingir a perfeição. Wilson, que não admitia erros de execução, é um caso notório de como um detentor do ouvido absoluto conseguiu se inserir na música popular de forma singular. Logo na canção Wouldn’t it be nice, que belissimamente abre o álbum, é possível perceber a combinação de inúmeras faixas de voz, todas extremamente afinadas. Um feito de altíssimo nível de dificuldade.

Assim como Wilson, Michael Jackson foi um artista que atingiu um nível técnico único. É quase imperceptível, mas a própria respiração do cantor, traço característico de sua empostação vocal, sempre aparece no mesmo tom da canção. Em Beat it, terceiro single do álbum Thriller, de 1982, é possível notar a preocupação que o artista e seu produtor Quincy Jones tinham em manter a afinação precisa dos instrumentos. No momento do solo de guitarra, tocado pelo guitarrista Eddie Van Halen, há uma série de sons sintetizados inseridos pontualmente na harmonia da música que, ainda que extremamente processados, permanecem dentro do mesmo padrão tonal.

Nessa mesma época, porém, em Nova York, o Sonic Youth lançava o disco Confusion is sex, uma perfeita antítese dessa forma de enxergar a música. O álbum legitimou a união entre a literatura pulp da primeira metade do século 20 e a experimentação tonal máxima, quando a desafinação passou a ser um elemento importante para o desenvolvimento da canção. Na prática, uma forma de pensar extremamente difundida a partir de então.

Assim, é possível sobrepor a ideia de que a música, com o passar do tempo, esgotou as possibilidades de criação exclusivamente musicais, transformando-se numa única dentre tantas linguagens possíveis. A música concreta de John Cage, por exemplo, é algo que trabalha questões musicais que vão muito além do próprio áudio. A mensagem está no contexto que envolve a composição, e não nos intervalos harmônicos, melódicos e rítmicos. O próprio trabalho de sound design, que faz o som interagir diretamente com a imagem, é um conceito cada vez mais notável. O trabalho realizado no filme Gravidade (2013), de Alfonso Cuáron, é um exemplo que materializa a ideia de que a própria música pode interagir com o ambiente, definindo uma nova forma de criar. 

FERNANDO ATHAYDE, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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