O EZLN era formado, na maioria, por indígenas das comunidades tzotzil, tzeltal, tojolabal, chol, zoque e mame. No início de tudo, o que se sabe é que eram apenas três mestiços e três indígenas. Não por acaso, o levante aconteceu no primeiro dia de 1994, data que marcou o ingresso do México no “Primeiro Mundo”, a partir da assinatura do Tratado de Livre Comércio (TLC) da América do Norte. Os rebeldes abandonaram a cidade no dia seguinte que a “tomaram”. No muro, o recado: “Atenção mexicanos: fomos a Rancho Nuevo, depois a Tuxtla, já não terá descanso. Obrigada a todos. Não queremos TLC, queremos liberdade. Viva o EZLN”. O combate durou apenas 12 dias. Dezenas de mortos atraíram a atenção do mundo.
Idealizado por marxistas, o zapatismo encontrou espaço num momento de crise de utopias. É o que observa o sociólogo e professor da Universidade Federal de Pernambuco, o mexicano Luis de la Mora. “Eles constituíram mais que uma tentativa militar de tomada do poder, uma estratégia de informar, sensibilizar e mobilizar a população, não somente do Estado de Chiapas, da precária situação social e econômica a que milhões de mexicanos estavam reduzidos, e principalmente denunciar a falta de democracia e transparência que significaram os 50 anos de governo priista (Partido Revolucionário Institucional). O movimento sabe criar situações de utilização dos meios de comunicação. Sua arma mais importante é essa, muito mais que metralhadoras ou obuses”, pontua. Ao contrário dos movimentos comunistas que fracassaram nas décadas de 1970 e 1980, o zapatismo não visava tomada de poder. Em pronunciamento de novembro de 2003, o “sub” Marcos – quase uma “lenda”, posto que uma liderança sem rosto até os dias de hoje – referiu-se à insurreição com as seguintes palavras: “Faz 10 anos, empunhamos armas por democracia, liberdade e justiça para todos os mexicanos”.
AUTONOMIA
Naquele fim de tarde frio, estava diante de Raymundo Sánchez Barraza, coordenador da Centro Indígena de Capacitação Integral (Cideci), ou Universidad de la Tierra-Chiapas: Ivan Ilinch. Ela é construída no meio de uma floresta e, para chegar lá, é preciso seguir até o fim de uma rua de terra, chamada Estrada Real de San Juan de Chamula, no Bairro Nueva Maravilla. Chiapas é o território onde o EZLN nasceu. Escolher este destino entre tantos outros no México é a certeza de encontrar, ainda forte, a cultura pré-hispânica. Os povos índios do México são percebidos não só nos traços físicos, mas nos vários idiomas falados (naquela região em especial o totzil), nos trajes usados, na cultura gastronômica e no modo de viver.
As construções e equipamentos da Universida de la Tierra são simples e mantidos sem ajuda do governo
Quem apresentou o centro foi um jovem indígena que frequentava o lugar há cerca de um ano. “Recebem alguma coisa do governo local? Energia, por exemplo?”, provoquei. “Aqui não tem nada a ver com o governo!”, respondeu, de pronto. “Produzimos a nossa própria energia, comida, construímos nós mesmos tudo aqui. Somos uma base de resistência autônoma”, afirmou.
Desde a “insurreição” liderada pelos ezetelenes, a luta para garantir os direitos dos povos indígenas ganha o apoio de civis, intelectuais e organismos internacionais. Fracassado todo tipo de negociação e diálogo com o governo e os partidos políticos, inclusive os mais à esquerda, os zapatistas decidem por mudar o rumo estratégico de sua luta. Em agosto de 2003, desistem do enfrentamento direto e armado com o exército federal mexicano e impulsionam a criação das Juntas de Buen Gobierno (JBG) ou caracoles. A batalha passa a ser no campo do conhecimento e da cultura.
São 29 municípios e cinco caracoles, que, à revelia do estado mexicano (a quem chamam de “mau governo”), constroem uma estrutura autossuficiente, nos diversos níveis: econômico, de saúde, justiça e, claro, de educação. Com sistemas básico e secundário estruturados pelos zapatistas, as unitierras contribuem para esse projeto educativo autônomo das comunidades indígenas do sul mexicano. Ainda que não seja um organismo zapatista, a Universidad de la Tierra tem tudo a ver com o ideário defendido por eles. A lógica pedagógica que visa o mercado capitalista é subvertida. A escolarização é tratada como algo fluido, apoiada por relações sociais livremente construídas, como defendeu o pensador austríaco Ivan Ilinch, que dá nome ao campus em Chiapas, criado em 2004.
Sem títulos, professores ou alunos, são os jovens que acionam a alavanca. Os cursos oferecidos compreendem desde o trabalho manual, como marcenaria ou mecânica, até arquitetura, agroecologia ou filosofia. O sistema entende as necessidades pelas quais passam esses jovens, à margem das políticas públicas. No Centro Indígena, é o “estudante” que faz seu horário, adequando-o à rotina. Em entrevista a In Motion Magazine, conduzida por Nic Paget-Clarke, em 2005, Raymundo Barraza explica: “O sistema é aberto e flexível. Não está organizado como os sistemas de pouca energia. Está sempre aberto e funciona sempre. Alguém pode vir por 15 dias, por um mês, por três meses, por nove meses, por um ano, depende do interesse e do seu tempo disponível”, frisa.
As construções são simples, a manutenção do espaço é coletiva. É possível dizer que a Universidad de la Tierra é consequência do que a luta zapatista foi capaz de abrir: a autonomia, a democracia radical e a política antipartidarista. A simpatia é mútua. “Quem são os que se sentem atraídos por um espaço como este? Os que lutam, os que resistem, os que dizem: reconheçam os direitos e a cultura dos povos”, pondera Barraza, na mesma entrevista.
Pelas paredes das “salas de aula”, estampam-se uma imagem do líder indiano Gandhi, que nunca empunhou uma arma, e pinturas com os encapuzados zapatistas. No auditório, um quadro típico em referência ao EZLN exibe os seguintes dizeres: “Outro mundo possível onde caibam muitos mundos”. O lugar não lembra em nada a imagem de uma universidade tradicional. As casas onde se espalham os vários cursos são construídas à base de madeira e tijolos aparentes. Tudo muito colorido.
As unidades de ensino inspiradas no programa libertário zapatista dispõem de aulas práticas e disciplinas como Arquitetura e Filosofia
PRESSÃO NO PODER
Luis de la Mora, professor da UFPE, coloca que os zapatistas se constituem distintos das guerrilhas e movimentos tradicionais. “Estamos falando de um movimento político-militar. Os movimentos sociais são sociopolíticos. Têm um projeto nacional. Os movimentos sociais geralmente empunham bandeiras de luta localizadas em alguns setores e territórios. Os movimentos sociais visam pressionar o poder público, o EZLN quer transformar a base do poder de modo que revolucione o estado mexicano”.
Ao citar as manifestações de junho do ano passado no Brasil, de la Mora lembra que o ideário zapatista está em sintonia com esse “momento” político vivido pela sociedade contemporânea, cada vez menos identificadas com lideranças políticas ou instâncias partidárias. “Tem tudo a ver, porque o EZLN não é um partido político, não pretende alcançar o poder pelas armas, mas mobilizar os excluídos para constituírem uma força de mudança. São contra a liderança política tradicional, que exalta a figura de um líder, tanto é que o seu comando permanece incógnito. O subcomandante Marcos é apenas o porta-voz do comando militar. Eles têm plena consciência da inferioridade militar do EZLN perante o exército mexicano. Sabem que a vitória não poderá ser conquistada com as armas, mas como resultado de uma ampla mobilização popular”, comenta.
Em 2013, o EZLN convocou a primeira “escuelita zapatista”, que atraiu milhares de pessoas de todo o mundo para uma proposta de “imersão” no modo de vida e pensar das comunidades autônomas indígenas. A Unitierra-Chiapas foi um dos espaços a recebê-los. O estudante universitário mexicano Alejandro Parra (que, para evitar dar nome a porta-vozes ou lideranças, preferiu não revelar sua real identidade), aderente da Sexta Declaração, explica que as Juntas de Buen Gobierno não “obedecem” ao “modelo zapatista”.
“Os zapatistas não se apresentam como um modelo político, ao qual se devem adequar. Pelo contrário, a Sexta Declaração tratou por esclarecer que o caminho é o respeito às diferenças, a ética e o anticapitalismo”, diz. Sobre a escuelita, ele esteve no Caracole Realidad. “O desafio é gerar isso em nossos espaços de convivência cotidianos, em que podemos deixar de lado a reprodução das dominações, não só políticas, mas também econômicas e, muito importante nesses tempos, culturais”, avalia.
Quando me despedia de Raymundo Barraza, ele quis saber se tinha a intenção de fazer alguma reportagem. Disse que, embora jornalista, esse não tinha sido o objetivo da minha visita. “Bem... Mas não tem problema. Só peço que fale sobre o que viu, o que sentiu aqui. Não diga que eu disse isso ou aquilo. Fale sobre suas impressões”, recomendou.
CAROLINA ALBUQUERQUE, jornalista.