Geofagia: O estranho hábito de comer terra
Ato comum entre crianças e grávidas, ele pode ter explicações extranutricionais, ligadas à cultura e a contextos históricos
TEXTO Laís Araújo
01 de Julho de 2014
Imagem Hallina Beltrão
Em Cem anos de solidão, Rebeca chega à casa da família Buendía com uma carta de explicação pouco plausível e um hábito considerado estranho: gosta de comer terra e arrancar fatias finas da cal das paredes para ingerir como bolachas. A forma como enterra as mãos na areia, a cada vez que não consegue ignorar suas vontades, apesar dos esforços e punições da matriarca da família, não é tão esquisita assim fora do universo fantástico de Gabriel García Marquez. Comer o que não é considerado alimento, por longos períodos, ato chamado de pica ou alotriofagia, pode ser mais que uma característica patológica. Na cultura ocidental, o desejo é majoritariamente retratado pela geofagia, ato de comer terra e solos semelhantes à argila, geralmente lembrado como um capricho pontual de crianças e mulheres grávidas. Mas há registros milenares do hábito também em países como China e Egito. E explicações também.
Segundo Sera Young, especialista em alotriofagia da Universidade Cornell de Nova York, os primeiros registros são creditados ao grego Hipócrates, “o Pai da Medicina”, em 460 a.C, e seguem se manifestando em escritos médicos da Antiguidade, Idade Média e Renascimento até os dias de hoje. O foco da análise tem sido o viés patológico, mas outras linhas de estudo já deram resultados: existem razões adaptativas, culturais e nutricionais para esse consumo. “Ao redor do mundo, mulheres e crianças são os consumidores mais comuns. A explicação mais contraintuitiva da geofagia é que o hábito serve para desintoxicar agentes patogênicos, já que ele absorve moléculas perigosas antes de elas entrarem na nossa corrente sanguínea. Ou seja: em essência, a terra serve para limpar.” O ato é comparável aos banhos e máscaras de argila que são feitos com fins terapêuticos, já que o material tem grande capacidade de absorção e é considerado capaz de tratamento reequilibrante. Há registros de povos indígenas que preparam batatas e nozes de carvalho com argila.
Já que crianças em crescimento e mulheres grávidas são mais vulneráveis a esses agentes biológicos, Sera, que também escreveu o livro ainda não traduzido Craving earth, explica que faz sentido que eles se esforcem para conseguir tal proteção. O hábito é verificado não apenas em humanos, mas também em mais de 200 espécies animais.
Professora da Universidade do Texas, especialista em Antropologia e Primatologia, a pesquisadora Paula Pebsworth comenta a relação de estigma com o tema – há escasso material de pesquisa acadêmica –, apesar de suas características evolutivas. “Uma coisa que acho intrigante é que a maioria das pessoas concorda que a geofagia nos animais é adaptativa, mas considera que quando acontece com humanos é uma aberração ou uma doença.”
Sera Young complementa que o comportamento se manifesta em diferentes classes sociais e regiões. “Mas, quando eu tento perguntar sobre o hábito, as pessoas geralmente passam a falar na terceira pessoa, já que o tema ainda é muito estigmatizado em diversos lugares. Depois que passam a se sentir confortáveis, dão dicas sobre quais terras são as melhores para comer.”
Doces como pé-de-moleque e o olho de sogra aludem ao corpo humano e à sua representação em contexto cultural. Foto: Divulgação
VALOR SIMBÓLICO
Outro ponto comum nas explicações é o fator nutricional, que vai além da limpeza interna: pesquisas apontam que o solo contém sais minerais como cálcio, sódio e ferro – o que explica, por exemplo, a maior incidência da geofagia em mulher grávidas, ou em animais que vivem em altitudes maiores. Para as pesquisadoras Sera e Paula, a motivação, apesar de amplamente aceita, não se sustenta tanto assim. Há mais minerais em plantas do que no solo, e muito desses nutrientes disponíveis não são absorvidos pelo corpo (além, claro, dos riscos advindos da possibilidade de contaminação ao comer terra de ambientes contaminados ou sujos). “A motivação fundamental não precisa ser totalmente nutricional ou totalmente desintoxicante: o hábito poderia servir para diferentes razões em diferentes momentos da vida”, explica Paula. Dietas pobres em minerais e estilo de vida exigentes de grande quantidade de energia podem gerar e intensificar a geofagia.
Há, ainda, o valor simbólico do ato: comer terra é diretamente comer um pouco do mundo. O antropólogo e etnólogo Raul Lody afirma, em seu livro Brasil bom de boca: temas da antropologia da alimentação, que a geofagia implica um sentimento de comer tudo que a terra pode produzir, de desejo de morte e de pertencimento com o mundo (ao morrer, o homem é enterrado e comido por essa mesma terra).
“É um hábito que nasce da busca por complementação nutricional, pela sobrevivência”, reitera Lody. “Mas há ainda a relação que existe no desejo de comer para morrer. Existem relatos do século 19 de máscaras de metal feitas para evitar que escravos comessem terra. O que acontecia muito é que comer, entre os aprisionados, era o desejo de se alimentar daquilo para morrer e se libertar. A máscara de metal impossibilitava que eles escolhessem o que comer ou beber, fazia com que se comportassem seguindo o que os seus donos determinassem. São os dois pilares principais. Desejo de comer terra e morrer, durante a escravidão. E a necessidade nutricional, pela sobrevivência.”
Com mesma intensidade, há também o desejo de retorno. Como a Rebeca de Cem anos de solidão, comendo compulsivamente o barro e a cal das paredes na cidade de Macondo, há o simbolismo de retorno à terra entre seus exilados, seja pela escravidão, distância ou vazio. Ao comer o mundo comendo o solo, procura-se “terra da costa ou qualquer outra terra para viver uma outra vida”, como afirma Raul Lody, ao final do capítulo Comedores de terra, do livro citado.
ANTROPOMORFOS
A afirmação do antropólogo Roberto DaMatta sintetiza a dinâmica cultural da alimentação: “Toda substância nutritiva é alimento, mas nem todo alimento é comida”. Além da identificação do que deve (e quando deve) ser comido, alimentos podem simbolizar poder e ascensão, ponto de miscigenação entre povos, limites dentro de religiões. Expressamos também o desejo do corpo, nosso e de outrem, através da comida.
“É muito antiga entre os povos a busca de representação iconográfica de pessoas, animais, de mitos. Buscamos uma representação do nosso entorno e de nossas experiências cotidianas, geralmente definidas por nossa área geográfica. A comida é feita, claro, para alimentar, mas também para simbolizar a nossa cultura”, afirma o antropólogo Raul Lody. “Os símbolos são diferentes, dependendo de seus contextos, suas épocas. A representação é uma forma de trazer o imaginário através da comida: nós modelamos a massa e damos a ela a forma que desejamos.”
Foto: Divulgação
A representação que temos na comida – que pode se manifestar através do formato e dos nomes que damos a ela – garante o caráter antropofágico ao ato: ali, com as mãos, garfo e faca ou com os olhos comemos um pouco do ser humano e da sua cultura. Se o desejo pelo alimento é traduzido durante a espera manifestada pelos olhos, o desejo por pessoas também costuma ser.
Comer o outro ao comer um alimento antropomorfo é incorporar suas atribuições, vontades e papéis sociais. “Podemos ter a representação humana em pães, biscoitos, doces. Também não importa o procedimento: a comida pode ser frita, cozida. Esse tipo de realização sempre houve, e o homem sempre dominou essa técnica. Você encontra essa busca por prazer e representação, por comunicação com outras pessoas dentro da alimentação desde um período pré-cristão”, pontua o antropólogo.
O doce nego-bom, por exemplo, feito com banana, limão e açúcar, era produzido por escravos nos engenhos de açúcar de Pernambuco. Há lendas orais sobre a origem do nome, como a queda dos que produziam o melado de açúcar nos caldeirões ferventes durante a produção do doce; há ainda a hipótese da hipersexualização do corpo negro, da mulher escrava, que ficava responsável pela produção para as famílias de engenho. Ainda hoje é uma lembrança viva do período escravista no país.
“Cada comida tem uma intenção, uma relação de imaginários. A barriga de freira parte do imaginário de que freiras não tomam sol, então o doce é branquinho, o que é uma referência factível, apesar de sabermos que não existem apenas freiras brancas. Temos também a bebida típica do carnaval de Olinda, a cachaça pau do índio. O corpo é muito ligado à fertilidade, à sexualidade, e assim gostamos de atribuir sentido ao que estamos fazendo”, afirma Lody. É contado que não foi Seu Cardoso, criador da cachaça, quem atribuiu a ela seu nome, mas, sim, os clientes, que assistiram à produção e viram no ato e nos ingredientes um motivo para o duplo sentido.
O corpo comestível e suas significações estão presentes na culinária popular brasileira, especialmente a doçaria, como o olho de sogra (essencialmente ameixas e açúcar, supostamente originário de uma mulher que ensinava a nora a cozinhar e errou a receita do beijinho propositalmente), ou o pé de moleque (amendoim torrado e açúcar, com histórias de origem que variam desde a semelhança com a cor e calos das crianças que corriam em terra batida, até a das cozinheiras que deixavam o doce na janela para esfriar e reagiam aos roubos da vizinhança com gritos de “Pede, moleque!”).
As representações e simbolismos culturais, além de importantes e inevitáveis, fazem parte de um processo retroalimentar, no qual nos reafirmamos e lembramos de nós mesmos, ao qual Lody denomina de endogastronomia: pois, como explica no seu livro aqui mencionado, “na mímese do outro comemos a nós mesmos”.
LAÍS ARAÚJO, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.