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Quilombo: Em nome da mãe, dos filhos e orixás

No ano em que completaria 100 anos, a ialorixá Biu de Xambá, que criou o primeiro (e único) quilombo urbano de Pernambuco, é celebrada pelo seu povo

TEXTO ISABELLE CÂMARA
FOTOS DIEGO DI NIGLIO

01 de Junho de 2014

Foto Diego Di Niglio

O ano era 1950. A ialorixá Severina Paraíso da Silva, ou Mãe Biu de Xambá, decidiu sair do Bairro de Santa Clara (hoje Dois Unidos), ir morar no subúrbio de Olinda e ali começar um processo geopolítico, social e antropológico, ainda que de forma inconsciente. Disposta a reabrir o Terreiro de Santa Bárbara – Ilê Axé Oyá Meguê, da Nação Xambá, depois de ele ter sido fechado em 1938, pelo Estado Novo, e a reagrupar sua família e seus filhos de santo, ela encontrou às margens do Rio Beberibe, no lugar conhecido como Portão do Gelo, um espaço simbólico para apropriação, uso, sobrevivência, exercício da fé; um ambiente ideal para desenhar uma nova cartografia familiar, comunitária e religiosa, que resultou no nascimento do primeiro quilombo urbano de Pernambuco, a comunidade quilombola do Portão do Gelo Nação Xambá, devidamente reconhecida, em 2006, pela Fundação Cultural Palmares.

Acompanhada dos filhos de sangue e de santo, a matriarca atraiu também agregados, pessoas que migraram para aquele local com a esperança de uma vida melhor, como suas irmãs Donatila Paraíso do Nascimento (Madrinha Tila), Maria Luíza de Oliveira (Tia Luíza) e Laura Eunice Batista (Tia Laura), mulheres que, junto com Mãe Biu, assumiram o papel de ocupar, ampliar, negociar e garantir a construção daquela nova comunidade. “Estar perto do rio tinha dois significados: o religioso, porque era preciso a proximidade com a água corrente para a realização dos rituais, e de sobrevivência, pois não se tinha água encanada à época e as pessoas ali lavavam roupas, louças, tomavam banho”, explica Hildo Leal da Rosa, filho de santo de Mãe Biu e historiador.

“Minha mãe foi uma líder natural. Qual a função do líder? Que as pessoas que ficam ao seu comando estejam sempre bem, felizes. Ela tentava fazer casas logo, fazia casamentos, arrumava emprego público, pedia, se preocupava com aquele que estava desempregado”, recorda Adeíldo Paraíso da Silva, mais conhecido como Pai Ivo de Xambá e filho de Mãe Biu, em depoimento concedido a Valéria Gomes Costa, para o livro É do dendê! – histórias e memórias urbanas da Nação Xambá no Recife (1950 – 1992) (Annablume, 2009).


Localizado no próprio terreiro, o Memorial Severina Paraíso da Silva guarda um dos maiores acervos religiosos do Nordeste

“Tia Biu gostava de dar casas às pessoas e casar. Uma casa, todo mundo tinha que ter uma casa própria. Ela tinha essa visão. Mamãe, Tia Lourdes, eu, voinha, Tia Nair, Tio Luiz, Ciço, Mina, Edileuza, D. Belmira, Antonieta, Sônia, todo mundo tinha que ter uma casa própria. O negócio dela era uma casa”, complementa Maria do Carmo de Oliveira, a Cacau, no mesmo livro.

Como líder religiosa, Mãe Biu passou a negociar com filhos e filhas de santo a orientação moral de suas vidas cotidianas, apontando caminhos que, para ela, eram os mais indicados para o estabelecimento das relações sociais internas e externas ao terreiro.

SANTA BÁRBARA
Em paralelo à nova comunidade que ali se configurava em sentimentos, elos, hábitos e costumes, o Terreiro de Santa Bárbara viveu um período áureo nas práticas religiosas, que legitimavam a posição de Mãe Biu como ialorixá e líder religiosa do grupo, e asseguravam a permanência da tradição xambá de culto aos orixás. “O grande feito de Mãe Biu, além de agrupar essas pessoas em torno da religião, foi garantir no Brasil a permanência da prática do culto de matriz africana xambá. Ela conseguiu o que muitos praticantes do candomblé não conseguiram. Teóricos afirmam que havia vários cultos de matriz africana no Brasil, mas que os processos de repressão fizeram com que eles desaparecessem”, conta Guitinho da Xambá, filho da casa e líder do Bongar, grupo musical que hoje tem a função de divulgar o coco xambá.

Mãe Biu comandou o seu povo durante 43 anos, um período de construção de identidade étnica e fortalecimento do culto nessa tradição. Para Pai Ivo, Mãe Biu, Tia Laura, Madrinha Tila e Tia Luíza representaram não só a manutenção da religiosidade de matriz xambá em Pernambuco, mas também o empoderamento de uma etnia e a luta pela igualdade de gênero – quando nem se falava nisso.


Filho biológico de Mãe Biu, ele preserva as tradições do
Terreiro de Santa Bárbara

“Se hoje, em pleno século 21, mesmo que nós tenhamos uma presidente mulher, o machismo impera, imagine, em 1950, quatro mulheres negras, praticantes do candomblé, que conseguiram manter e trazer aos dias atuais a tradição e a religiosidade de um povo? Elas foram muito fortes”, assegura. “Além disso, Mãe Biu era analfabeta, abandonada pelo marido, e conseguiu gerir uma casa, liderar uma comunidade que nascia. Ela também teve que reinventar tradições. Por exemplo: no culto a Exu, a mulher não pode ‘cortar’, sacrificar um animal, pois dentro da liturgia só os homens podem fazer isso. Mas, numa casa regida por mulheres, qual a opção?”, pondera Guitinho. “Ela se tornou uma grande referência na comunidade e extracomunidade, pois o campo das tradições de matriz africana é repleto de tensões, você precisa se legitimar”, complementa.

Mãe Biu faleceu em 27 de janeiro de 1993, aos 78 anos, deixando o Ilê de Oyá sob o comando de sua irmã, Mãe Tila de Oxalá, e de seu filho biológico, Ivo de Oxum, que preservam as tradições do terreiro xambá. Ela também deixou um extenso legado cultural, religioso e político, compartilhado por filhos (de sangue e de santo), irmãos, sobrinhos, netos e bisnetos, no Quilombo do Portão do Gelo Nação Xambá.

Como reconhecimento a esse patrimônio material e imaterial, a Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura (MinC), e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceram, em 2006, a Comunidade Xambá do Portão do Gelo como primeiro Quilombo Urbano de Pernambuco.

De acordo com a Fundação, a Comunidade Xambá guarda um dos maiores acervos religiosos do Nordeste; bens que estão preservados no Memorial Severina Paraíso da Silva, instalado no próprio terreiro e organizado pela comunidade, com a ajuda de três historiadores filhos da casa: Hildo da Rosa, João Monteiro e Antonio Albino. “Elas tinham um profundo senso de registro. Tudo que faziam, compravam, era documentado. O ritual de iniciação de Maria Oyá, feito em 1927, foi todo descrito em manuscrito por Tia Laura. Elas tiravam fotos, guardavam objetos de infância, roupas etc. Talvez tivessem a visão do que isso representaria no futuro”, avalia Guitinho.


Filho da casa, Guitinho é líder do Bongar, grupo musical que divulga o coco xambá

INICIAÇÕES
No início da década de 1920, o babalorixá Artur Rosendo Pereira, fugindo da repressão policial às casas de culto afro-brasileiro, deixa Maceió (AL) e passa a morar no Recife. Na capital pernambucana, no Bairro de Água Fria, por volta de 1923, reinicia suas atividades de zelador dos orixás, segundo os rituais da tradição xambá, cujos conhecimentos foi buscar na África, onde viveu por quatro anos. De acordo com Guitinho, diversos autores apontam o povo xambá como habitantes da região limítrofe da Nigéria com Camarões, nos Montes Adamaua, vale do Rio Benué.

Artur Rosendo iniciou filhos de santo e vários deles, em seguida, abriram terreiro, entre eles, Maria das Dores da Silva, ou Maria Oyá, que fez sua iniciação em 1927. Em fevereiro de 1928, Maria Oyá começou a cultuar os orixás em Campo Grande, tendo Artur Rosendo como babalorixá e Iracema como ialorixá. Maria Oyá inaugurou seu terreiro em 7 de junho de 1930.

Uma forte repressão policial, na gestão do então interventor Agamenon Magalhães, fechou o terreiro de Maria Oyá, em 1938. A jornalista Marileide Alves, no livro Nação Xambá, do terreiro aos palcos, descreve esse episódio: “Em maio de 1938, a polícia chega à porta da casa de Maria Oyá, invade seu terreiro e recolhe vários objetos usados nas festas religiosas, como instrumentos musicais, louças, vestimentas, bijuterias, imagens, entre outros. Os policiais colocaram Maria Oyá dentro do camburão, onde já estavam alguns pais e mães de santo de outros terreiros, e se dirigiram para a delegacia do Bairro do Espinheiro, no Recife. Lá, já se encontravam detidos outros adeptos do candomblé, juntamente com objetos do culto. Apesar de ter sido liberada logo depois, a ialorixá não pôde reaver seus materiais de culto”.


As líderes do terreiro foram pioneiras na luta pela igualdade de gênero

Ainda assim, alguns rituais eram realizados a portas fechadas, de maneira disfarçada, mas a manutenção dessas tradições, às escondidas, segundo Guitinho, não foi suficiente para evitar que Maria Oyá entrasse em depressão. Em 1939, ela falece, abrindo um hiato de 12 anos entre o fechamento do terreiro e o surgimento de Mãe Biu como ialorixá. “São 12 anos muito importantes, pois foi nesse tempo que começou a aflorar a figura de Mãe Biu, num momento de resistência, quando foram criadas várias estratégias de manutenção do espaço e dos rituais”, conta.

Em 1950, ano da morte de Arthur Rosendo, Mãe Biu é consagrada a nova líder do Terreiro de Santa Bárbara – Ilê Axé Oyá Meguê, reabrindo-o no então Bairro de Santa Clara, onde fica só por um ano. De lá, a comunidade migra para o Portão do Gelo.

No artigo Nação Xambá: criando e recriando estratégias de garantia de espaços sociais e religiosos no Recife, publicado na revista Ciências Humanas em Revista (São Luís, dez/2006), Valéria Gomes Costa aponta motivos para essa migração: “Os subúrbios como Beberibe e Casa Amarela, por exemplo, se transformaram em espaços de habitação/moradia, bem como em lugares de reconstrução simbólica do povo de santo, que, desde a década anterior (1930), vinha ocupando esses espaços geográficos, por conta das perseguições étnico religiosas. A área periférica de Beberibe se constituía, em parte, por terrenos baldios, cobertos por matas, nos quais a política de modernização da cidade, na época do interventor Agamenon Magalhães, incentivava os industriais dispostos ou persuadidos a construírem as vilas populares para seus operários. Os terrenos, distantes do centro, eram doados à população, que, por sua vez, via nesta política uma alternativa para adquirir suas residências próprias. Foi nesse espaço-tempo que o Portão do Gelo, que pertencia geograficamente às áreas de terrenos baldios, à margem esquerda do Rio Beberibe, na Zona Norte da região metropolitana do Recife, tornou-se, possivelmente, a alternativa de lugar encontrada por Severina Paraíso da Silva, a Mãe Biu, para instalar o seu terreiro”.

FESTA DO COCO
Um dos legados de Mãe Biu foi a festa do dia 29 de junho, que nada tem a ver com as tradições da Igreja Católica, que reverencia São Pedro. Nascida nesse dia, no ano de 1914, Mãe Biu sempre comemorou a data. A tradição de realizar uma festa animada pelo coco começou no aniversário de 50 anos dela, em 1964. Guitinho e Hildo explicam o motivo.

“Essa história permaneceu envolta em mistério por anos, era quase um tabu. Na festa, com música de radiola, muita cerveja, duas crianças se afastaram e uma delas caiu numa cacimba. Muita gente desmaiou, foi um chororô, e surgiram especulações, até de que era um castigo dos orixás, pois a festa era realizada no salão do terreiro e Oyá não permitia”, revela Guitinho. Hildo acrescenta: “A partir de então, ela fez uma promessa aos mestres da Jurema: se não houvesse nenhum problema maior com a polícia, em função desse episódio, ela promoveria um coco no aniversário dela. E essa promessa teria sido feita aos mestres da Jurema porque o coco é uma dança deles”.


A tradição de realizar uma festa animada pelo coco começou no aniversário de 50 anos de Mãe Biu, em 1964

Para Guitinho, essa festa é uma das maiores manifestações da reinvenção da memória do povo xambá: “No início do terreiro, o coco era um elemento brincante. Em 1960, as casas de terreiro funcionavam com alvará da Secretaria de Segurança Pública. Com um acontecimento como esse, a casa sofria risco de nova interdição. Para mim, com esse fato, vem a memória traumática de 1938, quando a casa foi fechada por 12 anos. Nesse período, alguns rituais foram mantidos e, para protegê-los e disfarçá-los, os homens ficavam tocando coco na frente da casa. Após o acidente da menina, o coco torna-se promessa. Em 1993, com a morte de Mãe Biu, essa tradição poderia se perder, pois o compromisso era dela, mas, nas comunidades de matriz africana, promessas também são herdadas. Aí, o coco deixa de acontecer em função de uma promessa por uma memória traumática e passa e acontecer para manter viva a memória de Mãe Biu”.

Do ponto de vista musical, o coco do povo xambá, segundo Guitinho, se diferencia dos outros por conta da alfaia amarrada na cadeira. “Essa é uma tradição nossa, seguramente. O uso de alfaia e a batida são específicos dessa nação. O coco começava e não tinha hora pra acabar. Aí, alguém teve a ideia de amarrar a alfaia na cadeira e tocar. E isso permite usar as afinações das duas peles, utilizar o aro, fazer diversas variações rítmicas, além de que o tocador pode dançar.”


Mãe Biu ladeada por seus seis filhos biológicos

A Festa do Coco, que celebra o aniversário de Mãe Biu, só acontece na Nação Xambá uma vez por ano, com hora para começar e acabar: das 10h às 20h. Hildo da Rosa explica que é uma festa profana, cheia de religiosidade. “Não existe fronteira entre uma e outra.” De acordo com Guitinho, a celebração já está marcada no calendário festivo de Pernambuco e, nesse dia, o terreiro recebe visitantes e brincantes de diversos locais do Brasil e do mundo.

Este ano, em função dos 100 anos de Mãe Biu, a casa está preparando uma festa ainda maior, com direito a coco, sambada de coco, rua e terreiro enfeitados, comidas e bebidas típicas preparadas pela comunidade. “Mãe Biu se fará presente na fogueira tradicional do terreiro, nas roupas coloridas, na estrela gigante tradicionalmente pendurada na fachada do terreiro todo dia 29 de junho, em cada canto entoado por um mestre ou aprendiz, em cada umbigada, no girar das saias floridas das mulheres e no ‘rufar trovão’ do tambor do coco.” 

ISABELLE CÂMARA, jornalista e diretora da comunicação do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
DIEGO DI NIGLIO, fotógrafo milanês, radicado em Olinda, com ensaios sobre cultura afro-brasileira, história e patrimônio.

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