VALOR SIMBÓLICO
Outro ponto comum nas explicações é o fator nutricional, que vai além da limpeza interna: pesquisas apontam que o solo contém sais minerais como cálcio, sódio e ferro – o que explica, por exemplo, a maior incidência da geofagia em mulher grávidas, ou em animais que vivem em altitudes maiores. Para as pesquisadoras Sera e Paula, a motivação, apesar de amplamente aceita, não se sustenta tanto assim. Há mais minerais em plantas do que no solo, e muito desses nutrientes disponíveis não são absorvidos pelo corpo (além, claro, dos riscos advindos da possibilidade de contaminação ao comer terra de ambientes contaminados ou sujos). “A motivação fundamental não precisa ser totalmente nutricional ou totalmente desintoxicante: o hábito poderia servir para diferentes razões em diferentes momentos da vida”, explica Paula. Dietas pobres em minerais e estilo de vida exigentes de grande quantidade de energia podem gerar e intensificar a geofagia.
Há, ainda, o valor simbólico do ato: comer terra é diretamente comer um pouco do mundo. O antropólogo e etnólogo Raul Lody afirma, em seu livro Brasil bom de boca: temas da antropologia da alimentação, que a geofagia implica um sentimento de comer tudo que a terra pode produzir, de desejo de morte e de pertencimento com o mundo (ao morrer, o homem é enterrado e comido por essa mesma terra).
“É um hábito que nasce da busca por complementação nutricional, pela sobrevivência”, reitera Lody. “Mas há ainda a relação que existe no desejo de comer para morrer. Existem relatos do século 19 de máscaras de metal feitas para evitar que escravos comessem terra. O que acontecia muito é que comer, entre os aprisionados, era o desejo de se alimentar daquilo para morrer e se libertar. A máscara de metal impossibilitava que eles escolhessem o que comer ou beber, fazia com que se comportassem seguindo o que os seus donos determinassem. São os dois pilares principais. Desejo de comer terra e morrer, durante a escravidão. E a necessidade nutricional, pela sobrevivência.”
Com mesma intensidade, há também o desejo de retorno. Como a Rebeca de Cem anos de solidão, comendo compulsivamente o barro e a cal das paredes na cidade de Macondo, há o simbolismo de retorno à terra entre seus exilados, seja pela escravidão, distância ou vazio. Ao comer o mundo comendo o solo, procura-se “terra da costa ou qualquer outra terra para viver uma outra vida”, como afirma Raul Lody, ao final do capítulo Comedores de terra, do livro citado.
ANTROPOMORFOS
A afirmação do antropólogo Roberto DaMatta sintetiza a dinâmica cultural da alimentação: “Toda substância nutritiva é alimento, mas nem todo alimento é comida”. Além da identificação do que deve (e quando deve) ser comido, alimentos podem simbolizar poder e ascensão, ponto de miscigenação entre povos, limites dentro de religiões. Expressamos também o desejo do corpo, nosso e de outrem, através da comida.
“É muito antiga entre os povos a busca de representação iconográfica de pessoas, animais, de mitos. Buscamos uma representação do nosso entorno e de nossas experiências cotidianas, geralmente definidas por nossa área geográfica. A comida é feita, claro, para alimentar, mas também para simbolizar a nossa cultura”, afirma o antropólogo Raul Lody. “Os símbolos são diferentes, dependendo de seus contextos, suas épocas. A representação é uma forma de trazer o imaginário através da comida: nós modelamos a massa e damos a ela a forma que desejamos.”
Foto: Divulgação
A representação que temos na comida – que pode se manifestar através do formato e dos nomes que damos a ela – garante o caráter antropofágico ao ato: ali, com as mãos, garfo e faca ou com os olhos comemos um pouco do ser humano e da sua cultura. Se o desejo pelo alimento é traduzido durante a espera manifestada pelos olhos, o desejo por pessoas também costuma ser.
Comer o outro ao comer um alimento antropomorfo é incorporar suas atribuições, vontades e papéis sociais. “Podemos ter a representação humana em pães, biscoitos, doces. Também não importa o procedimento: a comida pode ser frita, cozida. Esse tipo de realização sempre houve, e o homem sempre dominou essa técnica. Você encontra essa busca por prazer e representação, por comunicação com outras pessoas dentro da alimentação desde um período pré-cristão”, pontua o antropólogo.
O doce nego-bom, por exemplo, feito com banana, limão e açúcar, era produzido por escravos nos engenhos de açúcar de Pernambuco. Há lendas orais sobre a origem do nome, como a queda dos que produziam o melado de açúcar nos caldeirões ferventes durante a produção do doce; há ainda a hipótese da hipersexualização do corpo negro, da mulher escrava, que ficava responsável pela produção para as famílias de engenho. Ainda hoje é uma lembrança viva do período escravista no país.
“Cada comida tem uma intenção, uma relação de imaginários. A barriga de freira parte do imaginário de que freiras não tomam sol, então o doce é branquinho, o que é uma referência factível, apesar de sabermos que não existem apenas freiras brancas. Temos também a bebida típica do carnaval de Olinda, a cachaça pau do índio. O corpo é muito ligado à fertilidade, à sexualidade, e assim gostamos de atribuir sentido ao que estamos fazendo”, afirma Lody. É contado que não foi Seu Cardoso, criador da cachaça, quem atribuiu a ela seu nome, mas, sim, os clientes, que assistiram à produção e viram no ato e nos ingredientes um motivo para o duplo sentido.
O corpo comestível e suas significações estão presentes na culinária popular brasileira, especialmente a doçaria, como o olho de sogra (essencialmente ameixas e açúcar, supostamente originário de uma mulher que ensinava a nora a cozinhar e errou a receita do beijinho propositalmente), ou o pé de moleque (amendoim torrado e açúcar, com histórias de origem que variam desde a semelhança com a cor e calos das crianças que corriam em terra batida, até a das cozinheiras que deixavam o doce na janela para esfriar e reagiam aos roubos da vizinhança com gritos de “Pede, moleque!”).
As representações e simbolismos culturais, além de importantes e inevitáveis, fazem parte de um processo retroalimentar, no qual nos reafirmamos e lembramos de nós mesmos, ao qual Lody denomina de endogastronomia: pois, como explica no seu livro aqui mencionado, “na mímese do outro comemos a nós mesmos”.
LAÍS ARAÚJO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.